Dia 27-11-08 a Câmara dos Deputados promoveu um seminário sobre a “segurança pública”. Um dos palestrantes foi o presidente do STF que externou opinião pessoal no sentido de que o Ministério Público não pode, isoladamente, fazer investigações sigilosas. Só poderia, argumenta, investigar a existência de um suposto crime juntamente com a polícia. Assim mesmo às claras, tudo aberto, isto é, permitindo-se ao investigado completo conhecimento do que ocorre, contra ele, nos autos do inquérito policial.
Obviamente, todo cidadão, pertença ou não à área jurídica, tem o direito de opinar, embora alguns o façam com mais autoridade que outros, em razão dos cargos que ocupam ou dos títulos acadêmicos que possuem. No entanto, nem sempre, automaticamente, aqueles com mais autoridade — acadêmica ou funcional — têm opinião mais acertada — a pouco explicável “pontaria legal” — que as restantes cabeças de seu país.
O bom senso pode, por vezes, avaliar mais acertadamente um determinado fenômeno social, ou legal, que um prestigiado jurista, como é o caso do presidente do STF; ou algum mero “medalhento” — na atrevida e talvez algo despeitada expressão do falecido crítico Agripino Grieco, um inteligentíssimo literato que sempre foi odiado por causa da crítica ácida contra aqueles que permanecem na literatura por mera vaidade e teimosia. Lei, costume e até doutrina podem estar redondamente equivocados, contaminados pela profunda ignorância da época. Ignorância inconsciente, claro — pois do contrário seria má-fé — que só fica evidente, indiscutível, décadas ou séculos depois.
Na Idade Média, em alguns países europeus, as disputas judiciais poderiam ser decididas em duelos, ou “Ordálias de Deus”, combates sangrentos entre dois adversários. Um espetáculo eletrizante numa época em que não havia cinema, televisão ou mesmo saquinhos de pipoca para acompanhar. Sucesso de público, a visão de dois cavaleiros a galope, avançando um contra o outro segurando uma longa lança — ou que outro nome tinha a longa estaca com que derrubaria o adversário. Todos queriam assistir à sensacional disputa “jurídica’. Quem vencesse a luta ganharia a demanda. A explicação “legal’ é que Deus — onipresente e expressão máxima da justiça — não deixaria de favorecer quem estava certo. Uma “mãozinha” divina fortalecendo astúcia e braço vencedores. Cada contendor escolhia a arma, digo, o “instituto jurídico” com que tentaria provar o seu direito: machado, espada, maça, etc. E consta, ainda, que o vencido em um duelo poderia — se milagrosamente vivo — “apelar da decisão”, desafiando, para lutar, o juiz que não o favorecera na sua sentença. Demandantes mais idosos, abonados, medrosos ou flácidos, poderiam contratar um “procurador” valente, forte e hábil para representá-lo na arena, digo, na “audiência’.
Uma outra forma primitiva de se fazer justiça era a seguinte: enchia-se um balde com água fervente e nela jogava-se uma pedra, que obviamente afundava. Aí os demandantes — provavelmente os mais inteligentes não entravam nessa… — teriam que mergulhar o braço nu na água quente e retirar a pedra, que certamente não estava apenas morna. Feito isso, o braço era imediatamente envolto em panos. Depois de determinado número de dias o tecido era removido. Quem estivesse com o braço menos queimado era quem tinha razão. Seria Deus, de novo — segundo a jurisprudência local —, cicatrizando mais depressa quem tinha o direito a seu lado.
Não é à-toa que tais práticas “jurídica” acabaram desaparecendo. Depois foi a vez da desmoralização das confissões obtidas sob tortura, também previstas em lei. Espantosamente, a opção pela tortura como forma de obtenção da verdade ainda conta hoje com alguma simpatia no combate o terrorismo, sob o argumento “prático” de que sem um certo grau de sofrimento físico ninguém vai confessar sua própria culpa. Se o torturado não morrer, “tudo bem, fez-se justiça”.
Na sucessão dos reis com vários filhos, o primogênito é que herdaria o trono. Mas quando nasciam gêmeos qual deles se tornaria rei? A doutrina da época encontrou uma solução: rei será quem saiu em segundo lugar do útero da rainha-mãe. Por que? Porque, à semelhança de duas melancias enfiadas num saco estreito de pano, a fruta que nele entrou primeiro é mais “antiga”, foi concebida primeiro. O gêmeo que, no parto, saiu por último será o rei. Se não era um critério cientifico, era pelo menos prático.
No tema que aqui nos interessa — a possibilidade de promotores de justiça realizarem apuração autônoma, sigilosa — não há porque não permiti-la. Não como norma geral, corriqueira, mas quando tal medida se justifica pelas razões que se seguem e outras que o leitor pode imaginar.
Se, por exemplo, quem está sendo investigado é um policial influente, um político inescrupuloso, um ministro ou financista — enfim, um poderoso —, é evidente ingenuidade presumir que a investigação policial será isenta, nem um pouco influenciada pelo temido investigado. Delegados de polícia e investigadores raramente se atreverão a ir fundo numa investigação contra um chefe de polícia, sabendo que o mundo dá muitas voltas e no futuro poderão “receber o troco”, com perda do cargo ou até mesmo represálias que podem chegar à eliminação física.
Policial investigando policial, nas Corregedorias, pode ser eficaz quando o suspeito tem pouco poder dentro do órgão em que trabalha. Sua eficácia será relativa quando o investigado pertencer à cúpula e tiver poderosas ligações. Daí a necessidade de o Ministério Público dispor de liberdade de realizar, ele mesmo, autonomamente, uma investigação. Como trabalhar — pergunta-se —, sem constantes empecilhos, ao lado de um policial quando o investigado é também um policial, seu colega e ocupando uma posição muito superior à sua? Heroísmo é exceção, não pode ser esperado como comportamento rotineiro de funcionários que dependem de seu emprego para viver.
Quando o suspeito é imensamente rico — e por isso poderoso — essa qualificação também atrapalhará o rumo da investigação com duas cabeças dirigentes. O promotor pode achar que tal ou qual providência — em busca de prova —, é essencial, mas seu colega de investigação, o policial, pode achar que não. Como resolver o impasse, se ambos “comandam” a mesma investigação? Como o promotor poderá saber, com certeza, se o policial, seu colega na investigação, não estará alertando o investigado poderoso sobre o próximo passo da pesquisa? Diz um velho provérbio, que “um excesso de cozinheiros estraga o caldo”.
Igualmente, não teria sentido, quando o investigado é um promotor de justiça, obrigar o policial a trabalhar tendo a seu lado outro promotor. Quando este criasse obstáculo a determinada diligência em busca da prova contra um colega, seria inevitável a desconfiança do policial quanto à real intenção do seu colega de trabalho.
Não há nada de errado, ou desaconselhável, em promotores procederem a investigações próprias. Necessariamente “sigilosas”. Sigilo não é palavrão, é necessidade, pois sem ele o investigado se antecipa e esconde as provas; ou as substitui por outras, forjadas. Alem do mais, investigação “sigilosa”, ao contrário da “pública” — espalhada na mídia —, preserva a reputação do investigado. Caso não se apure nada contra ele, pouquíssimos ficarão sabendo da desconfiança que pesava contra ele. Já com a investigação “pública”, mesmo que nada de errado se constate, sua reputação pode ficar manchada para sempre. E vistas as coisas sob o ângulo de defesa da sociedade, investigações realmente importantes só podem chegar a bom termo se forem conduzidas com muita discrição.
Pergunta-se: Não seria estupidez — com perdão pelo termo — um delegado, ou promotor, dizer a um investigado — acusado de ter matado a esposa — que “depois de amanhã, às 15,00 horas, os investigadores irão ao quintal de sua casa para verificar se ali está enterrado o cadáver”? É evidente que, ocorrendo o alerta, o suspeito removerá o corpo imediatamente, simulando que mexeu na terra por outros motivos. O mesmo se diga de movimentação de dinheiro e outras provas mais sofisticadas. A luta contra o crime é uma forma de jogo. E em nenhum jogo se pode avisar o adversário qual será o nosso próximo movimento.
As investigações policiais, ou realizadas pelo Ministério Público, devem ser, de preferência, realizadas sem prévio aviso ao investigado. Para algumas providências este será convidado, ou intimado. Para outras, não. Só caberá acesso aos autos do inquérito, pelo patrono do investigado, quando este último for preso em razão do inquérito. Isso porque a prisão poderá, em tese, ser abusiva, ensejando um “habeas corpus”. E o acesso aos autos do inquérito — estando o suspeito preso ou com ordem de prisão — só terá pertinência no que se refere ao fato relacionado com a prisão preventiva. Se, por mero exemplo, o investigado é suspeito de dois homicídios e a prisão tem relação apenas com um deles, não há porque permitir ao representante do réu conhecer as provas ou indícios relacionados com o outro homicídio, que não causou a prisão do suspeito.
Concluindo, espera-se que os senhores Deputados meditem, soberanamente — com personalidade, com independência intelectual — sobre o que vão fazer, em termos de legislação sobre a “segurança pública”. Por sinal, a expressão ficou um tanto desvirtuada na reunião mencionada de início. Transformou-se em “segurança individual”.
A preocupação com a segurança pública merece tanta atenção quanto a segurança individual. E no caso das investigações feitas por promotores é desnecessário lembrar o óbvio: que o material probatório colhido pelos promotores, terá que ser juntado no inquérito, ou conjunto investigativo que acompanhará a denúncia. E todo esse material será examinado minuciosamente pela defesa, em juízo, como é corriqueiro em todo acusação. Ninguém, jamais, será condenado por prova desconhecida, escondida, fora dos autos. Não há, portanto o que temer, vistas as coisas com sensatez e boa-fé.
Já o boicote contra uma investigação feita pelo Ministério Público representa um estímulo à impunidade daqueles poderosos que se sentem mais ou menos à vontade para saquear o país. Contam com a força paralisante do medo. Medo “dos de cima”.
Que os senhores legisladores — façamos votos — zelem pela própria reputação intelectual ante futuros cronistas e historiadores. Lembrem-se de que por mais avançados que possamos hoje parecer, nossos netos ou bisnetos poderão caçoar de nós em matéria de sabedoria legislativa. Assim como hoje encaramos as ordálias.
Levando o tema para uma especulação brincalhona sobre a existência de civilizações extraterrestres, seria o caso de se conjeturar sobre um diálogo futuro de historiadores alienígenas. Um deles perguntaria: “Na primeira década do século XXI havia “vida inteligente” no planeta Terra”? O outro responderia, coçando o queixo verde: “Pouca, ligeiramente superior a dos chimpanzés”.
Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo
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