Considerações sobre a aplicação das súmulas 634 e 635 do STF

Resumo: Este artigo trata dos Recursos Especial e Extraordinário Retidos na forma do artigo 542, § 3º do CPC, as formas ventiladas na doutrina e na jurisprudência para sua desretenção, e a exigência do juízo de admissibilidade proferido pelo juízo a quo como condição sine qua non ao processamento da Ação Cautelar perante o STJ, determinada pelas súmulas 634 e 635 do STF.  Por fim, prova-se através da doutrina e das decisões dos tribunais superiores, que apesar da edição das aludidas súmulas pela Suprema Corte, há situações de urgência nas quais não tem cabimento a sua aplicação.


Palavras chave: Processual Civil – Recurso Especial Retido – Destrancamento – Juízo de admissibilidade – Súmulas 634 e 635 STF.


Até o ano de 1993, afirmava-se que o recurso especial era cabível tão-somente contra acórdão proferido em recurso de apelação. Surgiu, então, a súmula 286 do STJ, dispondo que “cabe recurso especial contra acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento”.  


Com a promulgação da Lei 9.756/98, foi acrescentado o § 3º ao artigo 542 do CPC, instituindo-se o recurso especial retido, nos seguintes termos:


“O recurso extraordinário, ou o recurso especial, quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à execução ficará retido nos autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões”. 


Este dispositivo, como se vê, não revogou nem derrogou a súmula 286 do STJ, pois continuou admitindo o recurso especial contra acórdão proferido em agravo de instrumento. Contudo, foi-lhe dada uma nova roupagem: passou-se a exigir que o recurso especial interposto contra decisão em agravo de instrumento, ficasse retido nos autos, postergando-se sua apreciação pelo STJ até eventual interposição e julgamento de recurso especial interposto contra acórdão proferido em recurso de apelação.


Assim, Agripino ajuíza ação ordinária em face de Belmiro, com pedido de tutela antecipada, sendo-lhe esta negada. Inconformado com a decisão interlocutória, o autor agrava de instrumento para o Tribunal de Justiça, o qual, por unanimidade, reforma a decisão do juízo a quo, concedendo-lhe a antecipação de tutela pleiteada, por entender que, no caso, estariam presentes os requisitos do artigo 273 do CPC: “verossimilhança da alegação e fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”. Belmiro, por sua vez, interpõe recurso especial contra este “acórdão interlocutório”[1] [1]. Tendo em vista a redação do artigo 542, § 3º do CPC, deverá ele arcar com os efeitos da tutela de urgência até que o processo chegue ao fim, pois seu pleito somente será julgado pelo STJ em sede de eventual recurso especial interposto contra acórdão que julgar recurso de apelação.


Ocorre que esta retenção do recurso especial, além de ser contrária à garantia constitucional do livre acesso ao Poder Judiciário em casos de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CR/88), poderá gerar danos irreparáveis à parte. Afinal, em algumas situações, como é o caso das tutelas antecipatórias de mérito e de algumas cautelares, postergar o julgamento é o mesmo que não julgar, pois, com o decorrer do tempo, perde-se o objeto da ação. É o que se passa nas ações de despejo, possessórias, busca e apreensão, nunciação de obra nova, etc. Segundo Humberto Theodoro Júnior, “a aplicação do recurso retido tem de ser feita de forma flexível, buscando, acima de tudo cumprir seus verdadeiros objetivos institucionais, e sempre sem prejudicar as garantias maiores de pleno acesso à Justiça e de efetividade da tutela jurisdicional”. (THEODORO JR., 2002).


Assim, para garantia da efetividade da tutela jurisdicional, faz-se necessária uma saída processual que viabilize o julgamento do recurso especial desde logo. Estas situações são dirimidas da seguinte maneira: a parte inconformada com a retenção do recurso ajuíza uma ação cautelar inominada perante o STJ, requerendo a concessão de efeito suspensivo ao recurso especial retido já interposto, e o seu destrancamento (desretenção), a fim de que o mesmo seja remetido imediatamente ao STJ e julgado a tempo: 


“PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. PROCESSAMENTO DE RECURSO ESPECIAL RETIDO (ART. 542, § 3º, DO CPC). 1. A pretensão de ver processado o recurso especial é compatível com a jurisprudência desta Corte, que admite o processamento imediato do recurso, sem a retenção na origem prevista no § 3º do art. 542 do CPC, quando isso for indispensável para evitar que o julgamento postergado acarrete irremediável prejuízo do próprio recurso ou a ineficácia do futuro julgamento do apelo. Precedentes. 2. Na hipótese dos autos, acaso não deferido o provimento vindicado, há risco de prejuízo do próprio recurso, pois, prolatada sentença, o requerente não terá mais como questionar a concessão da tutela antecipada.” (AgRg na MC 14783/RJ – 2008/0215709-9 – Min. Teori Albino Zavascki – 1ª T – DJe 22/10/08).


A base legal para esta cautelar no STJ encontra-se no parágrafo único do artigo 800 do CPC, segundo o qual, “interposto o recurso, a medida cautelar será requerida diretamente ao tribunal”. Ou seja, interposto o recurso, o juízo a quo deixa de ser competente para toda e qualquer medida cautelar.


Esta posição jurisprudencial é avalizada pela mais autorizada doutrina, como se observa em Humberto Theodoro Júnior:


“Não comete, por isso, nenhuma injuridicidade o STJ ou o STF quando, por via de medida cautelar atribui efeito suspensivo a recurso especial ou extraordinário, assim, como, da mesma forma, não exorbita de suas funções, quando destranca recurso incorretamente retido em segunda instância, por meio também de provimento cautelar.” (THEODORO JR., 2002).


Deve-se ficar atento, contudo, ao fato de que, na cautelar, deverão ser feitos dois pedidos: o destrancamento (desretenção) do recurso especial já interposto e a concessão de efeito suspensivo ao acórdão recorrido, ambos com base na existência do periculum in mora e do fumus boni iuris. E não se olvide da possibilidade de ser concedido pelo STJ o efeito suspensivo do acórdão, mas não ser deferido o pedido de desretenção do recurso, os quais não necessariamente andarão juntos.


“CAUTELAR – EFEITO SUSPENSIVO – RECURSO ESPECIAL – RETENÇÃO – PERDA DE OBJETO – ELEMENTOS DO CASO CONCRETO – EXAME. – A retenção do recurso especial ao qual foi concedido efeito suspensivo pelo STJ não prejudica, necessariamente, a medida cautelar. – Essa relação de prejudicialidade deve ser examinada em cada caso, a partir do potencial lesivo do cumprimento imediato da decisão recorrida e da possibilidade ou não de reversão da medida no futuro. – Se a medida é irreversível ou possui grande potencial lesivo ao direito da parte contrária, deve prevalecer o efeito suspensivo, ainda que retido o recurso especial. – O efeito suspensivo persistirá enquanto não se alterem os elementos que conduziram ao seu deferimento ou até que se declare, com segurança jurídica, o vencedor do litígio”.  (AgRg na MC 11868/RJ – 2006/0169870-5 – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – 3ª T – DJ 18/12/2006).


Além da Ação Cautelar, outras três medidas processuais já foram cogitadas para o mesmo fim: a Reclamação, o Mandado de Segurança e o Agravo de Instrumento. Todas elas foram rechaçadas pelos tribunais superiores, e com razão. Senão vejamos: somente se poderia falar em Reclamação se houvesse, no caso, invasão de competência do STJ ou do STF pelos tribunais inferiores (art. 102, I, l, e 105, I, f, ambos da CR). Tampouco se pode pensar em Mandado de Segurança, pois para o STJ, só há duas hipóteses de cabimento originário do mandamus: contra ato de Ministro de Estado e dos comandantes das forças armadas, e contra ato de Ministro do próprio STJ (105, I, b, CR). Da mesma forma, não há que se falar em Agravo de Instrumento, pois, como leciona Humberto Theodoro Júnior,


“para que a impugnação recursal fosse manejada com adequação, necessário seria imputar-se ao Presidente do Tribunal de origem uma decisão contra a lei, mas o que na espécie se questiona não é uma ofensa à norma legal. É o afastamento do preceito da lei que se procura alcançar, por razões institucionais que o tornam inadequado ao desempenho da função constitucionalmente atribuída ao processo”. (THEODORO JR., 2002).


Diante disso, sobra-nos tão-somente o ajuizamento da ação cautelar inominada, expediente de natureza originária, a qual tem sido acolhida pelos tribunais superiores tanto para conceder efeito suspensivo aos recursos retidos, quanto para destrancá-los, determinando-se sua imediata subida.


Um último comentário não pode deixar de ser feito. Doutrina e jurisprudência divergem sobre a possibilidade ou não de apreciação da aludida ação cautelar antes de ser proferido o juízo positivo de admissibilidade do recurso pelo tribunal a quo.


O STF firmou entendimento, do qual tem se valido também o STJ. Sua súmula 634 assim dispõe: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem.” (grifo nosso). A súmula 635, por sua vez, determina: “Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente de seu juízo de admissibilidade” (grifo nosso).


Em sentido contrário às súmulas supra mencionadas, postula Nelson Nery (NERY, 2008, p.1185):


“Portanto, a cautelar posterior à interposição do recurso, ainda que não proferido juízo de admissibilidade, recebendo ou indeferindo o processamento do recurso, tem de ser ajuizada perante o tribunal ad quem, que é o competente para processá-la e julgá-la. A lei não exige que o recurso tenha sido admitido ou recebido para processamento para que o tribunal ad quem seja competente para apreciar e decidir a cautelar.”


E, ainda conforme Nelson Nery: “Com a devida vênia, o STF 634 contraria frontalmente o CPC 800 par.ún.” (NERY, 2008, p.1187) e “Com a devida vênia, o STF 635 contraria frontalmente o CPC 800 par.ún.” (NERY, 2008, p.1187).


Como se percebe, a opinião do notável professor, contrária às súmulas, leva em consideração a sua ilegalidade, frente ao parágrafo único do artigo 800 do Código de Processo Civil.


Contudo, há um outro problema, desta vez de ordem prática, voltado às suas conseqüências. A nosso ver, o grande problema em inadmitir o processamento destas cautelares enquanto não proferido o juízo de admissibilidade do recurso pelo tribunal a quo é que, enquanto isto não ocorre, o “acórdão interlocutório” gerará seus nefastos efeitos. Este espaço de tempo entre o ajuizamento da cautelar e a decisão do juízo de admissibilidade do recurso será potencialmente prejudicial ao recorrente. É dizer: tendo em vista que um dos pedidos da ação cautelar é a concessão de efeito suspensivo ao recurso especial retido, pautada no perigo da demora e, ainda, que a prolação do juízo de admissibilidade do recurso especial pode ser demorada, nada mais incongruente que inadmitir a cautelar enquanto este não for proferido pelo tribunal a quo. Se a cautelar foi ajuizada perante o STJ ou o STF, é porque o recorrente não pode esperar as delongas processuais, dentre elas, a prolação do juízo de admissibilidade. 


Em razão deste paradoxo, e a despeito da edição das súmulas 634 e 635 pelo STF, o STJ tem flexibilizado sua aplicação:


“PROCESSO CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – MEDIDA CAUTELAR – EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL. 1. Esta Corte, adotando entendimento sumulado do STF (Súmulas 634 e 635), só admite suspender os efeitos de acórdão sujeito a recurso especial quando já foi ele admitido; 2. Excepcionalmente, em raras hipóteses, quando a decisão atacada no recurso especial é evidentemente teratológica ou manifestamente ilegal, o STJ tem admitido a sua competência, à vista de omissão do Tribunal a quo, que não responde, positivamente ou negativamente ao pleito acautelatório formulado ao seu Presidente, ou quando não admite a sua competência para o exercício do regular poder de cautela.” (AgRg na MC 10.524/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 7.11.2005, p. 165).


Nesse contexto, destaca-se o entendimento de MARINONI, desvinculando o juízo de admissibilidade do processamento da ação cautelar:


“Se a necessidade de cautelar tivesse relação apenas com juízo de admissibilidade no tribunal de origem, bastaria a decisão de inadmissibilidade para lhe retirar a razão de ser. Acontece que a decisão de inadmissibilidade pode ser atacada através de agravo de instrumento, quando obviamente o agravante poderá estar frente a fundado receio de dano e, assim, ter necessidade de requerer ao STJ ou ao STF tutela capaz de suspender os efeitos da decisão recorrida. Como se vê, o ponto chave para a solução da questão está em que o direito de suspender os efeitos da decisão recorrida se liga ao julgamento do STJ ou do STF e não à decisão do tribunal de origem.”(MARINONI, 2007).


Conclui-se, portanto, que mesmo depois das súmulas do STF, a jurisprudência dos tribunais superiores ainda não foi pacificada, restando hipóteses nas quais a urgência do caso concreto não poderá ceder espaço à taxatividade interpretativa da Suprema Corte no que tange a exigência do prévio juízo positivo de admissibilidade do recurso especial pelo tribunal a quo


 


Referências bibliográficas:

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, v. 2. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

NERY, Nelson Júnior; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. O recurso especial retido. Genesis Revista de Direito Processual Civil, Curitiba, v. 23, n. jan-mar, p. 43-60, 2002.

MARINONI, Guilherme Luiz.  Urgência diante dos recursos especial e extraordinário. Revista Jurídica (Porto Alegre), v. 360, p. 43-54, 2007.

 

Notas:

[1] A expressão “acórdão interlocutório” é utilizada por Alexandre Freitas Câmara, referindo-se ao acórdão proferido em recurso de agravo de instrumento, onde é definido como “acórdão que exerça função processual de decisão interlocutória”, in Lições de Direito Processual Civil, v. 2, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008, p.120.


Informações Sobre o Autor

Regina Ribeiro

Advogada


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