Resumo: A caça, mesmo sendo uma atividade ilegal, continua sendo praticada em diversas partes do Brasil. No Bioma Caatinga, várias espécies estão ameaçadas por conta dessa prática e, mesmo assim, poucos estudos se dedicam ao tema. As atividades ilegais de caça no semiárido brasileiro muitas vezes geram conflitos entre os atores sociais envolvidos. Desse modo, o presente estudo, realizado em duas comunidades tradicionais na região semiárida do Estado da Paraíba, registrou as principais espécies animais caçadas para fins nutricionais, por serem consideradas perigosas para as pessoas e/ou animais de criação ou por causarem danos econômicos (o que aqui foi chamado de “caça de controle”), e avaliou as implicações dessas práticas em termos de conservação da fauna local, bem como analisou a existência de conflitos socioambientais relacionados à temática, expondo a legislação aplicável.
Palavras-chave: Caça; Conflitos; Legislação
Abstract: The hunt, despite being an illegal activity, is still practiced in many parts of Brazil. In the Caatinga, several species are endangered due to this practice, yet few studies address the issue. The illegal hunting activities in the Brazilian semiarid region often generate conflicts between the involved. Thus, the present study, conducted in two traditional communities in the semiarid region of Paraíba State, reported the main species hunted animals for nutritional purposes, because they are considered dangerous to people and / or livestock or to cause economic damage (the what has been called "game control"), and assessed the implications of these practices in terms of conservation of local fauna, as well as analyzed the existence of environmental conflicts related to the theme, stating the applicable law.
Keywords: Hunting; Conflict; Legislation
Os múltiplos usos dos recursos faunísticos fazem da caça uma das mais antigas práticas ligadas à sobrevivência humana (Alves et al., 2007; Alves et al., 2009). Mesmo a caça sendo considerada uma atividade ilegal no Brasil (Lei nº 5.197/1967), várias espécies continuam sendo abatidas em várias partes do país (Barbosa et al., 2011; Alves et al., 2009; Hanazaki et al., 2009; Guadagnin et al., 2007; Trinca & Ferrari, 2006).
Muitas espécies animais da região semi-árida brasileira (bioma Caatinga) estão ameaçadas de extinção devido à intensa pressão de caça e à degradação de seus habitats (IBAMA, 2003; MMA, 2003). Poucos estudos etnozoológicos têm examinado as atividades de caça na região (Alves et al., 2007) e pouca atenção tem sido relativamente direcionada a essa vertente das interações humanas com a biodiversidade da nação, mesmo que essas atividades representem uma das principais ameaças à fauna local (Leal et al. 2005).
A prevalência de atividades ilegais de caça no semiárido brasileiro gera, por vezes, conflitos entre populações e é, em grande parte, motivada por questões de lazer, econômica e de subsistência, tendo em vista a importância nutricional das carnes provenientes de animais selvagens (Roubik, 1995) como fonte de proteína para as populações humanas (Smith, 1976; Ayres & Ayres, 1979; Martins, 1993; Calouro, 1995; Emídio-Silva, 1998). Além disso, diversos animais são amplamente utilizados para fins medicinais, mágico-religiosos, cosméticos, ornamentais e outros ainda são mantidos como animais de estimação (Alves et al., 2007; Zago, 2008; Alves et al., 2009; Barbosa et al., 2010). Outro fator que estimula a caça de animais silvestres em biomas brasileiros é o seu eventual potencial para atacar seres humanos ou criações domésticos (Barbosa et al., 2011; Palmeira & Barrella, 2007).
Sendo assim, o presente estudo, realizado em duas comunidades tradicionais na região semiárida do Estado da Paraíba, registrou as principais espécies animais caçadas para fins nutricionais, por serem consideradas perigosas para as pessoas e/ou animais de criação ou por causarem danos econômicos (o que aqui foi chamado de “caça de controle”), e avaliou as implicações dessas práticas em termos de conservação da fauna local, bem como analisou a existência de conflitos socioambientais relacionados à temática, expondo a legislação aplicável.
Material e métodos
ÁREA DE ESTUDO
O presente trabalho foi desenvolvido no município de Fagundes (latitude 7°20'45.56"S; longitude 35°47'51.13"W), localizado no semiárido do Estado da Paraíba (Mesorregião Agreste), Brasil. Esse município foi escolhido por ser de fácil acesso e apresentar características predominantemente rurais, com comunidades tradicionais compostas por sertanejos típicos.
O município de Fagundes está inserido na unidade geoambiental da Depressão Sertaneja, que representa a paisagem típica do semiárido nordestino, seu relevo é predominantemente suave-ondulado, cortada por vales estreitos, com vertentes dissecadas. A vegetação é basicamente composta por Caatinga Hiperxerófila com trechos de Floresta Caducifólia e pequenas áreas transicionais de Mata Atlântica e o clima é do tipo Tropical Semiárido, com chuvas de verão e precipitação média anual de 431, 8 mm (CPRM, 2005; IBGE, 2010).
Fagundes possui uma área de 162 km². A sede do município tem uma altitude aproximada de 505 metros, distando 104 Km da capital. O município foi criado em 1961 e possui uma população total é de 11.409 habitantes, sendo 5.942 na zona rural. Seu índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0.559, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano-PNUD – 2000 (CPRM, 2005; IBGE, 2010).
Há cerca de 130 anos atrás, as florestas próximas às comunidades pesquisadas eram muito abundantes quanto aos recursos de caça, o que, consequentemente, moveu parte da população a deslocar-se até lá. Essas pessoas começaram a povoar a região e, desde então, ainda desenvolvem atividades de caça em torno da área. Entretanto, a agropecuária de subsistência é a prática mais comum, com o cultivo de feijão, milho, mandioca e batata doce, e a criação de bovinos, caprinos, ovinos, suínos, galináceos e outros animais (Barbosa, 2010; Alves et al., 2009).
PROCEDIMENTOS
A pesquisa de campo compreendida neste trabalho foi realizada entre agosto e outubro de 2011. A primeira etapa da pesquisa envolveu entrevistas com os moradores das comunidades locais que caçavam animais por diversos motivos; a segunda etapa da pesquisa foi composta de entrevistas com proprietários de terras nas localidades, que se sentiam incomodados ou ameaçados com essas práticas na região. Após os primeiros contatos, informações detalhadas sobre as práticas de caça foram obtidas através da aplicação de formilários semi-estruturadas (Huntington, 2000; Albuquerque & Lucena, 2004), complementados com entrevistas livres e individuais (Marques, 1991; Albuquerque & Lucena, 2004; Mello, 1995; Chizotti, 2000). O formulário semi-estruturado continha perguntas acerca da natureza dos animais que eram caçados, como estes animais eram capturados, e quais as motivações principais da caça.
Os nomes comuns das espécies foram listados conforme mencionados pelos entrevistados, os animais foram posteriormente identificados por: 1) análise dos espécimes doados pelos entrevistados, 2) análise de fotografias dos animais feitas durante as entrevistas; 3) correlação entre os nomes comuns, com o auxílio de taxonomistas familiarizados com a fauna na área de estudo (Alves & Rosa, 2006).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Vinte e duas pessoas foram entrevistadas (19 caçadores e 3 proprietários de terras), com idades variando entre 18 e 56 anos. Os entrevistados citaram um total de 90 animais silvestres que são caçados por diversos motivos na região. As espécies citadas podem ser agrupadas em sete grupos zoológicos – mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes, equinodermos e artrópodes.
Os animais citados se distribuem em dez categorias distintas de uso ou interação: Zooterapia, Etnoveterinária, Uso Cosmético, Uso Místico/Religioso, Criação, Comércio, Alimentação, Ornamentação, Lazer/Esporte e controle.
As principais técnicas de caça e captura mencionadas pelos entrevistados foram a caça com espingarda, com espingarda e cachorro, o uso de armadilhas (arapuca, quixó, visgo e alçapões) e o facheado (técnica praticada a noite, que consiste no uso de fachos de luz para ofuscar os animais enquanto estes são coletados, e que é geralmente aplicada a pequenas aves enquanto estas dormem). Outras técnicas de caça mencionadas pelos entrevistados foram a caça com estilingue, a técnica de espera (que consiste em aguardar o animal em pontos específicos como árvores frutíferas e mananciais de água) e o arremedo (que usa apitos para imitar o canto das aves e assim atraí-las).
Nove espécies animais, segundo os entrevistados, apresentam uma abundância local muito baixa, dificilmente sendo encontrados na região. Com destaque para o Gato Maracajá – Leopardus wiedii, o Veado – Mazama gouazoupira, o Bacurau – Nyctidromus albicollis e o Papagaio – Amazona aestiva.
As espécies que provém maior quantidade de produtos e subprodutos para o homem, usualmente são as mais exploradas (BODMER & PEZO, 2001; ZAPATA, 2001; MILNER-GULLAND ET AL., 2003). Nesse sentido os mamíferos e as aves têm sido os grupos de vertebrados silvestres com maior histórico de aproveitamento (ALVES ET AL., 2009). Em estudo realizado em comunidades indígenas “Tupinambás” no município de Ilhéus, Bahia, Pereira & Schiavetti, (2010) registraram um maior índice de aproveitamento de mamíferos, seguido de aves. Matínez, (2006), em estudos acerca da utilização da fauna silvestre pela comunidade do Petenes, adjacente a uma reserva biológica no Campeche, sudeste do México, também registrou como principais alvos de caça os mamíferos e as aves, como o Veado galheiro – Odocoileus virginianus; o Porco do mato – Tayassu tajacu; o Texugo – Nasua narica; a Paca – Agouti paca e uma espécie de Peru do mato – Agriocharis ocellata.
No presente trabalho, a utilização da fauna silvestre pelos habitantes das comunidades estudadas segue essa mesma tendência, já que as aves e os mamíferos são mais valorizados. Segundo os entrevistados a preferência pela exploração desses grupos faunísticos se dá, sobretudo por dois fatores: a relativa abundância desses animais em comparação com outros grupos de vertebrados e seu porte médio, que implica em um maior retorno de produtos e subprodutos a cada caçada. Trinca & Ferrari, (2006) observaram que os caçadores da Amazônia do Estado do Mato-Grosso também relacionavam os animais abatidos à abundância local e ao porte.
A exploração da fauna silvestre no continente americano tradicionalmente se dá através da caça (MANDUJANO & RICO-GRAY, 1991; ZAPATA, 2001). Essa atividade aliada ao aproveitamento dos animais tem sido reconhecida como uma prática tradicional transmitida de geração a geração (BARRERA-BASSOLS & TOLEDO, 2005; MARTÍNEZ, 2006). O ensino dos modos de captura dos animais, dos melhores períodos de caça e dos locais onde se encontrar cada espécie, bem como das variadas maneiras de se aproveitá-las configura uma prática comum entre os habitantes das comunidades pesquisadas, que executam também a caça como atividade de lazer, de forma costumeira e disseminada culturalmente de geração a geração. As atividades de caça nas regiões estudadas começam na infância quando pequenos animais são caçados como forma de “diversão” com uso de estilingues, ou capturadas em armadilhas e criadas como animais de estimação. Alves et al. (2009b), que realizaram trabalho sobre as estratégias de caça usadas em Pocinhos, semi-árido paraibano, verificaram também o uso, inclusive por crianças, das mesmas técnicas de caça do presente estudo, o que sugere uma disseminação consistente desses métodos na região. Trinca & Ferrari (2006), em trabalho acerca da caça em um assentamento rural na Amazônia mato-grossense também relatam algumas dessas técnicas de captura.
Além da alimentação, mais um estímulo à captura de animais silvestres nas áreas pesquisadas é o valor comercial destes. Algumas espécies de mamíferos, aves e répteis são capturadas e criadas durante algum tempo para engorda e revenda de carne na localidade, entretanto, a maior parte dos animais silvestres listados como criados e comercializados pelos entrevistados é de pássaros canoros. Dentre os animais vendidos, as aves, devido a sua beleza e vocalização (PEREIRA & BRITO, 2005), bem como a sua ampla disseminação geográfica e elevada variedade, são o grupo de animais mais procurados (NOBREGA et al., 2009).
Nas áreas estudadas evidenciou-se uma preferência pela captura e comercialização de pássaros machos. Uma tendência similar foi observada por Rocha et al., (2006), que, em estudo acerca da comercialização de aves em feiras livres de Campina Grande, Paraíba (local onde a maioria dos pássaros canoros capturados na área estudada é revendida), observaram métodos seletivos de captura de pássaros machos para revenda. Segundo Ribeiro & Silva (2007), uma captura acentuada de machos é um fato agravante para o desequilíbrio populacional das espécies de pássaros envolvidos, uma vez que, cerca de 90% das espécies de aves adotam um comportamento monogâmico durante seu período reprodutivo. Logo alterações no equilíbrio reprodutivo das aves nas regiões estudadas podem afetar consideravelmente a biodiversidade local.
O comércio ilegal de animais silvestres é um negócio que movimenta por ano entre 10 e 20 bilhões de dólares (VANNUCCI-NETO, 2000). O Brasil participa deste mercado com cerca de US$ 1 bilhão ao ano, uma vez que sua enorme diversidade biológica, bem como as dificuldades sociais e os motivos culturais fazem do país um dos principais fornecedores de animais silvestres do mundo (GIOVANINI, 2002).
Grande parte dos criadores e comerciantes de pássaros canoros das comunidades pesquisadas apresentou um nível de reconhecimento e percepção bastante elevado no que diz respeito à vocalização das aves. Alguns ainda associaram esse fenômeno à reprodução. Um fato similar é apresentado por Cadima & Marçal Júnior (2004), que em um trabalho de investigação acerca do conhecimento etnoornitológico de habitantes do distrito rural de Miraporanga, Uberlândia, evidenciaram que essa característica repleta de significados presente no canto das aves foi claramente reconhecida por seus informantes. Almeida et al. (2006), em um estudo etnoornitológico realizado no distrito rural de Florestina, município de Araguari, região do Triângulo Mineiro, afirmaram que os moradores da região mostraram conhecer diversos aspectos da biologia e da ecologia das aves, incluindo vocalização, reprodução, alimentação e características comportamentais.
Algumas das espécies utilizadas pelos moradores das comunidades são típicas de ecossistemas marinhos, como, por exemplo, o coral, a estrela-do-mar e o cavalo-marinho. Segundo os entrevistados essas espécies são compradas em mercados públicos da cidade de Campina Grande. O uso de animais marinhos e estuarinos no semi-árido pode ser explicado pela existência de rotas estáveis de comércio de animais entre o norte e o nordeste do país (ALVES & ROSA, 2006). A existência de rotas comerciais é reforçada pelo fato de muitas das espécies registradas nesse estudo serem comercializadas em outras cidades do Brasil (ALVES ET AL., 2008; ALMEIDA & ALBUQUERQUE, 2002; FREIRE, 1996).
No presente trabalho percebeu-se que outro forte estimulador da caça de animais silvestres é o seu eventual potencial para atacar seres humanos, ou criações de animais domésticos. Trinca & Ferrari (2006), em estudo a respeito da caça no assentamento rural Japuranã, município de Nova Bandeirantes, Mato Grosso, notaram que em 14,2% dos casos de abate dos animais, estes eram caçados por predarem criações, caracterizando a caça de controle, ou por serem considerados perigosos aos animais domésticos e às pessoas. Os conflitos entre proprietários de criações domésticas e predadores, provavelmente tiveram início desde que os primeiros animais foram domesticados pelos seres humanos há cerca de 9.000 anos (NOWELL & JACKSON, 1996). Estes conflitos podem ocorrer quando animais selvagens danificam as safras, ferem ou matam animais domésticos, ameaçam ou matam pessoas (PALMEIRA & BARRELLA, 2007).
A conexão com o componente zoológico é permeada de contradições e ambiguidades, pois a fauna nativa tanto pode constituir-se em fonte de recursos quanto ser vista como possibilidade de riscos (MARQUES, 2001). Normalmente, animais carnívoros silvestres não têm o habito de atacar criações domésticas, já que em ambientes que apresentam condições para a sua sobrevivência, esses animais evitam qualquer contato com o homem e suas criações. Entretanto, devido à diminuição de suas presas naturais em virtude da caça predatória e/ou da fragmentação do habitat, os carnívoros podem atacar espécies domésticas (AZEVEDO & CONFORTI, 2002), nesse sentido, foram de suma importância os trabalhos de educação ambiental realizados, no intuito de conscientizar as populações locais acerca do papel de cada ser vivo na manutenção dos ecossistemas.
Legislação aplicável
A degradação ambiental não é algo exclusivo da atualidade. Entretanto, a percepção jurídica desse fenômeno é recente. De fato, nos últimos anos, o direito e a questão ambiental encontraram-se de maneira perceptível. Como aponta Milaré (2004), o Direito apresenta-se como elemento essencial para coibir, com regras coercitivas, atividades que sejam lesivas ao meio ambiente, sempre tendo em mente a idéia de que o Direito procura disciplinar a convivência dos homens em sociedade, como bem ressalta Nader (2003): “o direito deve ser uma expressão da vontade social”.
Tendo em vista estas considerações, neste ponto, partindo-se do arcabouço fundamental do Estado brasileiro, dar-se-á destaque à legislação ambiental nacional, ligada mais diretamente à temática do conflito em análise.
Leite (2006) releva que, no Brasil, qualquer referência que venha a se relacionar com a interpretação do sistema jurídico, deve ter como ponto de partida a Constituição Federal. A estrutura do ordenamento jurídico (positivado) é constituída por um sistema de normas jurídicas escalonadas em diferentes níveis. A Constituição é a norma suprema, que está acima de todas as demais, que são chamadas de normas infra-constitucionais. Estas últimas devem conformidade às normas constitucionais.
A Constituição Federal de 1988 proclamou o meio ambiente como um “direito–dever” da coletividade, uma vez que, conjuntamente com o poder público, esta deverá resguardá-lo, ao ressaltar no artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Desse modo, mesmo não inserido no rol constitucional dos direitos e garantias fundamentais, qual seja, o rol do artigo 5º, tem-se o meio ambiente como um direito fundamental, pressuposto que é para o atendimento de outro valor indispensável, que é o direito à vida, e, como todo direito fundamental, alberga o caráter da indisponibilidade.
A existência do direito pressupõe, pois, além do disciplinamento de condutas, a criação de instrumentos ou mecanismos capazes de resolver os conflitos decorrentes das relações dos indivíduos em sociedade, tendo como base, no país, a civil law, de cunho preponderantemente normativista.
Os avanços percebidos na legislação ambientalista foram precedidos por um movimento de tomada de consciência ambiental, sendo a legislação ambiental brasileira considerada muito abrangente quanto à tutela do meio ambiente, a começar pela Lei Maior, que, como enfatiza Milaré (2004), pode ser chamada de “verde”, pelo destaque dado à temática. Isto sugere que o Estado brasileiro deverá determinar suas ações tendo em vista a proteção (preservação/conservação) do meio ambiente, pois como ordem jurídica fundamental, a Constituição determina o grau de intervenção do Estado na sociedade.
O capítulo destinado ao meio ambiente na Constituição Federal de 1988 colocou-o como um valor ideal da ordem social, ao inseri-lo no artigo 225, com seus parágrafos e incisos, do título dirigido a esta ordem (Título VIII), que tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Santilli (2005, p. 59) aponta que a inserção do capítulo acima mencionado fez a Carta Magna “plantar sementes” dos chamados novos direitos, requeridos em lutas sociopolíticas democráticas, que a autora chama de “direitos socioambientais”, e que a doutrina clássica denominou de “direitos de terceira geração”.
Como relevado, várias leis, relacionadas à temática “meio ambiente”, podem ser encontradas no ordenamento jurídico brasileiro:
(i) A Política Nacional de Meio Ambiente – PNMA (lei nº 6.938/1981): Essa lei teve os seus dispositivos recepcionados pela Constituição Federal de 1988. Ressalta Milaré (2004, p. 381) que a PNMA
“[…] foi, sem questionamento, um passo pioneiro na vida pública nacional, no que concerne à dinâmica da realidade ambiental […]. […] Sua implementação, seus resultados, assim como a estabilidade e a efetividade que ela denota, constituem um sopro renovador e, mais ainda, um salto de qualidade na vida pública brasileira. Seus objetivos nitidamente sociais e a solidariedade com o planeta Terra que, mesmo implicitamente se acham inscritos em seu texto, fazem dela um instrumento legal de grandíssimo valor para o país […].”
O objetivo maior da PNMA é, segundo a redação do caput do artigo 2º, “a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.
O artigo 6º da PNMA traçou uma estrutura político-administrativa que deverá dar suporte as atividades de gestão ambiental no Brasil; trata-se do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), representando uma articulação dos órgãos ambientais existentes e atuantes em todas as esferas da administração pública; em tal estrutura, vale destacar a previsão:
– de um “órgão executor”, que é o IBAMA – órgão federal que tem a finalidade de executar a preservação do meio ambiente nesta esfera;
– de “órgãos setoriais”, que são os órgãos ou entidades estaduais que devem ser constituídos com a mesma incumbência (proteção ambiental);
– dos “órgãos locais”, idêntica incumbência, só que no âmbito dos municípios.
Por fim, de acordo com a Constituição, embora a proteção ambiental seja uma competência comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios, deve-se observar o “princípio da predominância do interesse”, pelo qual caberá: (a) à União tratar das questões de interesse geral; (b) aos Estados (e DF), das matérias de interesse regional e (c) aos municípios, dos assuntos de interesse local.
(ii) Código de Caça (Lei nº 5.197/1967) – De forma geral, proíbe a utilização, perseguição, caça ou apanha dos animais que constituem a fauna silvestre, ou seja, daquelas espécies que vivem naturalmente fora de cativeiro.
(iii) Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) – Capitulou os crimes contra a fauna nos arts. 29 a 37, buscando estabelecer penas que guardassem adequação à gravidade dos fatos – obs.: esta lei descriminaliza o abate de animais destinado a saciar a fome do agente ou de sua família.
(iv) Lei de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/1999) – Tem como grande objetivo ressaltar a importância das práticas pedagógicas para a manutenção do equilíbrio ecológico.
Aplicação da legislação
Como mostrado nas linhas anteriores, embora se tenha um arcabouço normativo de proteção ambiental bem delineado, na PRÁTICA, em Fagundes, o que se vê é bem diferente:
– Ausência da implantação de um órgão local, integrante da estrutura do SISNAMA, para adequadamente encaminhar a gestão ambiental deste e de outros assuntos no município;
– Ausência de ações dos demais atores institucionais – Poder Público municipal, Polícia, MP – quanto à Lei de Caça, Lei de Crimes Ambientais…
Assim, é de se concluir que o Estado tem uma postura de omissão frente ao conflito analisado; o que se tem, na realidade, é a atuação isolada de um “ativista” local da causa ambiental!
Na verdade, o que se observou na referida localidade foi a atuação isolada de um “ativista”, que sozinho desenvolve ações tencionando uma conscientização dos atores envolvidos no conflito.
CONCLUSÃO
Tendo em vista que a lei não se auto-aplica, o estabelecimento, pelo Poder Público de Fagundes, de políticas públicas indutoras de comportamentos coerentes com a manutenção da qualidade ambiental, mostra-se de suma importância para a promoção da proteção da fauna (e do meio ambiente, de forma geral), e, por consequência, para a viabilização de um processo de desenvolvimento da localidade sob bases sustentáveis.
Ademais, considerando-se que através do processo educativo o ser humano passa a refletir a respeito de seu papel e comportamento, dúvida não deve restar que, no âmbito das questões ambientais, a educação é um importante instrumento de mudança, daí uma das possíveis maneiras de se equacionar o conflito em análise também seria a promoção, por parte do Poder Público, de campanhas de educação ambiental, a partir das quais os atores envolvidos no conflito poderiam apropriar-se da importância da efetivação dos preceitos da legislação ambiental.
Informações Sobre os Autores
José Aécio Alves Barbosa
Biólogo, Mestre em Recursos Naturais da Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Tecnologia e Recursos Naturais/ UFCG. Membro do Grupo de Pesquisas em História, Meio Ambiente e Questões Étnicas da UFCG
José Otávio Aguiar.
Pós-doutorando em História pela UFPE; Doutor em história e culturas políticas pela UFMG; professor do curso de graduação, do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em História e do Programa de Pós-graduação em Recursos Naturais (mestrado e doutorado) da UFCG.