Resumo: o estudo objetiva tratar do conceito de cidadão ou usuário dos serviços de atendimento jurídico gratuito nas faculdades de Direito. Parte da análise da noção de cidadania e estuda algumas barreiras históricas e culturais à sua plena vivência no Brasil. Expõe como ocorre o atendimento jurídico nas faculdades de Direito e alguns dos problemas enfrentados pelas principais corporações nos últimos tempos, antes do advento da Resolução nº 62 do CNJ. Por fim, analisa os dados coletados nas pesquisas de campo realizadas para refletir sobre os desafios identificados e sobre as formas de superar alguns obstáculos mediante novas posturas que favoreçam a cidadania ativa neste âmbito.
Palavras-chave: cidadania, usuário, serviços públicos, atendimento jurídico gratuito, faculdades de Direito.
Abstract: the main purpose of the present study is to focus the citizen or user of legal assistance services developed by law schools. It analysis the concept of citizenship and examines some of the historical and cultural barriers to the full achievement of this experience in Brazil. It also explains how the service is developed on law schools and some of the problems faced in recent times by major corporations, before the advent of Resolution nº 62, from CNJ. Last, it deals with collected data from field research to examine the challenges and to propose ways of overcoming some of the problems by new attitudes that encourage the users to achieve more active measures to fulfill citizenship in this connection.
Keywords: citizenship, user, public services, free legal assistance service, law schools
Sumário: Introdução; 1. Cidadania: um conceito em construção; 2. Sentido originário greco-romano de cidadania; 3. Barreiras históricas e culturais à vivência da cidadania plena no Brasil; 4. Cidadão ou usuário: novos dilemas da globalização frente à ordem econômica; 5. Atendimento jurídico gratuito nas Faculdades de Direito; 6. Perplexidades: Defensoria Pública, Ordem dos Advogados, Faculdades de Direito e Resolução nº 62/2009; 7. Pesquisas realizadas na prestação dos campi da UNIBAN; 8. Desafios no atendimento jurídico gratuito como promoção de inclusão jurídica no século XXI; Conclusões. Referências Bibliográficas.
Introdução
O presente artigo faz parte de uma coletânea de trabalhos científicos promovida pelo Grupo de Estudos em Direito da UNIBAN no sentido de concentrar esforços para refletir e divulgar as pesquisas realizadas nos anos de 2007 e 2008 nos Centros de Assistência Jurídica – CAJ e Juizado Especial Civil – JEC da Instituição.
Neste trabalho, abordar-se-á o conceito de cidadão ou usuário dos serviços de atendimento jurídico gratuito nas faculdades de Direito. Inicialmente, objetiva-se perscrutar o sentido originário da palavra cidadania e contrapor a noção desenvolvida na Antiguidade com o surgimento do espaço público no Brasil, para demonstrar que a vivência plena da cidadania enfrenta no País barreiras históricas e culturais que não podem ser ignoradas. Depois, será contextualizada a cidadania diante dos desafios do século XXI.
Será procedida a análise de como se dá o atendimento jurídico gratuito nas faculdades de Direito e das perplexidades vivenciadas nos últimos tempos ante reivindicações corporativas da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública, bem como a solução apontada pela Resolução nº 62/2009 do Conselho Nacional de Justiça.
Por fim, haverá a abordagem de alguns aspectos das pesquisas de campo realizadas, no que diz respeito à cidadania. Serão feitas ponderações acerca dos desafios que o objetivo de inclusão jurídica pela assistência judiciária gratuita enfrenta, e serão propostas novas posturas e formas de promoção do exercício da cidadania neste âmbito.
1. Cidadania: um conceito em construção
Cidadania é termo que advém do latim (com raiz em civitatis, de civitas, que significa cidade, palavra da qual deriva cidadão e cidadania) (CUNHA, 200:182) e possui vários sentidos, que vão desde o técnico-jurídico, isto é, qualidade daquele que “usufrui de direitos civis e políticos garantidos pelo Estado e desempenha deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos” (HOUAISS, 2001:714), passando pela associação ao ato de fazer valer os direitos, e havendo inclusive, no Estado Contemporâneo, quem fale em cidadania universal[1] (BENEVIDES, 1998): exercitada pelo “cidadão do mundo”, ou seja, pelo indivíduo “que coloca suas obrigações para com a humanidade acima dos interesses de seu país” (BENEVIDES, 1998).
A polissemia ou ambigüidade do termo ao mesmo tempo que aponta para um potencial ou riqueza de sentidos faz com que ele, de certa forma, perca sua força originária, que deita raízes na Antiguidade greco-romana, conforme se exporá.
Atualmente, do ponto de vista estrito do Direito, costuma-se dizer que cidadão é o nacional que está no gozo dos direitos políticos. Trata-se, portanto, de quem possui título de eleitor e, por conseguinte, pode participar diretamente dos assuntos do Estado, via de regra, por meio de eleição, plebiscito, referendo ou iniciativa popular.
Tal sentido, entretanto, enfraquece as potencialidades da noção de cidadania em um Estado Democrático de Direito. Cidadania é um conceito em construção e não algo dado ou acabado. Ademais, a construção da amplitude da noção de cidadania não se deu de forma tranqüila e pacífica, mas foi produto de lutas travadas contra privilégios infundados rumo à afirmação de direitos relacionados com a igualdade e conseqüentemente à universalização de seu exercício.
Neste contexto, deve-se ressaltar que, no Brasil, a Constituição de 1988 representou um marco na transição de um regime autoritário para um Estado Democrático de Direito, o que implicou na necessidade de implementação de várias formas de participação da sociedade nos assuntos coletivos, que não se restringem às três expressões de democracia direta positivadas na Constituição (art. 14).
A cidadania, conforme especifica o artigo 1º, II, da Constituição Federal, é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Na realidade, rigorosamente falando, nem haveria necessidade de tal alusão, uma vez que as noções de democracia e cidadania são intrinsecamente indissociáveis.
A tendência, conforme o País avance no processo de consolidação da democracia, será a ampliação das formas de participação da coletividade nos assuntos de interesse geral, mediante o desenvolvimento de diversos expedientes, como audiências e consultas públicas, conselhos de gestão e de fiscalização de serviços públicos, incremento dos espaços públicos de reivindicação e pelo fortalecimento dos movimentos populares e das organizações criadas no seio da sociedade civil.
Tal fenômeno resultará na ampliação dos estreitos limites da definição jurídica do conceito de cidadania de uma noção relativamente passiva, onde o cidadão é visto da perspectiva de mero portador de direitos e deveres para com o Estado, para uma concepção mais ativa, na qual “os cidadãos participantes da esfera pública” (BENEVIDES, 1998) serão potenciais agentes da exigência do respeito aos direitos assegurados e, ainda, da criação de mais espaços públicos e quiçá de novos direitos não enunciados.
2. Sentido originário greco-romano de cidadania
Segundo expõe MARILENA CHAUÍ (2001, p. 371), o termo civitas (raiz etimológica de cidadania) é tradução latina da palavra grega polis, que indica cidade como ente público e coletivo. Também res publica, por exemplo, é tradução latina de ta politika, “significando, portanto, os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma”. Polis e civitas correspondem ao conjunto de instituições públicas, incluindo leis, erário público, serviços públicos e sua administração pelos cidadãos.
Em Roma, cidadania designava uma situação política detida por alguns, com exclusão, por exemplo, dos escravos, das mulheres e das crianças, em relação à possibilidade de participação dos assuntos relativos ao Estado Romano. Segundo expõe DALMO DE ABREU DALLARI:
“a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social” (DALLARI, 1998:14).
Foi, contudo, na Grécia do auge da democracia, que a questão da participação dos cidadãos na condução dos assuntos coletivos assumiu uma dimensão mais pronunciada. Neste período, houve a cisão entre as concepções de esfera privada, na qual as pessoas desempenhavam atividades ligadas à sobrevivência, num espaço de sujeição (dos escravos, das mulheres e dos menores), e de esfera pública, considerada como espaço de igualdade, no qual homens livres exerciam a cidadania.
Os cidadãos gregos desta época eram iguais em dois sentidos: (a) o da isonomia, que implicava a igualdade perante a lei; e (b) o da isegoria, a qual atribuía idêntico direito a todos de expor e discutir em público sobre as ações que a polis deveria ou não realizar. Como os gregos conferiam elevado valor à noção de igualdade, o sorteio foi considerado a mais justa forma de distribuição de encargos estatais, uma vez que assim todos os cidadãos seriam, de fato, tratados com isonomia[2].
Assevere-se que, para os gregos, o espaço público era um referencial valorativo que apontava para a finalidade superior da vida dos homens livres, entendida como racional e justa. Nesta perspectiva, o desenvolvimento das virtudes políticas fazia parte do ideal de educação (JAEGER, 2001:1098) do homem grego, para a garantia de uma existência livre e ativa em face dos serviços públicos desenvolvidos para a coletividade.
3. Barreiras históricas e culturais à vivência da cidadania plena no Brasil
Cidadania, conforme visto é conceito relacionado com a atuação dos indivíduos na condução dos negócios públicos. Trata-se, portanto, de circunstância relacionada com a democracia, que, quando transformada em realidade, exige e incentiva que o indivíduo tenha uma postura ativa, no sentido de integrar-se, discutir e fazer-se ouvir perante o organismo político.
O exercício pleno da cidadania é conquista social, relacionada com a afirmação e respeito aos Direitos Humanos. Mesmo que quase todos os ordenamentos jurídicos nacionais tenham incorporado em seus preceitos normas que enunciam valores favoráveis ao desempenho da cidadania, a sua prática (práxis) varia muito de Estado para Estado e de período para período no mesmo local.
É pressuposto do pleno exercício da cidadania o desenvolvimento de relações sociais mais igualitárias, por isso que incomoda tanto a formulação feita por FRIEDRICH MÜLLER (2000, p.5-60): que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Tender-se-ia responder cinicamente que em uma democracia material nenhum grau de exclusão social pode ser tolerado, contudo, a problemática denuncia que as pessoas, no geral, como cidadãs que são, tendem a retirar de suas costas a responsabilidade de promover ações no sentido da inclusão social, procurando não se fazer essa verdadeira e, por isso mesmo, incômoda questão. Também é pressuposto do pleno exercício da cidadania: a consciência da diferenciação que existe entre vida privada e espaço público. Estes são aspectos que esbarram em problemas históricos e, conseqüentemente, culturais no Brasil.
Sabe-se que o Brasil foi tratado ab ovo, como um local para ser explorado para o enriquecimento de interesses de fora de seu território. Diferentemente do que ocorreu em colônias de povoamento, o objetivo precípuo de grande parte dos colonizadores que aqui se fixaram foi o enriquecimento rápido mediante a produção extrativista (agrícola ou de mineração) baseada, via de regra, no latifúndio, no trabalho escravo e no suprimento de carências do mercado externo.
Mesmo com a abolição da escravatura e a adoção do trabalho assalariado, que se deu no País na divisa dos séculos XIX e XX, predominou, a partir da Proclamação da República, com a progressiva expansão dos direitos políticos no Brasil, o que se denominou de “coronelismo”. Este é fenômeno cuja análise é imprescindível para que se entenda o nascimento distorcido da noção de espaço público no Brasil.
O coronelismo, segundo VICTOR NUNES LEAL, representou a decadência do poder privado e a ascensão do poder público, com a emergência do sufrágio universal a partir da Constituição de 1891, que transformou grande contingente de trabalhadores rurais (em um país que era, à época, essencialmente agrário) em eleitores.
O poder privado, que existia relativamente inconteste desde as grandes divisões do território pelo sistema das sesmarias (que foi fonte de origem dos grandes latifúndios no País), enfrentou acentuada decadência em função de vários aspectos, dentre os quais se ressaltam: o êxodo rural, produto da industrialização, e a afirmação e garantia dos direitos trabalhistas somente aos trabalhadores urbanos, que transformou o campo em instância menos atraente. Também houve a ascensão progressiva do poder público, advinda da consolidação do modelo federativo de Estado.
Enfraquecidos diante de seus dependentes e rivais, os coronéis se viram na necessidade de fazer alianças políticas com o Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra. A essência do compromisso coronelista repousou, portanto, no acordo firmado entre o poder privado decadente e o poder público em ascensão, e este complicado arranjo, denominado por NUNES LEAL de “sistema de reciprocidade”, envolveu:
“de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como que toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça” (LEAL, 1975:43).
O coronelismo caracterizou-se como sistema político baseado na “troca de favores”. O Estado, de um lado, negociava a nomeação dos cargos públicos, o erário e o controle da polícia e, de outro lado, o coronel oferecia a liderança em relação aos trabalhadores de sua circunscrição rural, que com a República foram transformados em eleitores. A idéia era buscar um compromisso no qual haveria a garantia de eleição dos governadores e simultaneamente a manutenção do poder privado dos coronéis, mesmo que em decadência.
O governo estadual, em troca do apoio político, concedia uma autonomia “extralegal” aos coronéis que compreendia: (1) o poder para a nomeação de cargos públicos, permitindo o surgimento do denominado “filhotismo”, pois o coronel nomeava pessoas com as quais mantinha relações; (2) o apoio do poder de polícia estadual para a perseguição dos opositores do coronel, o que deu ensejo ao chamado “mandonismo”; e (3) o poder de administração dos recursos financeiros do município, que eram utilizados para fins pessoais, ocasionando o que o autor denominou de “desorganização dos serviços públicos locais”.
Assim, os coronéis falseavam os votos dos seus “rebanhos eleitorais”, isto é, direcionavam os votos para o resultado pactuado com os governantes, utilizando-se dos votos de cabresto e de elementos coercitivos, como a ação de pistoleiros, geralmente capangas de sua confiança, ou grupo de jagunços, ou seja, de um “bando de caboclos dedicados ao ofício das armas, que viviam à sombra de sua autoridade”[3].
Entretanto, após a Revolução de 30, com a promulgação do Código Eleitoral, houve a instauração do voto secreto, que acabrunhou o sistema coronelista, porém, não foi suficiente para solapá-lo, haja vista que a sua base de sustentação era a estrutura agrária do País, e não o voto em si.
Portanto, segundo NUNES LEAL, a estrutura agrária, aliada à falta de autonomia municipal, e ao sistema representativo, cuja universalização fez surgir no cenário local um novo ator político com amplos poderes, isto é, o governador, são fatores que contribuíram para a manifestação plena do coronelismo em seu período auge, que foi o da República Velha (de 1889 a 1930).
Contudo, mesmo com as mudanças que foram sentidas no Brasil a partir da década de trinta, a reflexão acerca do fenômeno[4] é indispensável na medida em que provoca inferências que transcendem aos estreitos limites de contextualização de sua ocorrência mais evidente, fornecendo uma importante explicação sobre as origens distorcidas das relações entre o espaço público e privado no Brasil, ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na Grécia no período auge da democracia, onde artesãos e comerciantes não foram considerados cidadãos, à medida que não dispunham de “tempo livre” para se dedicarem às tarefas efetivamente públicas[5].
Ademais, a análise evidencia que diante da miséria e da ausência de informação da população, ela acaba sendo mais facilmente manipulada pelos detentores de poder que, por este motivo, preocupam-se menos em promover um projeto efetivo de emancipação social do que com a sua permanência no poder.
Portanto, apesar de todo avanço que as instituições públicas foram objeto no Brasil, ao longo do século XX, com a industrialização e a formação de uma classe média sustentadora de uma nova base de relações sociais, o coronelismo explica as origens da propensão cultural brasileira à privatização de espaços públicos, o que surte efeitos até os dias atuais, prejudicando o livre exercício da cidadania.
A partir de sua análise, entende-se parcela da razão pela qual o povo brasileiro ainda prefere sofrer calado e agüentar a opressão[6] sem levar a sério as instituições públicas e as leis garantidoras de direitos, em vez de se unir para romper[7] com a idéia distorcida de que os direitos sejam mera concessão dos “donos do poder” aos que estão abaixo (ou mais próximos) deles.
Não se pode ignorar, todavia, que a partir da década de trinta, apesar de todo desenvolvimento ocorrido, o Brasil vivenciou longos períodos de autoritarismo, com Getúlio Vargas e, posteriormente, com o golpe militar, que durou de 1964 até meados da década de oitenta. Assim, pode-se dizer que apenas a partir da Constituição de 1988 surgiu um cenário institucional mais favorável ao desabrochar pleno da cidadania no País.
Todavia, mesmo com todas as instituições e mecanismos de participação assegurados no ordenamento e diante do avanço que deve ser comemorado, ainda existem muitas barreiras à plena vivência da cidadania no Brasil, pois esta pressupõe, inicialmente, relações sociais mais igualitárias e, sobretudo, a predisposição do povo em fazer valer os direitos assegurados, para que eles saiam do papel e transformem a realidade.
4. Cidadão ou usuário: novos dilemas da globalização frente à ordem econômica
Usuário, assim como cidadão, também é expressão que tem vários sentidos. No Direito, geralmente indica o indivíduo que faz uso de determinado serviço. Se o serviço for prestado no desenvolvimento de atividade econômica, livre à iniciativa privada, o usuário é, via de regra, protegido pelo Código de Defesa do Consumidor; contudo, se houver um serviço público, o usuário passa da categoria de simples consumidor de determinado serviço e é alçado ao status de cidadão, o que lhe confere mais direitos, entre os quais, menciona ODETE MEDAUAR, o de “exercer controle sobre a organização geral do serviço, exigindo o funcionamento em seu benefício” (MEDAUAR, 2005:152).
Enfatiza, portanto, a autora (MEDAUAR, 2005:152), que à medida que o serviço público é atividade de interesse geral, indispensável à coesão social e à democracia, atendendo às necessidades coletivas essenciais, o usuário do serviço emerge com vários direitos, não podendo ser equiparado a simples cliente ou consumidor. As relações de mercado não se compatibilizam com a noção de solidariedade e, conseqüentemente, de igual acesso ao serviço público, pois este é instrumento que tem por finalidade objetivos sociais, como a redução das desigualdades sociais, econômicas e culturais.
Contudo, note-se que o Estado passou, a partir da década de 80, tendo por epicentro os choques do petróleo da década anterior, e, no Brasil, a partir da década de 90, por um processo de globalização e contenção da expansão do modelo de Bem-Estar Social, o que se deu por uma gama variável de fatores.
Entre os vários fatores que se relacionam com a globalização e a privação do poder interventivo do Estado nacional, menciona HABERMAS[8]: (a) a perda da capacidade de controle estatal, pois o Estado isolado não concentrava forças para defender seus cidadãos contra efeitos de decisões de atores externos ou contra os efeitos em cadeia de processos que tinham origem fora de suas fronteiras; (b) crescentes déficits de legitimidade no processo decisórios, pois com a globalização muitas decisões políticas foram subtraídas das arenas nacionais e passaram discutidas em decisões interestatais; e (c) progressiva incapacidade de o Estado dar provas de ações de comando e organização em face de mercados globalmente ilimitados e de fluxos acelerados de capital que, isentos do dever de presença nacional, retiravam-se de uma economia tão logo sentiam-se ameaçados, onerando, sem possibilidade de intervenção estatal, a garantia de empregos e, portanto, os padrões econômicos e sociais de uma nação.
A América Latina sofreu na década de 90 os efeitos da pressão internacional para que ocorresse um movimento de privatização e de liberalização de diversos setores de atividades que antes eram consideradas serviços públicos para o domínio do livre mercado, para que o Estado ajustasse suas contas externas.
Mesmo aqueles serviços públicos que não foram diretamente privatizados, em face do déficit estatal e da pressão internacional, passaram a ser alvo de delegação para empresas privadas, via de regra, mediante concessão de serviços públicos. Assim, nota-se que, paulatinamente, o caráter de gratuidade da prestação de serviços públicos à população passou a ser tratada no direito público como princípio da modicidade das tarifas, para que se resguardasse ao prestador o caráter lucrativo de seu contrato, o que significou em termos sociais mais ônus e encargos e maior restrição no acesso ao serviço para grande parte da população pobre.
Atualmente, no início do século XXI, os cidadãos brasileiros se deparam com inúmeras perplexidades: ao mesmo tempo em que houve um significativo avanço proporcionado pelos instrumentos de caráter democrático, previstos direta ou indiretamente pela Constituição de 1988, o mundo se deparou com uma crise financeira iminente que ameaça de desemprego inúmeros setores, o que se refletirá sobre o desenvolvimento econômico e sobre a acessibilidade dos cidadãos aos serviços ofertados, seja pelo regime de mercado ou mesmo através da delegação de serviços público.
Por outro lado, a América Latina, diante da crise financeira que afeta economias centrais, se viu na necessidade de repensar a adoção indiscriminada, defendida pelo neoliberalismo, de modelos de desenvolvimento econômico totalmente dependentes de processos transfronteiriços, tendo em vista, entre outros fatores, a timidez da consolidação de uma noção de cidadania universal, pautada no respeito à igualdade entre nações. Houve a percepção generalizada de que a utilização da força bélica não foi arma descartada do cenário internacional, sobrepondo-se, lamentavelmente, em diversos casos, à desejada busca de solidariedade entre nações, que justificaria maior integração.
Entretanto, nota-se que mesmo diante de tal percepção, os Estados nacionais de países em desenvolvimento continuaram, em sua maioria, incapazes de suprir adequadamente a demanda por serviços públicos que atendessem às necessidades básicas de sua população, e buscam na iniciativa privada parcerias capazes de preencher essa carência.
5. Atendimento jurídico gratuito nas Faculdades de Direito
O art. 5º, LXXIV, da Constituição de 1988 estabelece que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. A instituição estatal incumbida constitucionalmente da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados, é a Defensoria Pública (art. 134, caput, CF).
O atendimento jurídico gratuito permite o acesso à justiça dos necessitados e, conforme expõe FELIPE DOSSIN ALVES[9], é um dos pilares da cidadania. Em um país de elevado grau de desigualdade social, onde grande número de pessoas vive abaixo da linha da pobreza e a renda está concentrada nas mãos de poucos, é de fundamental importância que haja uma instituição que se preocupe em efetivar os direitos dos necessitados.
Contudo, como bem enfatiza o autor, via de regra, considera-se que apesar de a Defensoria Pública ter exclusiva prerrogativa para tratar da matéria, ela não detém o monopólio da assistência jurídica aos que não podem ir à Justiça por seus próprios meios, pois também podem prestar tais serviços à população carente: os sindicatos, o procon, os serviços sociais, os advogados e, sobretudo, as faculdades de direito.
A prestação de assistência jurídica gratuita pelas faculdades de direito é uma atribuição que é geralmente desenvolvida pelo Núcleo de Prática Jurídica. Este é órgão de criação obrigatória, conforme determinação contida no art. 2º, §1º, IX, da Resolução CNE/CES nº 9/2004, que desenvolve atividades reais e simuladas que integram o eixo de formação prática de todos os projetos pedagógicos dos cursos de Direito do País.
Os Núcleos de Prática Jurídica também podem abarcar um anexo dos Juizados Especiais, desde que a Instituição de Ensino Superior celebre convênio com os Tribunais de Justiça dos Estados nos quais se localizam.
Do ponto de vista dos acadêmicos, as atividades do Centro de Assistência Jurídica propiciam não apenas o treinamento técnico indispensável para sua qualificação para o trabalho, mas o preparo necessário para o exercício da cidadania, uma vez que promovem a inclusão jurídica de muitas violações vivenciadas pela população, alcançando, portanto, os objetivos constitucionais da educação, conforme determina o art. 205 da Constituição Federal.
O NPJ propicia o desenvolvimento de habilidades cujo aprimoramento é desejado pela Portaria MEC nº 1.784, de 17 de dezembro de 1999, que tem como referência para o perfil do graduando em Direito a formação humanística, técnico-jurídica e prática, sendo esta última indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais.
Também é desenvolvido senso ético-profissional, associado à responsabilidade social, por meio da compreensão da causalidade e da finalidade das normas jurídicas bem como da busca do aprimoramento da sociedade, o que permite aos acadêmicos tomarem consciência dos problemas de seu espaço e tempo.
Do ponto de vista dos assistidos, trata-se de importante ação no sentido de garantir gratuitamente o direito à assistência jurídica integral, dentro do objetivo de proteção e promoção da dignidade e do respeito aos direitos. Direito à assistência jurídica não implica apenas a promoção de ações jurídicas no âmbito jurisdicional, mas também a busca por consultoria jurídica da população carente.
Contudo, para que o direito à assistência jurídica seja tratado à altura de sua previsão constitucional, o assistido deve ser tido como cidadão-usuário do serviço prestado. Significa dizer que ele é usuário de um serviço, mas se reveste do status de cidadão, e não de consumidor. Se fosse apenas consumidor, seria cliente dos serviços prestados gratuitamente, contudo, como é cidadão, possui direito assegurado no ordenamento jurídico, que se não for prestado por outras instituições, deve ser preenchido adequadamente pela prestação estatal.
Assim, os assistidos não devem ser tratados como mero objeto ou de forma hierarquizada, como se “ficassem devendo” àqueles que se propõem a desenvolver gratuitamente atividades de prestação desse importante serviço público, mas devem ser vistos da perspectiva de cidadãos, que merecem tratamento digno e ativo no processo de busca e afirmação de seus direitos.
6. Perplexidades: Defensoria Pública, Ordem dos Advogados, Faculdades de Direito e Resolução nº 62/2009
Fenômeno recente, freqüentemente noticiado na mídia, que não pode deixar de ser mencionado quando se aborda a questão da prestação de assistência jurídica aos necessitados, são as barreiras corporativas que são vivenciadas, não apenas no Brasil, mas também em diversos outros países do mundo.
Causou perplexidade, por exemplo, a situação ocorrida em meados de 2008, quando a Defensoria Pública de São Paulo não atendeu proposta de reposição inflacionária e conseqüente reajuste da Tabela de Honorários do Convênio com a Ordem dos Advogados da seccional de São Paulo, e esta última instituição suspendeu o atendimento de advogados à população carente, como forma de pressioná-la para conseguir os ajustes pleiteados.
O Convênio de Assistência Judiciária entre Defensoria e OAB existe desde 1986, tendo sido celebrado inicialmente com a Procuradoria Geral do Estado que, antes da criação da Defensoria, acumulava as funções de defesa do Estado com a prestação de assistência jurídica gratuita, antes feita pela Procuradoria de Assistência Judiciária – PAJ. Em 2006, o convênio foi transferido para a Defensoria Pública.
Ocorre que, como a Defensoria Pública é instituição ainda relativamente nova, que conta, na atualidade, com cerca de quatrocentos defensores, ela não está ainda estruturada para atender ao grande contingente de população carente de todas as regiões geográficas do Estado de São Paulo, necessitando de força de trabalho suplementar para viabilizar os ditames constitucionais. Já a OAB[10] afirma contar com 47 mil advogados envolvidos no convênio, que atendem em 313 pontos espalhados pelo Estado de São Paulo.
Tendo em vista o término do Convênio, a Defensoria decidiu cadastrar unilateralmente advogados para auxiliarem em seu importante múnus constitucional, fixando unilateralmente os valores da tabela. A Ordem dos Advogados de São Paulo impetrou mandado de segurança com pedido liminar, e conseguiu em decisão datada de 29 de julho de 2008 para que a Defensoria suspendesse os efeitos do edital de cadastramento de advogados, sob a alegação de que, de acordo com o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo, a designação dos advogados deveria ser feita pela Ordem dos Advogados do Brasil – SP.
Assim, enquanto a OAB culpou a Defensoria pela ausência de renovação do contrato, a Defensoria atribuiu à OAB a culpa, alegando que esta última não aceitou a majoração no valor proposto que recomporia os efeitos da inflação. Ademais, a Defensoria Pública afirmou que com o valor gasto com o Convênio poderiam ser contratados mais de quatro mil defensores públicos substitutos, número mais do que suficiente para o integral atendimento à população de baixa renda do Estado. Segundo estudos realizados[11], para atender o contingente demandado, na velocidade eficiente de trabalho da Defensoria Pública, seriam necessários 1.600 defensores nos quadros da instituição.
Assim, de acordo com os dados levantados pela Defensoria Pública o convênio celebrado com a OAB é mais custoso para o Estado do que o modelo público de prestação de serviços, pois enquanto os gastos atingiram a marca de 272 milhões de reais em 2007, a Defensoria, com a atual estrutura, atende 850 mil pessoas com o dispêndio de 75 milhões por ano, o que representa menos de 30% do valor gasto com o convênio.
Note-se que com a proliferação nos últimos dez anos[12] de cursos de Direito no país aumentou significativamente o número de bacharéis e, portanto, de advogados, sendo que muitos deles passaram a depender financeiramente do Convênio celebrado com a Defensoria.
Assim, no caso ocorrido, ao mesmo tempo em que a OAB pressionava a Defensoria Pública para que houvesse melhores condições para aqueles advogados que prestavam assistência jurídica à população carente, ela (OAB), via de regra, também se preocupava, com base em sua atribuição de entidade de classe, especialmente em subsecções pequenas, que as faculdades de Direito não retirassem o “sustento” de muitos advogados com a prestação gratuita dos Núcleos de Prática Jurídica.
Diante do cenário relatado em breves linhas, apesar da legitimidade das reivindicações tanto da Defensoria Pública, como da Ordem dos Advogados do Brasil, as notícias veiculadas pela mídia davam a impressão de que os atritos institucionais refletiam mais uma briga por mapeamento de espaços e garantia de interesses corporativos do que a legítima preocupação com a demanda urgente de atendimento jurídico aos necessitados, que são aqueles que mereceriam ser o foco de preocupações.
Para mitigar essa situação conflituosa e pacificar, na medida do possível, a situação, editou o Conselho Nacional de Justiça, em 10 de fevereiro de 2009, a Resolução nº 62, que trouxe também para o âmbito do Poder Judiciário, diretamente pelos Tribunais ou mediante convênio de cooperação celebrado com as Defensorias Públicas, a atribuição de cadastramento e estruturação dos serviços de assistência jurídica gratuita.
A resolução especifica em seus “considerandos” que não se ignora o papel de destaque da Defensoria Pública na garantia de acesso à Justiça a todos os necessitados, mas tendo em vista o processo, em curso, de fortalecimento da instituição, que ainda não possui estrutura compatível com a demanda de serviços, faz-se necessária a adoção de medidas imediatas voltadas a garantir a todas as pessoas o pleno exercício de seus direitos e a ampla defesa de seus interesses.
O art. 1º da Resolução CNJ nº 62/2009 prevê meios para que haja o cadastramento de advogados voluntários interessados na assistência jurídica sem contraprestação pecuniária, o que ataca ao menos a indagação do excessivo custo do convênio para os cofres públicos, que é um argumento forte apresentado pela Defensoria Pública, tendo em vista que o STF, na ADI 1194, já reconheceu que os honorários têm natureza disponível.
No que concerne às faculdades de Direito, estabeleceu o art. 6º da Resolução CNJ nº 62/2009, que poderão firmar, na forma da lei, convênios ou termos de cooperação com os tribunais para viabilizar a prestação de assistência jurídica voluntária, em espaços para atendimento ao público destinados e estruturados pelo Poder Judiciário ou pelas próprias instituições.
A resolução também enuncia o que já era praxe nas Instituições de Ensino Superior que prestavam esse importante serviço à comunidade, isto é, a assistência realizada por estagiários sob a supervisão de advogados orientadores contratados e inscritos regularmente na Ordem dos Advogados do Brasil, todavia, agora se exige o cadastramento do orientador nos termos do art. 1º da resolução.
Note-se que a responsabilidade técnica das atividades prestadas pelos acadêmicos recairá, conforme dispõe o art. 7º da Resolução, sobre os respectivos orientadores das atividades, devidamente cadastrados, sendo de dois anos o prazo máximo para permanência e atuação voluntária dos estagiários vinculados às instituições de ensino conveniadas.
Tendo em vista a preocupação com a demanda de assistidos e com a racionalização da prestação voluntária, os tribunais deverão consultar, de acordo com o conteúdo os parágrafos do art. 10 da resolução, as Defensorias Públicas das diversas localidades, para a identificação dos locais e temas de maior carência na prestação da assistência jurídica, podendo inclusive organizar, ouvida também a administração penitenciária local, advocacia voluntária nas unidades prisionais.
Também há a previsão, no art. 14, de que o Poder Judiciário, em colaboração com a Defensoria Pública e as Instituições de Ensino, organize periodicamente cursos de atualização nas especialidades reclamadas pela demanda forense.
A notícia da cobrança de honorários, despesas ou quaisquer valores do assistido, dispõe o art. 12, parágrafo único, da resolução, pelo advogado ou estagiário voluntário, ensejará a comunicação imediata à Seccional local da OAB.
7. Pesquisas realizadas na prestação dos campi da UNIBAN
O Grupo de Estudos em Direito realizou pesquisa de campo no período de fevereiro de 2007 a dezembro de 2008 que objetivou mapear o cidadão-usuário dos Centros de Assistência Jurídica – CAJ dos diversos campi da UNIBAN, no que concerne ao perfil, anseios e expectativas, bem como à visão da cidadania e dos meios de solução de conflitos além daqueles tradicionalmente ofertados pelo sistema de justiça.
A partir de formulários discutidos internamente, elaborados criteriosamente e preenchidos pelos usuários, de forma indiscriminada, foram elaboradas trinta tabelas que fornecem um cenário ilustrativo da visão do usuário e de sua relação com o sistema de justiça, mensurando o impacto gerado pelas atividades de assistência jurídica gratuita desenvolvidas na UNIBAN e seu efeito na construção da cidadania.
As pesquisas realizadas buscam promover reflexões científicas com dados empíricos no aprofundamento do estudo do direito à assistência jurídica integral e gratuita, dentro do enfoque da primeira onda de acesso à justiça (CAPPELLETTI, 1988, passim), contribuindo para a divulgação do conhecimento dos problemas jurídicos enfrentados pela sociedade brasileira. Tal pesquisa pode servir de base para o auxílio solicitado pelo Poder Judiciário no seu múnus de mapear as carências encontradas e o perfil do assistido, para que haja política pública eficaz de assistência jurídica integral aos necessitados, conforme intenção revelada pela Resolução CNJ nº 62/2009.
Constatou-se que as ações mais ajuizadas pelos assistidos do CAJ são: investigação de paternidade, cumulada com alimentos, execução de alimentos, ação de separação, ação de divórcio, ação de guarda, tutela, ação de interdição, ação de regulamentação de visitas, ação de adoção, retificação de registro civil, alvará judicial, ação de retificação de registro público, ação de tutela e curatela e medidas cautelares.
O perfil dos assistidos constitui-se majoritariamente de mulheres e seus filhos menores, sendo a renda familiar de 45% dos assistidos de aproximadamente dois salários mínimos. No quesito informação sobre os direitos, nota-se que quase um terço dos pesquisados não tinha conhecimento do conceito de cidadania e nem de seus direitos.
8. Desafios no atendimento jurídico gratuito como promoção de inclusão jurídica no século XXI
Constata-se das pesquisas realizadas que parcela significativa de usuários dos serviços de assistência jurídica ainda não tem consciência de seus direitos e nem de seu papel de cidadão. Assim, apesar das inúmeras violações aos direitos que cotidianamente presenciam quando se dirigem aos locais de prestação de assistência jurídica gratuita normalmente buscam resolver problemas de índole privada, relacionados diretamente com a própria sobrevivência ou a da prole.
Nesta perspectiva, enfatiza BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS que:
“a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas” (SANTOS, 1993:113).
Assim, para que os NPJs possam se tornar centros promotores da cidadania é necessário que além de atenderem aos anseios mais imediatos dos assistidos, promovam medidas de conscientização dos usuários quanto às inúmeras outras possibilidades de efetivação dos direitos que existem.
Muitas das situações enfrentadas, todavia, não podem ser resolvidas apenas no âmbito dos Núcleos de Prática Jurídica, pois elas são reflexo dos problemas estruturais do sistema de justiça que não foi adaptado aos desafios de uma sociedade de massas. Vê-se, portanto, progressivamente, na arena judicial, demandas de parcela da população que não mais veiculam apenas os interesses da elite.
São desafios do atendimento jurídico gratuito, enfrentados não apenas pelos Núcleos de Prática das Instituições de Ensino, mas também pela Defensoria Pública e pelos Advogados que prestam assistência gratuita: (a) transcender o antigo paradigma liberal do sistema de justiça, promovendo uma visão mais adequada em relação às demandas coletivas da sociedade; (b) superar a noção de hierarquização no tratamento dos usuários, que devem ser alçados à condição de sujeitos ativos no processo de exigência do respeito aos direitos; (c) oferecer meios alternativos para a solução de controvérsias; e (d) promover também, pelos meios existentes, a máxima afirmação de direitos sociais, apesar de toda a dificuldade envolvendo sua crise de efetividade, pois sem a garantia deles não há como ocorrer verdadeira inclusão social e jurídica.
Conclusões
O usuário de determinado serviço tanto pode ser consumidor, quando o serviço é prestado em regime de mercado, como cidadão, hipótese na qual ele se reveste de maiores direitos, como é o caso, conforme visto, dos usuários dos serviços de atendimento jurídico das faculdades de Direito.
O conceito de cidadania deve ser revisto e ampliado para abarcar não apenas a relação daquele que possui direitos e deveres para com o Estado, mas uma concepção de vertente ativa, que pressuponha a ação consciente das pessoas na conquista de mais espaço público, à medida que cidadania não é conceito pronto e acabado.
Enquanto na Grécia, no auge da democracia, o exercício da cidadania era ideal superior a ser perseguido pelos homens livres, no Brasil, o surgimento do espaço público ocorreu ab ovo de forma distorcida. Assim, existem razões históricas que explicam, mas não justificam, a postura passiva do povo no concernente ao exercício de seus direitos.
A passividade do povo e sua distância em relação à administração da justiça é produto das desigualdades existentes, mas, conforme enfatizou BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, não têm por causa única questões de ordem econômica.
A assistência jurídica prestada pelas faculdades de Direito colabora para promover o acesso à justiça dos necessitados. Contudo, no Brasil, existem perplexidades complexas que envolvem atritos corporativos que acabam, por vezes, gerando obstáculos ao pleno atendimento da população carente. Um dos objetivos da edição da Resolução CNJ nº 62/92 foi regular de forma equânime tais conflitos, trazendo também para a arena do Judiciário, o trato do assunto.
O usuário dos serviços de assistência jurídica gratuita nas faculdades de Direito, conforme pesquisas realizadas, ainda se preocupa mais em pleitear interesses privados do que em desenvolver a cidadania, mediante, por exemplo, a exigência do respeito aos direitos sociais, relacionados com educação, saúde, moradia ou mesmo à adequada prestação de serviços públicos, sendo a maior parte das ações judiciais dos NPJs relacionadas com questões de Direito de Família.
Existem alguns desafios a serem enfrentados pelos integrantes do sistema de atendimento jurídico gratuito que a UNIBAN, por meio de seu Grupo de Estudos em Direito, objetivou mapear, no intuito realizar pesquisas, estudos e sugestões de posturas que colaborem para o objetivo coletivo de inclusão social e jurídica na superação das limitações ao pleno exercício da cidadania e conseqüente respeito aos direitos humanos no Brasil.
Informações Sobre o Autor
Irene Patrícia Nohara
Livre-Docente, Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Professora-Pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho.