Considerações acerca da arbitragem trabalhista.

Este pequeno artigo não tem a pretensão de esgotar a temática acerca da utilização do instituto da arbitragem para os conflitos de trabalho. Antes de qualquer coisa, é fruto das reflexões nas aulas de graduação e pós-graduação, onde as formas extrajudiciais de solução de controvérsias trabalhistas são demonstradas e discutidas como equivalentes à jurisdição, ou mesmo, cada dia com maior convencimento, hoje, como formas jurisdicionais de solução de conflitos, com uma característica distinta do que ocorreu com o advento do Estado positivista[1], são formas privadas de jurisdição, ou seja, tal e qual afirmado em outras oportunidades[2], estamos diante de um fenômeno de privatização da jurisdição.

Neste diapasão, interessante enfrentar o tema inicialmente a partir da atual lei de arbitragem, lei 9.307 de 23 de setembro de 1996. Por certo que a utilização do expediente para solucionar os conflitos, tem como pano de fundo, consoante art. 1º, a disponibilidade dos direitos e a finalidade contratual:

Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Em que pese às mudanças da legislação trabalhista, principalmente após a Emenda Constitucional nº 45, ao tratar da arbitragem quase que compulsória no seu art. 114, § 2º, e a própria lei de greve, 7.783/89, nos arts. 3º e 7º, por exemplo, as relações de trabalho pautadas na sociedade industrial possuem ainda um forte intervencionismo estatal , como aqui no Brasil, pois o Estado, através da lei, define os comportamentos dos sujeitos privados da relação de trabalho, sendo um intervencionismo de equiparação, tornando o direito das relações de emprego impassível de disponibilidade plena.

A disponibilidade ou, na linguagem trabalhista, a flexibilidade existe, mas ainda como uma ante-sala ao processo deliberado de redução das garantias sociais[3], claramente defendido pelos liberais e ao que parece, uma situação inexorável em face também do processo de reindustrialização.

Nesta ordem, a própria legislação ainda se encarrega de limitar a utilização disponível, a menor, dos aspectos qualitativamente mínimos dispostos, como no art. 7º, VI, XIII e XIV da Constituição da República, art. 58-A, § 2º da CLT e art. 1º, da Lei 9.601/98, ilustrativamente.

Sendo assim, por mais que se induza a utilização da arbitragem trabalhista, o instituto não foi criado para este tipo de conflito, pois a disciplina material possui forte intervenção estatal, mesmo que exista permissivo processual do art. 769 consolidado.

Diga-se de passagem, a Lei de arbitragem foi pensada para os conflitos de Direito Comercial, onde os sujeitos possuem plena disponibilidade de utilização dos seus direitos, diferentemente do Direito do Trabalho, onde a teleologia de uma negociação coletiva está no constante diálogo social, tendo como base o marco regulador, uma legislação do trabalho que determina o mínimo existente de equiparação entre patrões e empregados através das suas entidades de classe.

Assim, bem diferente da matéria comercial, no Direito do Trabalho com as características que nós temos, criado no período industrial de relações de trabalho, a disponibilidade negocial é, teleologicamente in melius ao trabalhador, sendo este preceito de pormenorização das regras mínimas, gerais e isonômicas previstas no marco regulador para cada categoria ou grupo de empregadores e empregados. Ou seja, a regra de disponibilidade de direito deverá ser de melhoria da condição social do trabalhador (art. 7º, caput da Constituição), somente excepcionalmente será  in pejus, o que não caracteriza um conjunto de regras passíveis de plena disponibilidade, como pressupõe o citado art. 1º da Lei 9.307/96.

Observado, pois, limites à utilização inclusive das regras seguintes e conseqüentes ao art. 1º da lei 9.307/93.

“Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.

§ 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.

§ 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio”

Tal como disposto na citada lei, a arbitragem é uma ode à autonomia da vontade, onde as partes escolhem procedimentos e bases de solução de controvérsias, acordam quem irá solucionar a controvérsia e onde será definido o conflito, características bem distantes do que ainda se verifica na legislação trabalhista. Nem mesmo o sindicato, como entidade de classe e agente de negociação coletiva, possui disponibilidade para tratar de temas garantidos pela legislação como mínimos de equiparação entres as partes do contrato de trabalho, salvo nos casos acima descritos e em caráter excepcional e mesmo assim esta disponibilidade não é plena.

Por outro lado, como ainda não foi possível a reforma trabalhista de cunho liberal, flexibilista, a mens legis começa a mudar a feição da utilização das normas resistentes, de equiparação entre os sujeitos do tecido produtivo, empregados e empregadores.

Esta modificação do espírito da lei se dá de várias formas. Inicialmente com a perspectiva de modificar a natureza jurídica mista da negociação coletiva[4] e conseqüentemente das fontes de direito decorrentes deste acordo de caráter normativo (art. 611, caput). As normas autônomas coletivas possuem uma natureza cada vez mais privada, em virtude do processo de flexibilização e da diminuição da “vontade” do Estado presente na regulamentação da disciplina laboral,  com características cada vez maior de contratos, disponibilizando o direito em discussão.

Por outro lado, como se fosse do nada, o legislador vem incutindo a idéia da necessidade de utilização das formas alternativas de solução de controvérsias, mas que na prática se tornam uma jurisdição privada. Isto é possível de se entender, uma vez que mesmo não sendo a forma ideal para o conteúdo trabalhista, a idéia da utilização da arbitragem praticamente é aceita sem resistência entre doutrinadores[5], repetindo verdades que não necessariamente se ratificam, como a necessidade de solução mais célere, especializada e que os tribunais estão abarrotados de processos e, logo, os serviços são mal prestados por isso[6].

De se observar que a lógica é a mesma do processo de privatização amplamente deflagrado nos anos  noventa aqui no Brasil, com a “venda” da verdade única de que era preciso privatizar o patrimônio do povo brasileiro para uma melhoria na prestação dos serviços, com maior qualidade e competência em comparação com o que era prestado publicamente, principalmente em virtude da concorrência mercadológica.

Desta forma, como na prática é inegável que o “serviço” prestado pelo judiciário no Brasil não é minimamente razoável, com uma imensa defasagem de qualidade, celeridade e respeito ao cidadão, o que seria mais normal, tal e qual ocorreu com a saúde, a educação, o transporte e a segurança, senão a prestação de um serviço privado e complementar ao prestado pelo Estado, através das formas extrajudiciais de solução de controvérsias, como a arbitragem.

Esta “nova verdade” não necessariamente deverá ser explícita. Melhor dizendo, a utilização da arbitragem trabalhista tendo como instrumento legal a lei 9.307/96, possui uma mensagem subliminar, agregando valores aos intérpretes do direito e usuários, como se fosse a coisa mais natural e certa, a utilização de um instrumento que preza pela plena disponibilidade de direitos, de ordem privada, para a solução de conflitos que possuem característica de ordem pública, o Direito do Trabalho [7].

Caso houvesse a vontade do legislador em utilizar de forma diferenciada o instituto da arbitragem para os conflitos de trabalho, o mais correto e adequado seria a criação de uma lei específica para os conflitos de natureza trabalhista, levando-se em conta as suas peculiaridades e situação de desvantagem do trabalhador diante do ente subordinante.

Ao que parece, a atual “vontade” do legislador é justamente contrária, tendo como pano de fundo uma diretriz liberal; criar o fato e justificar a utilização da arbitragem para tornar o Direito do Trabalho plenamente disponível e ratificar o que já ocorre na prática, a total flexibilização da disciplina jurídico-trabalhista, ou mesmo a desregulamentação, aplicando plenamente os preceitos da autonomia da vontade nas relações laborais de produção.

 

Notas:
[1] Sobre o tema, veja excelente digressão histórica feita por MARINONI, Luiz Guilherme.  Teoria Geral do processo, 2ª edição.  Revista dos Tribunais, 2007, págs. 23 e segts.
[2] (…) no que tange às dificuldades de se efetivar o processo judicial célere e dinâmico, denota-se, por outro lado, um deliberado fenômeno de sua privatização, mais ainda, um deliberado movimento de privatização da jurisdição, sem que este debate seja aprofundado na sociedade, com o fomento às formas extrajudiciais de solução de controvérsias, inclusive com a positivação de preceitos contrários à finalidade de alguns deles, como a obrigatoriedade de solução mediada nas comissões de conciliação prévia no âmbito trabalhista, tendo como paradigma um sistema jurídico democrático. Desta forma, ao invés de se efetivar uma reestruturação física e legal do judiciário e do Direito Processual, respectivamente, se aposta em uma exteriorização ou na sua privatização.  BARROSO, Fábio Túlio. Mediação e arbitragem como instrumentos para a privatização da jurisdição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 35, 01/12/2006 [Internet].
Disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1422. Acesso em 04/04/2008.
Corrobora da idéia de jurisdição não estatal: VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. Poder Judiciário e sentença arbitral, de acordo com a nova jurisprudência constitucional. Curitiba: Juruá,  2004, pág. 47.  A visão errônea e totalitária da jurisdição como atividade exclusivamente do Estado sedimentou-se entre nós, a partir da influência do ordenamento jurídico fascista italiano na formação do nosso direito processual civil moderno. Citando WALD, Arnoldo. Le droit comparé au Brésil. Revue internationale de droit comparé.  Paris, nº 4, dez. 1999, pág. 825..
[3] Esta flexibilização formal das relações de trabalho começou no Brasil com o advento do FGTS em 1966, retomando o fôlego na década de noventa, com a Lei 9.601/98. Contudo, informalmente ela sempre existiu, pois em um país onde cerca de 60% das relações de trabalho são informais, o Direito do Trabalho torna-se um réquiem, pois fadado a nunca acontecer, ou um conjunto de metas a ser alcançadas, mas antes disso já se pretende eliminá-las, com a perspectiva da própria flexibilização e desregulamentação.
[4] Segundo Carnelutti: corpo de contrato e alma de lei.
[5] Veja: SILVA,  Olvídio A. Baptista da. Processo e ideologia. O paradigma racionalista, 2ª edição.  Forense, Rio de Janeiro, 2006, pág. 301.  Certamente a alienação dos juristas e seu confinamento no “mundo jurídico” foram determinados por interesses políticos e econômicos da maior relevância. Não se pode, por isso, pretender a superação do paradigma racionalista sem que as atuais estruturas políticas e econômicas também minimamente  se transformem. A alienação dos juristas, a criação do “mundo jurídico” – lugar encantado em que eles poderão construir seus teoremas sem importunar o mundo social e seus gestores – impôs-lhes uma condição singular, radicada na absoluta separação entre o “fato” e “direito”.
[6] Como se o fenômeno de judicialização da sociedade não fosse de responsabilidade do próprio Estado, principalmente ao não fiscalizar as relações de trabalho e possibilitar uma enorme quantidade de fraudes à legislação específica. (…) Na década de 90 houve um verdadeiro sucateamento do sistema de fiscalização, já que o governo não contratou fiscais e editou portaria que desestimulava sua atuação. Além disso, foi o período em que o governo mais propôs e colocou em prática alterações para “flexibilizar” os direito dos trabalhadoresRevista da ANAMATRA, ano XVIII, nº 53, 2º semestre de 2007, pág. 20. Isto na seara laboral, pois o fenômeno da privatização dos serviços públicos também propiciou um enorme inchamento da máquina jurisdicional, em face do desrespeito das prestadoras de serviço para com as normas específicas e as regras gerais de defesa do consumidor. Além do próprio Estado diretamente contribuir co o fenômeno, no caso da prestação dos serviços públicos questionados, como o caso dos Juizados Especiais Federais.
[7] Não está se discutindo aqui e o Direito do Trabalho possui natureza pública ou privada, na clássica dicotomia. Indiscutível é a presença da “vontade” do Estado através da lei, disciplinando comportamentos entre os usuários do sistema jurídico, característica de ordem pública.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Fábio Túlio Barroso

 

Advogado. Doutor em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Professor da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco – FDR-UFPE (graduação, mestrado e doutorado em Direito), Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (graduação e mestrado em Direito), Faculdade Boa Viagem – FBV (graduação e especialização), Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE e Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região – ESMATRA VI (especialização)

 


 

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