Comportamento corrupto e pensamento moral

 “Não se pode ser um pepino doce em um barril de vinagre.” P. ZIMBARDO

O interesse que me produz o fenômeno da corrupção parece ser análogo ao que sentimos pelas sociedades exóticas, pelos costumes e tradições muito distantes das nossas. Em realidade, o assombro que sinto ante o comportamento corrupto vai mais além que isso e se assemelha em tudo à surpresa e antipatia. Uma pessoa pode sentir atração por aquilo que é mais distinto de si mesma, e se tem algum hábito reflexivo o percebe como um desafio intelectual. Por que isso é assim?, se pergunta. Qual a razão de uma conduta tão estranha? Quais são as causas, os motivos, as condições que fazem possível essa forma de ser? Mas encontra dificuldades para responder-se por falta de familiaridade emocional e intelectual com o objeto de sua surpresa.

A compreensão que tenho da Moral e do Direito carece da mais mínima sintonia com esse tipo de delinquência. Digamos que minhas intuições e valores morais me predispõem contra qualquer indício de corrupção em qualquer de suas modalidades e sucedâneos. O direi de modo que elimine qualquer ambiguidade ao respeito: um bloco de cimento está mais perto de ter e experimentar uma atitude compassiva ou compreensiva em relação a esse tipo de delinquência que eu. Uma espécie de repugnância instintiva, como a visão ou o contato com uma chaga purulenta. Um tipo de comportamento que resulta nauseabundo para qualquer concepção acerca de um “sentido moral” no ser humano.

Aristóteles, em seus debates sobre a moralidade, insiste nas habilidades pessoais e sociais para prosperar no âmbito moral. Segundo esta perspectiva, a aquisição e o exercício das habilidades morais depende da prática (social) de hábitos adequados, e pode ver-se influenciado pelos modelos, as práticas sociais e as instituições que encontramos na vida diária. E entender a moralidade como um tema essencialmente prático e resultado de um longo treinamento nos recorda a enorme importância que tem as habilidades que diariamente costumamos exercer sem esforço, de modo fluído e contumaz, como uma virtuosa extensão de nosso caráter e de nossa vontade.

O problema é que a maioria das pessoas dá por descontado que embora levem a cabo condutas social e moralmente reprováveis, continuam a crer que são boas, que são distintas, que são melhores, diferentes ou superiores. Construímos umas idéias preconcebidas interessadas e egocênctricas que melhoram a imagem que temos de nós mesmos e que fazem com que nos sintamos especiais, nunca normais e correntes, sempre “por encima da média” em qualquer prova de integridade pessoal. Esses prejuízos cognitivos e egocêntricos desempenham uma função valiosa porque reforçam nossa auto-estima e alimentam nossa sensação de invulnerabilidade moral. Nos permitem justificar nossas faltas, atribuir-nos o mérito de nossos êxitos e eludir a responsabilidade de nossas más decisões, fazendo-nos ver nosso mundo subjetivo através de uma lente multicolor (P. Zimbardo, 2007).

A maioria das pessoas se nega a reconhecer que embora a virtude se exerça de maneira unificada em um conjunto de situações significativas, em determinadas situações podem existir forças externas e internas potentes, mas sutis, com poder potencial de transformá-las. Se negam a admitir que certos estados de coisas influem em nossos próprios estados motivacionais alterando o comportamento e que é necessário uma grande disposição e força de vontade para paliar as falhas do autocontrole. Não somos os mesmos quando trabalhamos a sós ou quando o fazemos em grupo, quando estamos entre amigos ou entre pessoas desconhecidas, quando nos encontramos em uma situação romântica ou em um ambiente de trabalho[1].    

A questão, portanto, reside em saber o que impulsa a conduta humana. O que determina nossos juízos morais? O que faz com que algumas pessoas levem uma vida reta e honrada e que outras pareçam cair com facilidade na imoralidade e o delito? Que fatores ou influências guiam nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossos atos para o bom ou o mau caminho? Até que ponto nosso comportamento moral está à mercê da situação e do momento em que nos encontramos?

Começarei por admitir que o que somos é tanto o resultado dos extensos sistemas – riqueza e pobreza, educação, predomínio cultural e religioso, etc. – que governam nossa vida como das situações concretas em que nos encontramos a diário. Por sua vez, estas forças interagem com nossa biologia e nossa personalidade. Somos uma mescla de instintos em que o potencial para a bondade e para a perversão é inerente à complexidade da mente humana. Juntos, o impulso para o mal e para o bem compõe a dualidade mais básica da natureza humana. Isto implica que a trajetória da ação que adotamos em um determinado momento e situação é o resultado de um estado mental emergente selecionado pela interação do complexo meio circundante em que opera o cérebro, isto é, de que existem infinidades de influências que guiam nossas condutas e nossos juízos morais. (M. Gazzaniga, 2011)

Assim entendido, podemos considerar a moralidade como um fenômeno natural arraigado na neurobiologia – ainda que limitado pelas forças da seleção natural, moldado pela ecologia local e modificado pelos avanços culturais (P. Churchland, 2011). Esta forma de conceber a moral afasta-nos das inferências estúpidas, encontra as raízes da moralidade em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, quero dizer, em nossa natureza, nos correlatos que no cérebro parecem ditar o sentido do comportamento moral.

Também nos permite conjeturar, a partir do retrato dos juízos morais humanos que vão compondo as ciências que se ocupam do cérebro e da conduta, sobre algumas das possíveis causas do comportamento corrupto, uma vez que, como recorda Patricia S. Churchland (2006), para compreender “lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento”. É o que farei à continuação: conjeturar sobre uma das possíveis causas do comportamento corrupto.  

Sobre a definição  de corrupção

O fenômeno estendido da corrupção pode ser analisado desde distintas perspectivas. A primeira que salta à vista é a moral. Mas esse enfoque moral pode variar desde uma relativamente simples convicção de rechaço ao roubo, da apropriação de algo que não pertence ao agente corrupto, até uma maior  consciência das consequências desse tipo de depredação social, entre as quais está a certeza do sofrimento ou miséria de alguém que o agente corrupto não necessariamente conhece e de quem, geralmente, não verá jamais seu rosto.

Para o que aqui interessa, me limitarei a analisar este último enfoque, isto é, do comportamento corrupto como uma forma perversa e diluída de genocídio social, nomeadamente no que se refere à conduta de indivíduos vinculados à administração pública que, no uso de suas prerrogativas funcionais, direta ou indiretamente, obtêm e utilizam de forma fraudulenta, desonesta e imoral recursos ou meios públicos para enriquecimento pessoal. Dito de modo mais simples: do comportamento corrupto (ou da corrupção) como “crime contra a sociedade”, para usar a expressão de Leonardo Boff.

Também assumirei que a corrupção é um ato de maldade, cuja definição é simples e tem uma base psicológica: “A maldade consiste em obrar deliberadamente (por ação ou inação) de uma forma que provoque dano, maltrate, humilhe, desumanize ou cause sofrimento a pessoas inocentes, ou em fazer uso da própria autoridade e do poder sistêmico para praticar, alentar ou permitir que outros obrem com a mesma finalidade”. (A. G. Miller , 2004).

Por outro lado, admitirei que esses atos de autêntica “maldade administrativa” são praticados por indivíduos “terrorífica y terriblemente normales”: indivíduos que se crêem não só líderes políticos senão morais, que oram e vão à igreja (ou templos), que educam seus filhos e amam seus companheiros/companheiras, que frequentam clubes e eventos sociais, etc. Dito de outro modo, e para usar as palavras de Hannah Arendt (1994), um tipo de normalidade que, desde o ponto de vista de “nuestras instituciones jurídicas y de nuestros criterios morales, […]resulta mucho más terrorífica […], por cuanto implica que este […] tipo de delincuente […] comete sus delitos en circunstancias que casi le impiden saber o intuir que realiza actos de maldad”.

Seja como for, este tipo de análise em modo algum pretende escusar ou quitar responsabilidade a quem atua de maneira imoral ou ilícita. Conjeturar sobre os mecanismos mentais que usamos para desconectar os princípios morais de nossa conduta nos situa em uma posição melhor para combater esse fenômeno, sobretudo no que se refere à justiça e o castigo, reafirmando a necessidade fundamental e urgente de um compromisso moral e jurídico no sentido de erradicar o monstruoso fantasma da corrupção, esse “câncer metastático” de que padece o Estado brasileiro.

Filosofia moral experimental: O velho dilema do “trem assassino” e do “afogamento”

Alguns estudiosos do fenômeno da corrupção argumentam que a única forma de inculcar a importância da defesa do patrimônio público, porque os danos a este afetam à sociedade em geral, é quando as pessoas são capazes de estabelecer vínculos causais complexos, quer dizer, nexos em que a causa e suas consequências costumam ser distantes no tempo e no espaço, e acrescentam que somente uma mínima proporção da população tem a capacidade de estabelecer esses vínculos causais pouco evidentes.

Retomando a teoria da interpenetração das emoções e a razão na construção de juízos morais, é possível inferir que somente se há sentimentos em relação às pessoas teremos motivos para não causar-lhes danos. Aqui é onde joga um papel fundamental a neurociência, as ciências cognitivas, a psicologia e a filosofia moral experimental. Não, por certo, substituindo as elaborações integrais da Ética e das ciências sociais e jurídicas senão dando-lhes um aporte prático (em outras palavras, sem negar o papel determinante da cultura, mas sim reconhecendo a inegável dialética de natureza e sociedade).

De fato, a idéia de usar experimentos sobre os comportamentos para confirmar hipóteses acerca da natureza e do comportamento humano é antiga. Kant, por exemplo, era aficionado a esse exercício, para o qual, contudo, quiçá não estava muito dotado. Uma de suas hipóteses era que uma mulher se enoja mais se lhe dizem que é velha ou gorda [é objetivo] que se lhe dizem que é feia [é subjetivo](R. Ogien, 2011). Assim que se pode considerar que o estudo experimental dos comportamentos chamados “morais” ou “imorais” é um programa de investigação que tem como objetivo comprovar hipóteses sobre nossos juízos e condutas, mas cujo interesse é mais evidente, e com métodos um pouco mais sérios e um pouco mais respeitosos com a ciência. Vejamos por parte.

A pesquisa mais ampla sobre nossas intuições e juízos morais foi realizada por uma equipe de investigadores em psicologia dirigida por Mark Huaser (2007), no marco de uma investigação massiva através de internet e na qual participaram  pessoas de ambos os sexos, de distintas categorias de idade, distintas religiões, distintos níveis de estudos, de diferentes comunidades étnicas ou culturais e em vários países. Consistia em propor o clássico dilema do trem, exposto por Philippa Foot e Judith Jarvis Thomson:

“Um trem circula sem controle  e se aproxima em direção a cinco pessoas que morrerão se o veículo mantém a mesma trajetória. Denise, que está passeando junto à via do trem, é testemunha da cena anterior e tem a oportunidade de salvar-lhes a vida mediante o simples movimento de um interruptor que desviará o trem para outra via diferente, donde só matará a uma pessoa em lugar de cinco.  Deve acionar o interruptor e desviar o trem com o fim de salvar a cinco pessoas a expensas de uma?”    

A grande maioria das pessoas que responderam em todo o mundo, aproximadamente um 89%, afirmou que estava bem ou que era correto que Denise acionasse o interruptor. Em seguida, lhes propuseram a seguinte pergunta:

“Como antes, o trem ameaça com matar a cinco pessoas. Frank se encontra em uma passarela sobre a estrada de ferro e tem a seu lado a uma pessoa corpulenta e de grande estatura. Se empurra ao desconhecido e o joga às vias, deterá a marcha do trem. O desconhecido morrerá, mas se salvarão as cinco pessoas. Está bem ou é correto que Frank salve as cinco pessoas matando a este desconhecido?”

 Um 89% dos entrevistados respondeu que não. Essa coincidência em todos os grupos culturais e de idade, assim como a dicotomia na resposta, resulta assombrosa quando em realidade as cifras (salvar a cinco pessoas permitindo a morte de uma) não variam entre os dilemas. E mais: quando se pediu aos entrevistados que justificassem sua resposta, estes ofereceram diversas explicações, nenhuma especialmente lógica.

Desde outra perspectiva e metodologia, Joshua Greene e seus colaboradores (2001) se perguntaram se as pessoas utilizavam a mesma parte do cérebro em ambas as circunstâncias, isto é, para a solução de ambos os dilemas. Assim que escanearam aos sujeitos em um experimento com neuroimagem enquanto decidiam suas respostas. Descobriram que com o primeiro dilema, que era de caráter impessoal (acionar o interruptor), se incrementava a atividade nas áreas do cérebro associadas com o raciocínio abstrato e a resolução de problemas, enquanto que no segundo caso, que era um dilema pessoal (havia que tocar fisicamente e empurrar a um desconhecido), se incrementava a atividade nas áreas associadas com a emoção e a cognição social.

Cambiemos de cenário.

“Passas por casualidade ante um pequeno lago e vês a uma criança que se está afogando. Não há nem pai, nem mãe, nem nenhum outro transeunte por perto para socorrê-la. Tu podes salvar-lhe a vida facilmente. Basta que corras em seguida até ela sem sequer desnudar-te e a tragas até a borda. Não é necessário que saibas nadar, pois o lago não é profundo. Se o fazes, só te expões a estragar os belos sapatos que acabas de comprar e a chegar tarde a teu trabalho. Não seria monstruoso deixar morrer a essa criança para não estragar os sapatos novos e evitar um reproche do chefe?

Se respondes que sim, também terás que admitir que é monstruoso deixar morrer de fome a umas crianças que vivem em países mais pobres quando bastaria que dedicasses uma parte ínfima de teu salário para salvá-las.”   

J. Greene também explora esta hipótese para explicar o contraste entre nossa indiferença à sorte das crianças que morrem de fome distantes de nós, com as quais não temos contato pessoal, e nossa sensibilidade ao sofrimento exposto ante nossos olhos. De fato, ao analisar este tipo de dilema, Greene e colaboradores (2003) descobriram que, ainda que as opções são superficialmente as mesmas – não faças nada e preserva teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é pessoal, enquanto que o segundo é impessoal.

Para a neurociência, o mais interessante e o que realmente importa não é tanto as respostas que formulam os participantes desses experimentos, mas sim as áreas cerebrais que se lhes ativaram de forma distinta quando se enfrentavam aos dilemas morais pessoais e os dilemas morais impessoais, isto é, que tipo de dilemas as ativam e que zonas do cérebro intervêm quando se tomam decisões morais desse tipo. E uma vez que se trata, tanto no dilema do trem como do afogamento, de casos similares que requerem respostas similares, os correlatos neuronais diferenciais para a resolução dos dois grupos diferentes de dilemas se distinguem pelo modo de chegar a um mesmo resultado: um em que os sujeitos se encontram implicados pessoalmente em uma determinada ação e outro que implica uma maior distância pessoal para quem atua.

Dito de outro modo, de acordo com as investigações procedentes das ciências que se ocupam do cérebro e da conduta, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Em realidade, esses resultados parecem indicar que quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa.

Portanto, no caso de comportamento corrupto, o abuso do poder não é o único que saca a reluzir nossas tendências desonestas. A impessoalidade e/ou a distância psicológica do agente em relação aos membros “invisíveis” da sociedade também parece facilitar a prática de atos corruptos. Conclusão: um agente corrupto está sempre disposto a enriquecer-se como uma impessoal máquina de caça-níqueis, mas seguramente não estaria disposto a enriquecer-se utilizando uma arma e/ou provocando pessoalmente o sofrimento de membros desconhecidos de uma comunidade.

Comportamento corrupto: impessoalidade e indiferença emocional

De todas essas investigações se depreende uma conclusão muito importante: qualquer coisa ou qualquer situação que faça com que um indivíduo se sinta distante psicologicamente ou que lhe provoque um sentimento de impessoalidade com a miséria e o sofrimento dos demais, reduz seu sentido da responsabilidade pessoal e, em consequência, faz possível que possa atuar com maldade. E esta possibilidade aumenta quando se acrescenta outro fator: se a situação, sua função institucional ou alguma autoridade lhe dá permissão para atuar de maneira anti-social ou desonesta contra outras pessoas, o agente corrupto seguramente estará  disposto, inclusive, a “fazer a guerra” em benefício próprio.

De fato, essa sensação de impessoalidade somada ao exercício de uma função institucional tem múltiplas consequências para o agente corrupto, entre elas a suspensão da consciência em geral e da consciência de si mesmo, do sentido de responsabilidade pessoal, da obrigação, do compromisso, da moralidade, do sentimento de culpa, da vergonha e do medo, assim como da análise dos próprios atos em função de seus custos e benefícios.

Em última instância, reduz-se o interesse do agente corrupto em auto-avaliar-se, projetando sua responsabilidade para o exterior, para as circunstâncias ou os demais, em lugar de dirigi-la ao interior, para si mesmo, para as deficiências e defeitos de seu próprio caráter. Já não há um sentido do bem nem do mal, não há sensação de culpabilidade por atos ilegais nem infernos por atos imorais. Quando os controles internos se suspendem, a conduta se acha por completo sob o controle externo da situação; o exterior se impõe ao interior. O que é possível e está disponível se impõe ao correto, ao bom e ao justo.

Chegado a esse ponto, a bússola moral das pessoas perde o norte. As limitações habituais da maldade e dos impulsos desonestos se diluem nos excessos da impessoalidade. O cinismo se impõe por encima do nível moral que reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos. Em resumo, não há aqui a menor consideração à advertência de Demócrito de que em um ato de maldade devemos envergonhar-nos principalmente diante de nós mesmos e que há uma regra que deve figurar como lei às portas da alma: “nada  hacer que sea indigno”.

O que podemos fazer?

Se Dante Alighieri pudesse regressar, que círculo do inferno reservaria aos agente corruptos? Para Dante, os pecados que brotam desta raiz são os piores, os “pecados do lobo”, a condição espiritual de ter no interior de si mesmo um buraco negro tão profundo que nunca se poderá completar com quantidade alguma de poder ou de dinheiro. Para os que sofrem desse mal mortal, o que existe fora do ego só tem valor se o ego pode apropriar-se dele ou explorar-lhe. No inferno de Dante os culpáveis deste pecado se acham no nono círculo, congelados no lago de gelo. Por não haver-se ocupado em vida de outra coisa salvo de si mesmos, estão presos em um ego gelado para toda a eternidade.  

Mas é realmente suficiente esperar, seguindo o suplemento à terceira parte da Suma teológica, pela contemplação das penas dos agentes corruptos condenados no inferno para incrementar nossa felicidade e nosso sentimento de justiça (Videbunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat)? É razoável conceber a atividade pública, que pretenda ser digna de algum crédito na atualidade, desvinculada do caráter e da virtude moral do sujeito-agente em um Estado que se diz republicano? Francamente creio que não. É necessário perseguir, julgar e castigar todo e qualquer agente corrupto. Tanto os atuais modelos teóricos como as provas experimentais indicam que, à falta de castigo, a colaboração social não se sustenta nem nos grupos grandes nem nos pequenos em presença de aproveitadores, e decai. Com o fim de que sobreviva a cooperação social, é preciso castigar os desonestos. Se a responsabilidade se elimina, a sociedade se desmorona. (M. Gazzaniga, 2012)

Quanto tempo tardaremos para entender que a pobreza, a ignorância, a “decadência” do sistema de ensino e saúde pública e as desigualdades não são meramente males em si mesmos, senão uma consequência direta do desbarate egoísta e da usurpação pessoal dos recursos públicos? Quanto de dignidade ainda nos custará assumir a dimensão real das cifras de escândalos sobre corrupção que quase diariamente assolam o País ou do perigo que representa para uma democracia quando um regime tendencialmente autoritário e manifestamente populista ocupa todos os espaços e obriga ao Judiciário a humilhar-se ante o Executivo?

Parece haver chegado o momento de lutar contra e eliminar este tipo de prática perversa, a despeito das boas intenções, dos interesses corporativos e/ou políticos em jogo; para tratar de restabelecer a confiança, a virtude e a honradez pública de um Estado impotente e ineficaz, que continua a distribuir de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza, e de forma tão incivil como escassa a liberdade, assistência sanitária, a educação e a segurança pública. Como recorda Frei Betto (2011) ao falar sobre a corrupção brasileira, “las instituciones deben ser suficientemente fuertes, las investigaciones rigurosas y los castigos severos. La impunidad hace al delincuente. Y en el caso de los políticos a ésta se le añade la inmunidad”.

Perguntar-se como combater e eliminar o comportamento corrupto  é, em boa medida e especialmente, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de conduta política e administrativa deplorável, de dissimulação e de intolerante intransigência que parece só saber bazofiar do problema da impunidade e da moralidade. É exigir a disposição, o compromisso e a valentia dos que efetivamente dispõem das condições institucionais favoráveis para tanto. É reclamar que as instituições não sejam indiferentes ao cinismo político que trata de despolitizar e/ou não priorizar o combate ao fenômeno da corrupção pela via da banalização inespecífica. É recordar que não há um problema de corrupção política, distinto do problema da corrupção administrativa, distinto do problema da corrupção econômica privada, etc. É, depois de tudo, adotar a célebre exclamação de Lutero: “não posso mais, aqui me detenho!”.

A contundente mensagem que se deve enviar àqueles que estão governando é a de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e comprometida atuação estatal não é (e não deve ser) a regra. Que o comportamento corrupto já não é uma exceção em um universo de moralidade e que, se assim for, as exceções servem precisamente para confirmar que a regra é errônea (R. Feynman, 1998). Que a simples suspeita de que algo vai realmente mal já constitui razão suficiente para atuar e castigar sem piedade os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites da degradação moral e política.

Ademais, trata-se apenas de uma questão de não esquecer uma “lei de ferro” que rege a experiência humana: se procuramos o que está errado, encontraremos muita coisa. Não há que esperar a intervenção do Espírito Santo, castigo divino ou a contemplação do sofrimento e da desgraça da escória de corruptos no inferno para reagir contra a praga da corrupção. Mas, se depois de tudo, o resultado de nossa indignação e de nossos esforços não for suficiente para perseguir e castigar os que não conseguiram o que Platão considerava como o mais difícil do mundo (“experimentar e abandonar a vida pública com as mãos limpas”), creio que o melhor que podemos fazer é tomar um bom vinho, pôr os pés em alto e ler um bom livro sobre a moralidade humana.

Nota:
[1] Talvez por isso, e para algumas pessoas, resulte ser uma experiência francamente divertida escutar a um agente corrupto predicar condutas éticas ou dar conselhos morais para um filho – algo similar como “escutar” a uma raposa explicando a um grupo de galhinhas sobre a moralidade das regras de caça dentro de um galhinheiro.


Informações Sobre o Autor

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.


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