Concurso público e fortuna: sobre a aleatoriedade da vida

“Cuando creemos que tenemos todas las respuestas, viene la vida y cambia todas las preguntas”. MARIO BENEDETTI

Faz alguns anos, Daniel Kahneman, prêmio Nobel de Economia de 2002, explicou em que consiste sua “equação favorita”:

“Êxito = talento + sorte

Grande êxito = um pouco mais de talento + um cúmulo de sorte”

Não é uma ideia surpreendente o fato de que a “sorte” exerce uma influência dramática sobre nossas vidas e com um poder de gerar situações e vicissitudes radicalmente diferentes das que imaginamos, e que uma eficiente preparação diante de uma esperada e provável ocasião favorável é, com toda segurança, a que melhor se corresponde com a sentença de Voltaire de que a sorte “é o que sucede quando a preparação e a oportunidade se encontram e fusionam”.

O que é francamente surpreendente é a difundida má compreensão, deliberada ou não, da ideia de que o futuro é imprevisível, do poder da aleatoriedade em nossas vidas, de que há determinadas coisas que fogem completamente de nosso controle, de que a vida é caprichosa e de que vivemos em um mundo governado principalmente pela fortuna. Parece que em nossa estrutura mental há algo que se rebela contra a ideia do azar e da incerteza. Nosso próprio cérebro se rebela ante a só ou simples ideia de aleatoriedade. Segundo Steven Pinker, como “não há coisas tais como a fatalidade do destino, a predestinação, a providência, o karma, os feitiços, as maldições, os augúrios, as represálias divinas ou as prédicas atendidas, a discrepância entre as leis da probabilidade e os mecanismos da cognição pode explicar por que a gente crê que tais coisas existem.”

Como “seres racionais” nos repele o casual, o fortuito, o acaso; queremos ter uma espécie de controle absoluto para encontrar sentido ao caos do mundo, descobrir o verdadeiro significado dos acontecimentos, em lugar de admitir que, como seres humanos que somos, temos uma habilidade inata para interpretar as coisas a partir do nada e para buscar padrões na natureza que nos enganam para que formemos correlações entre o inesperado, o ridículo e o absurdo.

De fato, porque a ideia de um mundo arbitrário, contingente, indeterminado e completamente impessoal é dura de suportar, necessitamos uma história coerente acerca de causas e acontecimentos; quando algo completamente inesperado interrompe nosso equilíbrio pessoal ou social buscamos ansiosamente uma razão para que as coisas sucedam: demandamos uma justificação a algo místico ou transcendente, nos convencemos de que tem que existir um motivo que explique o sucedido ou, o que é pior, outorgamos a nós mesmos e a outros o balsâmico e ilusório papel de agentes culpados de uma situação que, na maioria das vezes, não tem nenhum responsável.   

Claro que é nossa instintiva capacidade para detectar pautas e relações causais a que nos permite dar sentido ao mundo, isto é, encontrar sentido às nossas observações e utilizá-las para compreender e predizer os acontecimentos. Afinal, a verdade, despida de qualquer complexidade filosófica desnecessária, consiste em (pura e simplesmente) padrões repetíveis e verificáveis. O problema (primeiro) é que às vezes nos excedemos em nosso entusiasmo e nos tornamos extremamente sensíveis no que se refere a ver pautas donde só há ruído aleatório e a encontrar relações causais donde não existem. O segundo problema é que as experiências passadas e a relativa estabilidade do presente são uma referência inútil para prever o futuro: a tendência natural de projetar ao futuro incerto os dados conhecidos e usá-los como guia para tratar de predizer o curso dos acontecimentos não é um procedimento certeiro para enfrentar-se à angústia da incerteza.

Como explica Nassim Taleb, nossa tendência a construir narrações do passado e  tomar como referência os dados do presente (e de crer nelas) faz com que nos resulte difícil aceitar os limites de nossa capacidade para detectar a fração pasmosamente pequena da realidade que nos rodeia, para admitir que se trata de uma faculdade bastante imperfeita e sumamente falível, para captar com toda a claridade a ideia de que nossa percepção e conhecimento do mundo são  limitados, de que existe informação que nos resulta impossível obter e de que o futuro sempre nos brinda com possibilidades inimagináveis sobre as quais, na grande maioria das vezes, não temos nenhum tipo de controle. Uma espécie de “arrogância epistêmica”, provocada pelo círculo positivo da enganosa sensação de (auto) controle, do otimismo pouco realista e da autoestima exagerada, e que nos leva a sobrestimar o que “sabemos”, a infravalorar o que “não sabemos” e a rechaçar a evidência de que todas as coisas são vulneráveis ante a fortuna.

O velho lema dos humanistas florentinos, “Virtú vince fortuna”, indica somente que a virtude incrementa as possibilidades de conseguir aqueles objetivos que requerem esforço, trabalho e sacrifício, mas não garantem nada e nem asseguram sempre o resultado buscado. Nenhuma conquista é firme ante essa que Epicuro chamava “a tirana universal”. Por isso Montaigne advertiu que inclusive em nossos planos e deliberações mais simples, “certamente há de intervir a fortuna, pois não é muito o que pode nossa sabedoria”. A fortuna é onipotente!

Para dizer a verdade, só um néscio consumado ignora o protagonismo que a fortuna tem em todas as coisas humanas. Quem pode negar a circunstância de que a vida, para o bem ou para o mal, toma forma por uma série de acontecimentos esperados e inesperados, e que até as mais insignificantes de nossas decisões têm mais de dois resultados possíveis? Um aspecto da vida cuja importância não se pode negar: a ambiguidade, que cria um espaço flexível ao redor do qual, de outro modo, tudo seria uma verdade indiscutível. Conhecer-se, portanto, é também reconhecer que o êxito ou o fracasso dependem em grande medida de um encadeamento de circunstâncias que escapam ao controle próprio e que são, em grande medida, indiferentes ao mérito pessoal.

Por exemplo, embora encontremos gente que crê que basta uma boa preparação para que as circunstâncias (naturais ou sobrenaturais) sempre conspirem em seu benefício, o certo é que a aleatoriedade, a indeterminação e a incerteza, independentemente da qualidade do candidato, estão sempre presentes e intervêm em todos os concursos, a favor ou em contra. Há ocasiões em que o momento, as circunstâncias, as irregularidades e anulações, a viciosa nota de corte, as características pessoais (psicológicas e fisiológicas, cognitivas e emocionais…), os estados de ânimo e as expectativas dos examinadores, entre outros fatores tão incrivelmente amplos como variáveis e amorfos, constituem uma desgraça e arrasam com anos de formação e preparação, sem que o mérito nem a virtude do candidato sejam capazes de por dique a estes desventurados elementos adversos que se resistem a deixar-se dominar.

E da mesma forma que a evidência empírica joga por terra os mitos da exclusividade do mérito pessoal, da objetividade dos concursos públicos e da previsibilidade dos acontecimentos e circunstâncias em um contexto em que estão ausentes regularidades estáveis (D. Kahneman), a prudência supõe a incerteza, o risco, a fortuna, o desconhecido, o contingente, o fortuito, o indeterminado, o aleatório… Se não logramos entender e aceitar essa realidade, nos veremos encarcerados em um universo perfeitamente predizível que simplesmente não existe, a não ser no interior de nossa própria cabeça. Não podemos, a partir de uma simulação mental de nossa própria pessoa, subir ou elevar-nos sobre nossos próprios ombros. Deveríamos saber que nada pode fazer-nos invulneráveis à casualidade.   

É certo que nossa maneira de ver as coisas e de como nos sentimos em um determinado momento da vida depende em grande medida de como pensamos ou antecipamos o que sentiremos no futuro; quer dizer, que o que se espera é o que importa em realidade (I. Kirsch). Da mesma forma, ninguém nega que as expectativas que temos condicionam consideravelmente o que percebemos e experimentamos no presente, influem em nossa maneira de reagir ante situações concretas, na percepção que temos de nós mesmos e na motivação respeito a acontecimentos futuros.

Mas a memória (tanto a do passado como a do futuro), além de ser uma amiga desleal, distribuída e reconstruída, é frágil e a realidade é mais ambígua e complexa do que aparenta à simples vista. E sucede tudo tão depressa que na maioria das vezes não somos capazes de alcançar ver a relação entre os acontecimentos e nem tão pouco de medir com exatidão as consequências futuras de nossos atos; cremos na ficção do tempo, nos resistimos ao fato de que o presente sempre está aberto a vários futuros e olvidamos que a “fortuna supera em retitude os preceitos da prudência humana” (Plutarco). Não podemos ser donos da sorte ou do azar e não há método humano capaz de domesticá-los.

Com isso não quero dizer que nossas vidas e nossos objetivos vão tomando forma somente sobre a base de acontecimentos arbitrários e desagradáveis e/ou que a fortuna implica arrancar de nossa consciência o fato de que somos responsáveis, ao menos em parte, tanto de nossos êxitos como de nossos fracassos. Simplesmente digo que parecem avançar por um terreno que em boa parte está sem sinalizar. Por exemplo, em que medida podemos prognosticar o êxito de nossa formação e preparação pessoal em um concurso quando unicamente podemos ver até certo ponto e as coisas (perguntas das provas, qualidade dos examinadores, critérios de correção e avaliação, nota de corte, etc.) cambiam antes de que possamos dizer “Surpresa!”? Devemos atuar ou permanecer à margem, observar e sofrer com passividade os avatares dessas situações incontroláveis? Aceitar com tranquila resignação o que a fortuna interponha em nosso caminho ou perseguir tenazmente os objetivos que nos marcamos?

Nestes casos, as decisões raras vezes são tão claras. Um dia nos sentimos ganhadores e dispostos a correr riscos; ao dia seguinte nos sentimos perdedores e os evitamos, mesmo que nossas circunstâncias objetivas não tenham cambiado. O único perigo real é, por fobia ao futuro, permanecer desestimulado durante muito tempo e, sentindo-se insultado pela fortuna, deixar que nosso estado de ânimo decaia cada vez mais, nossos objetivos se dispersem e nossa capacidade de desembaraçar-nos da desesperança e dos sentimentos destrutivos simplesmente fique em suspenso ou desapareça.  

Seja como for, o certo é que nos vemos obrigados a construir o futuro por nossa conta e que não podemos esperar passivamente a que nossos neurotransmissores, indiferentes às contingências da vida, se ponham em marcha. E como só podemos ter uma ideia vaga sobre as probabilidades do ritmo instável e aleatório de nosso incerto devir e que está em nossas mãos não somente o controle de nosso próprio estado de ânimo senão também a capacidade de dirigir nossa atenção e conduta àquelas tarefas que podem ajudar-nos a alcançar o êxito, o melhor a fazer é centrar-nos no “processo” de lograr nosso objetivo, em lugar de antecipar ou tentar predizer o produto final de nosso esforço. Em último termo, isso é quiçá o único que nos está permitido controlar.

O essencial da sorte é sua não disponibilidade; somente está disponível a “atitude”  que uma pessoa possa adotar a respeito: pode abrir-se ou fechar-se ante as casualidades de um desafio, uma experiência, um objetivo, um propósito. Assim que só nos resta aceitar o acaso, trabalhar estoicamente em nossa preparação, ter paciência, saber esperar até que chegue o momento oportuno, saber aceitar em caso de que não ocorra nada e superar no caso de que resulte ser diferente do que se esperava. E o mais importante, tal como disse Steve Jobs, “crer que, de algum modo, tudo acabará encaixando em algum momento em nosso caminho, em nosso futuro”. Somente atuando assim “teremos a confiança para seguir ao nosso coração, ainda que nos conduza por fora dos sendeiros mais transitados”. (L. Mlodinow)

Também deveríamos aprender o que John Keats denominou de capacidade negativa. Esta capacidade que consiste em saber existir, com sensatez e equilíbrio, em meio da incerteza, o mistério e a dúvida, sem proceder a “uma busca irritada [e sempre prematura] do fato e da razão”, sem uma ânsia exacerbada de alcançar quanto antes a certeza, mas também (e fundamentalmente) sem deixar de lutar para que a “vida não mate os sonhos que sonhamos”.

Quer dizer, melhor que recorrer ao imaginário interpretativo, às ilusões positivas (otimistas e “previsíveis”) e/ou às distorções ingênuas da realidade, é tomar diretamente o controle de nossas vidas, de tudo aquilo que possa estar, potencialmente, baixo nosso controle, trabalhar duramente, com determinação e perseverança, com toda a satisfação que isso acarreta. O realmente importante não é o que obteremos, senão em que nos transformamos graças a nossos esforços o que faz com que estes valham à pena.

E em que pese o fato de que o êxito (por exemplo, a aprovação final) dependa de casualidades incontroláveis, das circunstâncias em que se apresentam os desafios e da personalidade de quem os enfrenta, o que efetivamente importa é a entusiasmada sensação de que estamos prontos para brigar por nossos objetivos e convencidos de que, apesar da (ou graças à) fortuna, a cada dia que passa sabemos que estamos dando o melhor de nós mesmos para chegar a ser o que cremos que somos e o melhor que podemos chegar a ser.

Não devemos permitir que a aflição gerada pela “incerteza de saber se   conseguiremos aprovar algum dia” se interponha em nossos valiosos propósitos; há que lutar por eles descartando antigos paradigmas e vias inadequadas. Saber que junto ao “sentido de realidade” existe também um “sentido de possibilidade” é precisamente o que nos permite abrir os olhos respeito às múltiplas alternativas com que a vida nos brinda e o que nos motiva a assumir o compromisso de cumprir nossos desejos pessoais; quero dizer, de empenhar-nos na consecução de certas coisas de uma lista de objetivos pelos quais merece a pena esforçar-se.

Nisso consiste precisamente a esperança: a combinação de “diligência”  e “opções”. As pessoas com grandes esperanças são as que estão dispostas a “atuar” (diligência) e têm o talento para pensar nos “caminhos” (opções) que lhes podem levar até seu objetivo. Portanto, se não temos o controle sobre todas as coisas, sim que podemos controlar nossas próprias ações e dedicar nossa energia a encontrar os caminhos que nos levem ao que desejamos.

A resposta de como enfrentar-se a esse mundo de loucos dos concursos é trabalhar como um louco (a); este é o exemplo perfeito de diligência para atuar. E como tudo na vida, “El que resiste, gana”. (Camilo José Cela)

 

Referências
Blakemore, Sarah-Jayne & Frith, Uta (2005). The learning brain, Oxford: Blackwell Publishing Ltd.
Capella, J. R. (2009). El aprendizaje del aprendizaje, Madrid: Editorial Trotta.
DiSalvo, D. (2011). What Makes your Brain Happy and why you Should do the Opposite, NY: Prometheus Books Publishers.
Droit, Roger-Pol. Vivre aujourd´hui avec Socrate, Épicure, Sénèque et tous les autres, Paris: Odile Jacob, 2010.
Duhot, J.J.  Épictète et la sagesse stoïcienne, Paris: Bayard Éditions, 1996.
Fernandez, A. e Fernandez, M. “Concurso público e o inimigo interior. Fracasso, vontade e resistência”, São Paulo: Editora Biblioteca24horas, 2013.
Jensen, E. (1996) "Brain-Compatible Learning” International Alliance for Learning, Summer 1996, Vol. 3 #2. IAL, Encinitas, CA.
Kahneman, D. Pensar rápido, Pensar despacio, Barcelona: Debate, 2012.
Kandel, E.  En busca de la memoria. Una nueva ciencia de la mente, Buenos Aires: Katz  Editores, 2007.
Kirsch, I. (Ed.) How expectancies shape experience. Washington DC: American Psychological Association, 1999.
Mlodinow, L. Subliminal, Barcelona: Crítica, 2013.
Montaigne, Michel de. Los ensayos (según la edición de 1595 de Marie de Gournay). Barcelona: Acantilado, 2007.
Restak, R. (2013). Grandes cuestiones: Mente, Barcelona: Ariel.
Taleb,  N. N.  The Black Swan, New York: Randon House, 2007.

Informações Sobre os Autores

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB).


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