O objetivo principal desta breve palestra[1] é o de demonstrar, de forma sintética, o perigo da generalização da Teoria do Diálogo das Fontes em prejuízo da eficácia das normas de leis específicas.
Para a solução do conflito de normas temos três critérios clássicos: o temporal, o da especialidade e o da hierarquia, cujos nomes são, por si mesmos, autoexplicativos. Os dois primeiros estão normatizados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, antiga Lei de Introdução ao Código Civil, também conhecida como Normas de Direito Intertemporal ou Normas de Direito Internacional Privado.
Pela pertinência, falemos, em rápidas pinceladas, sobre o critério da especialidade. Algumas matérias, pela sua peculiaridade, não podem ser adequadamente reguladas pela lei ordinária geral. Para maior proteção às relações jurídicas delas decorrentes são editadas leis especiais. São os casos, por exemplo, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Tributário Nacional que funcionam como escudo de proteção dos consumidores e dos contribuintes, respectivamente.
Por isso, em caso de conflitos, as normas da lei de conteúdo especial prevalecem sobre as normas de conteúdo genérico que não têm o condão de revogar as normas da lei específica, salvo quando expressamente assim disponham.
Porém, pode acontecer que no bojo de uma lei geral sobrevenha uma norma mais benéfica do que aquela contemplada na lei especial, para proteção do direito objetivado. Foi pensando nisso que Cláudia Lima Marques importou da Alemanha a Teoria do Diálogo das Fontes para sua aplicação no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.
Essa teoria, que para mim é discutível, quanto à sua autonomia enquanto critério de solução de conflitos, tendo em vista o nosso ordenamento jurídico global pode ser sinteticamente entendida da seguinte forma: a superveniência de norma benéfica na lei de conteúdo genérico incorpora-se na lei de conteúdo especial em nome da coerência do sistema jurídico. Certamente, é uma definição que pode suscitar discussões, mas é o suficiente para a exposição que estamos fazendo.
De fato, se formos examinar os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal naquelas ações judiciais que reclamaram as diferenças de índices nas cadernetas de poupança, decorrentes da aplicação de diversos planos econômicos, como os Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e Collor II, veremos que a Corte rejeitou a prescrição quinqüenal prevista no art. 27 do CDC, aplicando a prescrição vintenária do Código Civil de 1916 então vgente.
Penso que, no caso, independentemente da invocação da Teoria do Diálogo das Fontes, a decisão da Corte Suprema não poderia ter sido outra.
Efetivamente, a defesa do consumidor está inserida no art. 5º, XXXII, da CF como um direito fundamental do consumidor. E o art. 170, V, da CF elege a defesa do consumidor como um dos princípios informadores da ordem econômica que tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Logo, ironicamente, parece-me impertinente a invocação da Teoria do Diálogo das Fontes no âmbito do Direito do Consumidor. O conflito, no caso, deve ser dirimido à luz da interpretação conforme com a Constituição. Aliás, a menção feita pelo art. 7º, do CDC a outras fontes alternativas do Direito não exclui, por óbvio, os dispositivos constitucionais a que já fiz referência.
Essa teoria importada deve ser manuseada com muito cuidado, sempre se atentando para a ordem jurídica global, sob pena de causar danos irreversíveis às relações jurídicas protegidas por leis especiais.
Guardo em meus arquivos alguns acórdãos do Superior Tribunal de Justiça aonde essa teoria é expressamente invocada para afastar o efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal mediante a aplicação do art. 793-A do CPC que não confere esse efeito suspensivo. E mais, mediante sutil distinção entre bloqueio on line e a indisponibilidade de bens, que para mim não existe, aplica-se o bloqueio on line das contas bancárias do executado pelo emprego do art. 655-A do CPC, com a inobservância dos três requisitos básicos previstos no art. 185-A, do Código Tributário Nacional. Esse bloqueio on line tem sido o grande fantasma que vem retirando o sono do empresário brasileiro e alvo de inúmeras discussões na Federação do Comércio, na Federação das Indústrias, no Instituto dos Advogados etc. E, o que é pior, por desconhecimento do direito comum, que distingue a sociedade dos membros que a compõem, esse bloqueio vem recaindo sobre as contas bancárias dos sócios ou administradores, como se existisse ou pudesse existir a chamada solidariedade passiva objetiva[2]. Essa confusão, creio eu, é uma das razões que vem afugentando o investimento estrangeiro no Brasil.
Aplicar as normas do CPC em matéria de execução fiscal representa uma inversão da Teoria do Diálogo das Fontes. A execução civil é fundada em título executivo formado à luz da teoria da autonomia da vontade, ao passo que, a execução fiscal é fundada em título que deriva exclusivamente da lei. Obrigação ex voluntatae, de um lado, e obrigação ex lege, de outro, fez com que o legislador editasse uma lei especial para reger a execução fiscal. Por isso, a incorporação da execução fiscal no bojo da execução em geral pelo CPC de 1973 teve curta duração. Logo ela foi novamente apartada, dando origem à Lei nº 6.830/1980 que vigora até hoje, apesar das tentativas de sua destruição.
Desde o Decreto-lei nº 960/1938 até hoje tem sido observada a tríade tradicional: segurança do juízo, embargos à execução e a suspensão da execução. Isso, porém, vem sendo, aos poucos, alterado a partir do advento da Lei nº 11.382/2006 que introduziu normas benéficas ao credor nas execuções regidas pelo CPC, mediante aplicação equivocada da Teoria do Diálogo das Fontes.
Em matéria tributária, o legislador infraconstitucional há de observar os inúmeros princípios constitucionais tributários que atuam como limitadores do poder de tributar, dentre os quais o da estrita legalidade, da isonomia (material e processual), da imunidade, da capacidade contributiva, da vedação do efeito confiscatório etc. A execução fiscal, que decorre de um título executivo formado por imposição de lei, nem sempre conformada com a Constituição, além de obediência a princípios tributários expressos e implícitos na Constituição deve, necessariamente, ser precedida da observância dos princípios constitucionais genéricos do devido processo legal, sob o prisma material e processual e do princípio do contraditório e ampla defesa, que abriga, por sua vez, o princípio do duplo grau de jurisdição, como condição essencial para a expropriação dos bens do executado.
Os princípios constitucionais referidos constituem direitos fundamentais do contribuinte que derivam da soberania popular (parágrafo único, do art. 1º, da CF) e, portanto, pairam acima do poder político do Estado.
Logo, o princípio do contraditório e ampla defesa, na verdade, um desdobramento do princípio do devido processo legal, não pode ser alterado por via de interpretação jurisprudencial, nem por Emendas, só comportando modificação para ampliar o leque de proteção dispensado ao contribuinte.
Dessa forma, a aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes no âmbito da execução fiscal é um verdadeiro tiro no pé, municiando o poderoso Estado com mais poderes para retirar coativamente os bens do indefeso contribuinte. Basta um simples exame ocular do Sistema Tributário Nacional esculpido na nossa Constituição Federal, neste particular, sem similar no mundo, para se ter uma idéia da limitação imposta ao Estado no exercício do poder de instituir e de cobrar tributos. Não faz sentido, data vênia, em nome da Teoria do Diálogo das Fontes, municiar a Receita Federal do Brasil, que tem como símbolo o Leão, um animal mais feroz do Planeta, com mais munições do que a lei específica da execução fiscal lhe dispensou.
Concluindo, o nosso sistema jurídico vigente abriga critérios que dirimem superiormente eventuais conflitos de normas: na área da Defesa do Consumidor pela aplicação do critério da hierarquia ou da interpretação conforme com a Constituição e no campo da execução fiscal pelo emprego do critério da especialização, combinado com o critério da hierarquia, só para ficar nessas duas áreas que abordamos nesta breve exposição que fizemos.
Por derradeiro, a faculdade de escolha da fonte alternativa do Direito pelo aplicador que se extrai do art. 5º da LINDB, segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum,” não pode implicar rejeição de normas da lei especial conformada com a Constituição Federal.
Muito obrigado a todos pela atenção dispensada.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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