Resumo: O presente trabalho trata da Lei Maria da Penha (Lei 11.340 de 22 de setembro de 2006). Foi editada em conseqüência de antigas lutas pelo combate à violência doméstica contra a mulher e para que o Brasil cumprisse acordos assumidos no plano internacional. No decorrer da pesquisa observa-se que não tem sido fácil a aceitação da referida Lei pela sociedade brasileira, pois, desde que entrou em vigor, surgiram constantes divergências relacionadas à sua constitucionalidade. Desse modo, estuda-se, a Lei Maria da Penha, a origem da sua denominação, a importância dos tratados internacionais para a sua criação, a sua efetividade no plano jurídico, os fatores que deram origem a necessidade de sua publicação e a sua harmonia com a Constituição Federal. Então verifica-se que as críticas feitas a essa Lei são infundadas e que a mesma é comprovadamente necessária, justa e eficaz no combate a violência praticada no âmbito doméstico contra a mulher.
Palavras-chave: Constitucionalidade. Lei. Violência. Doméstica. Mulher.
Abstract: This work is about Maria da Penha’s Law (Law 11,340 of September 22, 2006). It was edited as a result of old struggles for combating domestic violence against women and to comply with agreements that Brazil made at international level. During the survey notes that there has been the easy acceptance of the said Act by Brazilian society, because, since it came into force, differences have emerged in relation to its constitutionality. Thus, looking up, Law Maria da Penha, the origin of its name, the importance of international treaties to its creation, its effectiveness in legal terms, the factors that led the need for its publication and its harmony with the Federal Constitution. Then it appears that the criticisms made by this Act are unfounded and that it is demonstrably necessary, fair and effective in combating domestic violence within against women.
Key-words: Constitutionality. Law. Violence. Home. Womem.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Lei Maria da Penha. 2.1. Por que a denominação Maria da Penha. 2.2. Dos tratados de direitos humanos da mulher assinados pelo Brasil. 3. Da efetividade jurídica da nova norma. 4. Dos fatores culturais: (pre) conceitos enfrentados pelo sexo feminino. 5. Da constitucionalidade da Lei Maria da Penha. 5.1. Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19. 5.2. Do princípio da isonomia. 5.3. Da constitucionalidade dos dispositivos 33 e 41 da Lei Maria da Penha. 6. Considerações finais. Referências
1 INTRODUÇÃO
A Lei 11.340 entrou em vigor em 22 de setembro de 2006 com a denominação de Lei Maria da Penha. Avalia-se que a referida norma jurídica veio tardiamente, pois há anos existem incansáveis lutas na sociedade brasileira que objetivam a proteção da mulher contra as agressões sofridas no âmbito doméstico.
Com a publicação da Lei Maria da Penha, as lutas femininas de combate a violência doméstica ganharam novo enfoque. A batalha a ser enfrentada agora tem como objetivo a incorporação dessa nova Lei na sociedade. Porém isso não tem sido muito fácil, pois contra a nova Lei sugiram inúmeras críticas acerca da sua constitucionalidade que, na realidade, visam a sua expurgação do ordenamento jurídico brasileiro.
Neste contexto, o presente estudo, que se orienta conforme a doutrina jurídica pátria, tem como fundamental objetivo tecer considerações quanto às discussões sobre a constitucionalidade da Lei 11.340/2006. Tal instituto criou mecanismos mais eficazes de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, determinou a não aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n° 9.099/1995) aos delitos abrangidos por ela, estabeleceu a criação de um juízo específico para o processamento da ação penal, entre outras inovações. Desse modo, pretende-se demonstrar a constitucionalidade da referida norma.
2 A LEI MARIA DA PENHA
A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340) entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. Este instituto surgiu no ordenamento jurídico brasileiro para resgatar a cidadania feminina. Parte-se do entendimento de que:
“A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrantes de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida” (MARSHALL, 1967, p.76)
Com propósito de cumprir acordos firmados no âmbito internacional, a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, o Brasil editou a Lei Maria da Penha. No entanto, desde sua publicação, a mesma vem sofrendo críticas constantes com relação à constitucionalidade dos seus artigos 1°, 33 e 41.
Porém, tais críticas não irão sustentar-se por muito tempo. O Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Advogado-geral da União, ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n°19). Esta Ação foi proposta com o fito de resolver definitivamente as divergências sofridas e dar segurança jurídica à aplicação dessa norma.
2.1 Por que a Denominação Maria da Penha
A Lei 11.340 de 2006 recebeu a denominação de Lei Maria da Penha. Possui esse nome em razão de justa homenagem a uma mulher brasileira que, como tantas outras, vivenciou uma dolorosa experiência no seio de sua relação doméstica.
De acordo com Dias (2007, p.13), Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica da cidade de Fortaleza, Ceará, foi vítima de agressões físicas praticadas no âmbito doméstico. Seu marido tentou por duas vezes matá-la e, em conseqüência das incansáveis tentativas de homicídio, deixou em Maria da Penha seqüelas que ela carregará pelo resto de sua vida.
As tentativas de morte sofridas por Maria da Penha ocorreram na década de oitenta. A primeira vez foi em maio de 1983, seu marido simulou um assalto a mão armada contra a indefesa mulher e, como conseqüência do ato, ela ficou paralítica. Por não se contentar com o resultado e pela inércia da justiça diante do primeiro caso, o agressor investiu contra Maria da Penha novamente, dias após a primeira tentativa, pouco mais de uma semana. Na segunda vez, o marido da vítima tentou novamente matá-la, através de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho.
Os fatos foram investigados e a ação penal contra o agressor foi proposta. Ocorre que, por ausência de uma legislação eficaz e de uma justiça mais célere, ele ficou impune por muitos anos. Maria da Penha batalhou arduamente durante 19 anos para ver seu agressor ser punido e, mesmo assim, ele somente cumpriu dois anos de prisão, mesmo tendo atentado contra a dignidade da referida.
2.2 Dos Tratados de Direitos Humanos da Mulher Assinados pelo Brasil
O Brasil é signatário da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
A Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também denominada de Convenção da Mulher, entrou em vigor em 1981. Mas o Brasil somente a aderiu em 1984. Segundo Dias (2007, p.28), esse foi o primeiro instrumento normativo internacional que buscou proteger os direitos humanos da mulher. Já a Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (também conhecida como Convenção de Belém do Pará) foi ratificada pelo Brasil em 1995.
Segundo Cunha e Pinto (2007, p.18), os tratados que versam sobre direitos humanos, quando são assinados pelo Brasil, ingressam no ordenamento jurídico brasileiro com caráter constitucional. Isto está de acordo com o que dispõem os parágrafos 1° e 2° do art. 5° da Constituição Federal.
Neste contexto, também afirma Dias (2007, p.31) que todos os tratados de direitos humanos, sejam ratificados com status de norma ordinária (art. 49, I da CF), seja com validade de emenda constitucional (art.5°, parágrafo 3°, CF), devem ter natureza constitucional. Por esse motivo, conclui a autora, que a Lei Maria da Penha tem natureza constitucional, pois regulamenta direitos assegurados a nível internacional, ratificados pelo Brasil por meio de tratados sobre direitos humanos.
As convenções citadas estabelecem em seus textos que os Estado Soberanos participantes devem eliminar qualquer formas de discriminação contra a mulher, elaborando medidas legais, políticas e programáticas. Recomendam também que cada Estado-membro edite uma legislação especial sobre violência doméstica e familiar contra a mulher.
Pelo o que relata Dias (2007, p.14), a história da Maria da Penha repercutiu no plano internacional. Por esse motivo o Centro pela Justiça de Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM apresentaram conjuntamente denúncia contra o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). O resultado foi uma condenação imposta ao país por não cumprimento das disposições firmadas nos tratados supracitados.
Em conseqüência de todas as pressões sofridas no plano internacional, o Brasil, finalmente, adotou medidas positivas. Assim, indenizou Maria da Penha pelos donos que ela sofreu durante os 19 anos de impunidade e aprovou a Lei 11.340 em 2006, objetivando concluir os compromissos assumidos internacionalmente.
3 DA EFETIVIDADE JURÍDICA DA NOVA NORMA
Com a nova lei, os avanços legais são nítidos. Ela protege com mais efetividade a mulher contra violência doméstica e familiar e o agressor é punido de forma mais severa e eficaz. Além do mais, a Lei Maria da Penha, ampliou consideravelmente o conceito de família e as formas de violência doméstica.
A referida norma modificou o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Os crimes praticados no âmbito doméstico passaram a ser punidos mais severamente (art. 61, II, f do CP). As penas pecuniárias anteriormente aplicadas (pagamento de multa ou cestas básicas), hoje, são expressamente proibidas (art.17 da Lei 11.340/06).
O agressor pode ser preso em flagrante delito ou pode ser posteriormente decretada a sua prisão preventiva pelo juiz, de acordo com o art.20 da Lei 11.340/06 combinado com o art.313, IV do CPP. Ao alterar a Lei de Execução Penal, tal instituto, também, possibilitou ao juiz a determinação do comparecimento obrigatório do réu a programas de recuperação e reeducação.
A ação penal não será mais proposta no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (art. 41 da Lei 11.340/06). Passa a ser exigido dos Estados a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14 da Lei 11.340/06), que possuem competência civil e criminal para julgar os crimes abrangidos pela nova norma. Desse modo, o Juiz terá a competência para apreciar a infração penal e os casos que envolverem questões de família (pensão, separação, guarda dos filhos etc.). No entanto, enquanto não forem instituídos os referidos Juizados a ação será processada nas Varas Especializadas da Justiça Criminal Comum (art.33 da Lei 11.340/06).
Outra importante inovação da Lei é a aplicação das Medidas Protetivas de Urgência (art. 18 ao art. 24 da Lei 11.340/06). São medidas que dão mais efetividade a nova norma e maior segurança a mulher, vítima da violência doméstica e familiar, ao denunciar seu agressor. O juiz poderá conceder, de oficio ou a requerimento, no prazo de 48h, tais medidas (suspensão do porte de armas do agressor, seu afastamento do lar, distanciamento da vítima, entre outras), dependendo da situação.
A Lei Maria da Penha também ampliou o conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro ao incluir as relações homoafetivas no âmbito de sua aplicação, conforme exposto no art.5°, parágrafo único de seu texto. Desse modo, a mulher que estabelece relação homossexual poderá denunciar a sua parceira pelas infrações abrangidas pela norma. Verifica-se, nesse caso, que pode ser sujeito ativo, não somente o homem, mas a mulher agressora.
Nesse sentido é o posicionamento de Cunha e Pinto (2007, p.31):
“Notável a inovação trazida pela lei neste dispositivo legal, ao prever que a proteção à mulher, contra a violência, independe da orientação sexual dos envolvidos. Vale dizer, em outras palavras, que também a mulher homossexual, quando vítima de ataque perpetrado pela sua parceira, no âmbito da família – cujo conceito foi nitidamente ampliado pelo inciso II, deste artigo, para incluir também as relações homoafetivas – encontra-se sob a proteção do diploma legal em estudo.”
Assim também entende Dias (2006):
“No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção.”
Em outro contexto, analisa-se, que as formas de violência doméstica foram estendidas pela nova norma (art. 7° e incisos da Lei em comento), sendo que, além da violência física e psicológica, foi incluída a violência sexual, patrimonial e moral. Determina, ainda, que nos casos de Ação Penal Condicionada a representação da mulher, esta somente poderá renunciar a denúncia perante a autoridade judiciária (art. 16 da Lei 11.340/06). Assim, dificulta-se que ela desista da ação porque esta sendo ameaçada ou por pena do agressor.
Do exposto, conclui-se que a Lei Maria da Penha criou mecanismos verdadeiramente mais eficazes no combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Como conseqüência, a vítima sente-se mais segura e amparada ao denunciar, pois ela sabe que a impunidade não ocorrerá e que estará protegida contra novas agressões.
4 DOS FATORES CULTURAIS: (PRE) CONCEITOS ENFRENTADOS PELO SEXO FEMININO
Não é de hoje que se observa a existência de preconceitos contra o sexo feminino. A mulher, perante a sociedade, sempre foi considerada um sexo frágil, submissa a vontade do homem e, sobretudo, conhecida como “rainha do lar”, sendo subordinada e resguardada apenas a este último.
Além da submissão ao homem, verifica-se que a mulher é fisicamente mais frágil, desse modo fica mais fácil prevalecer o domínio masculino. Outros fatores existem para afirmar com mais ênfase a existência de preconceitos contra a mulher, como a religião. Esta, durante séculos, sempre menosprezou a imagem feminina, quando, por exemplo, diz que Eva foi criada da costela de Adão. Deste ensinamento, entende-se que a mulher provém do homem e a ele sempre está sujeita.
Com a evolução da sociedade, a partir das revoluções industriais ocorridas na Europa, houve a necessidade da mulher sair de casa para trabalhar e ajudar o homem a manter a família. No passar dos anos, o sexo feminino passou a reconhecer a sua importância perante a sociedade e assim surgiram a primeiras lutas feministas em busca dos seus direitos, entre elas as de combate a violência doméstica.
No dia 8 de março de 1857, mulheres trabalhadoras de uma fábrica de tecidos localizada na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, em protesto por melhores condições de trabalho, foram reprimidas de forma desumana e violenta. Durante os protestos, as mulheres foram trancadas dentro da fábrica e incendiadas. Aproximadamente 130 empregadas morreram naquele dia. Por esse motivo, o dia 8 de março ficou conhecido internacionalmente como o dia da mulher.
Atualmente, existem na Constituição Federal, expressas garantias que asseguram a igualdade entre os sexos e proteção à família pelo Estado. De acordo com o art.5°, caput, todas as pessoas são iguais perante a lei, afasta-se, dessa forma, qualquer tipo de preconceito. O homem e a mulher, diante da Magna Carta, também são iguais em direitos e obrigações é o que prever o inciso I do mesmo artigo. O art. 7°, inciso XXX dispõe que são vedadas as diferenças salariais por motivo de sexo. Às mulheres brasileiras também é garantido pela Lei Maior o direito ao voto e a ser votada, segundo o art. 14. Desses artigos, conclui-se que, a igualdade entre os sexos é um direito fundamental constitucional.
O art. 226, caput, estabelece que a família é a base da sociedade e o Estado deve criar mecanismos para a sua proteção. Acrescenta ainda, o parágrafo 8° do mesmo dispositivo, que o Estado deve coibir a violência doméstica e dar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram.
Apesar das previsões constitucionais supracitada, estes mandamentos, por si só, não são suficientes para eliminar toda forma de preconceito contra as mulheres. Na realidade essas discriminações se originam de uma cultura machista ainda existente no dia-a-dia.
Portanto, por ser fisicamente mais frágil que o homem somado aos fatores culturais relatados, apesar de existir garantias de igualdade na própria Constituição, existe um considerável desigualdade na relação “homem versos mulher”. Em razão desse aparente desequilíbrio, surge, então, a necessidade de proteção especial a mulher que, na verdade, é a parte hipossuficiente. Por esse motivo, surgiu a Lei Maria da Penha.
5 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA
É inegável a importância da Lei Maria da Penha para a sociedade brasileira, pois não é de hoje que se sabe dos altos índices de violência doméstica contra a mulher no Brasil.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde – OMS, divulgados pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (órgão criado pelo Governo Federal para a proteção e garantia dos direitos femininos no Brasil), uma a cada seis mulheres no mundo sofrem violência doméstica. Ainda, segundo a pesquisa, até 60% dos casos de violência física foram cometidos por maridos ou companheiros.
Neste contexto, atenta-se para o que diz Dias (2007, p. 16) sobre os dados fornecidos pela OMS:
“Ainda que tais dados sejam surpreendentes, é preciso atentar que esses números não retratam a realidade, pois a violência é subnotificada, somente 10% das agressões sofridas por mulheres são levadas ao conhecimento da polícia. É difícil denunciar alguém que reside sob o mesmo teto, pessoa com quem se tem um vinculo afetivo e filhos em comuns e que, não raro, é responsável pela subsistência da família.”
No entanto, desde sua entrada em vigor, a nova Lei vem sendo alvo de constantes críticas acerca da sua constitucionalidade, inclusive alguns juízes e tribunais têm afastado a sua aplicação. Como exemplo, cita-se a decisão proferida por unanimidade pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul em 2007. O recurso n° 2007.023422-4, interposto contra decisão do juiz da cidade de Itaporã (MS), que não aplicou a Lei Maria da Penha ao caso por considerá-la inconstitucional, foi julgado pelo 2ª Turma Criminal do referido Tribunal, na qual, manteve, por unanimidade, a decisão do juiz singular.
Em comentário a decisão proferida pelo Tribunal do Mato Grosso do Sul, Passos (2007) afirma que os efeitos deste acórdão abrem um perigoso precedente, pois todos os advogados dos agressores podem requerer ao Tribunal a aplicação deste entendimento, isso faz com que a nova lei possa deixe de ser aplicada naquele Estado.
Segundo Santin (2007), a lei não deve deixar de existir, mas enquanto favorecer somente a mulher ela será inconstitucional. O citado autor propõe que o gênero “mulher” previsto na nova legislação deve ser alterado para uma palavra comum de dois gêneros, por exemplo, “cônjuge” ou “coabitante” para que o homem também possa ser beneficiado pela norma.
Por esse motivo, agora, a batalha a ser enfrentada pelas mulheres tem como objetivo a incorporação e aceitação da nova norma pela sociedade brasileira. No entanto, este é um processo extremamente difícil. Somente através de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que declare ser a nova lei constitucional estará definitivamente solucionada esta controvérsia e os Tribunais e juízos de primeiro grau não poderão mais deixar de aplicá-la.
Nesse sentido, o Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União, ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n°19).
5.1 Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19
A Ação Declaratória de Constitucionalidade é uma das espécies de controle de constitucionalidade. No entendimento de Moraes (2005, p.627) “Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou ato normativo com a constituição”.
Introduzida pela Emenda Constitucional n°3 de 1993 e alterada posteriormente pela Emenda n° 45 de 2004. A ADC é proposta, como seu próprio nome diz, com o fim de declarar a constitucionalidade de uma norma infraconstitucional. Desse modo dá mais segurança jurídica e certeza sobre a validade das leis ao serem aplicadas às relações jurídicas. Conforma Moraes (2005, p.690) “Neste ponto, situa-se a finalidade precípua da Ação Declaratória de Constitucionalidade: transformar a presunção relativa de constitucionalidade em presunção absoluta, em virtude de seus efeitos vinculantes”.
O art. 102, inciso I, a, da Constituição Federal preceitua que compete ao Supremo Tribunal Federal, órgão guardião da Constituição, a competência originária para apreciar e julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Segundo estabelece o art. 103 da Constituição Federal, são legítimos para a propositura da referida Ação, as pessoas relacionadas nos seus respectivos incisos, entre elas, o Presidente da República. Silva (2005, p.59) relata que no processamento desta ação não será necessária a intervenção do Advogado-geral da União, como ocorre com a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, pois o Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido.
A petição que deu início a ADC n° 19, foi oferecida no dia 19 de dezembro de 2007, pelo Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União. Este atua na presente causa nos termos do art. 131 da Constituição Federal, ou seja, não como defensor da lei em si, mas como assessor jurídico do Poder Executivo.
Em seu texto, foram analisados a validade de alguns artigos da Lei Maria da Penha com o propósito de declarar harmônicos com a Carta Federal. Primeiramente o art. 1° e o principio da igualdade (art.5°, CF), o segundo foi o art. 33 e a competência atribuída os Estados para fixar a organização judiciária (art. 125, parágrafo 1° e art.96, II, “d”, CF) e por fim o art. 41 e a competência conferida aos juizados especiais para processar e julgar os crimes de menor potencial ofensivo.
A petição da Ação Declaratória n19° argumentou à necessidade uma Lei especial para regulamentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, uma vez que elas são notoriamente mais atingidas do que os homens. Afirmou ainda que a Lei Maria da Penha é um instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, confere, portanto, efetividade a Constituição Federal, pois esta inspira-se em princípios éticos e compensatórios.
Ação Declaratória foi intentada também com pedido de liminar. Ocorre que, segundo relatório proferido pelo Ministro Marco Aurélio, ora relator, no dia 21 de dezembro de 2007, foi negado a sua concessão.
Conforme expõem Moraes, baseando-se em posicionamento do STF (2005, p. 695):
“Uma vez concedida a liminar em ação declaratória de constitucionalidade, não haverá mais possibilidade do afastamento, por inconstitucionalidade, da incidência da lei ou ato normativo federal por parte dos demais órgãos do Poder Judiciária e Executivo, que deverão submeter-se ao integral cumprimento da norma analisada liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, em face dos seus efeitos vinculantes.”
Desse modo, enquanto não for decidida definitivamente a Ação Declaratória n°19 pelo Pretório Excelso, a Lei Maria da Penha poderá ter sua aplicação afastada pelos juizes ou Tribunais que a julgarem inconstitucional. É por esse motivo que se observa a necessidade da referida Ação ser julgada com mais celeridade. Enquanto isso vigora, no plano jurídico atual, quanto à aplicação da nova Lei, certa insegurança jurídica.
5.2 Do Princípio da Isonomia
Dispõe o art. 1° da Lei 11.340 de 2006 que esta norma cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher. Referido artigo torna a Lei Maria da Penha uma norma de aplicação especial. Dessa forma, somente nos casos em que a mulher for vítima estará determinada a sua incidência.
Tem se questionado constantemente a constitucionalidade da lei, em razão do dispositivo acima favorecer apenas o sexo feminino. Pelo fato do citado art. 1° apenas referir-se a proteção à mulher a Lei Maria da Penha vem sendo taxada de inconstitucional. Inclusive, alguns juizes e Tribunais do país, nas suas decisões, estão afastando a aplicação dessa nova norma, como, por exemplo, a já citada decisão do Tribunal do Mato Grosso do Sul. Tais posicionamentos contrários consideram a nova Lei discriminatória, pois ao favorecer apenas aplicação ao gênero feminino (estabelecido pelo art. 1°) afronta diretamente o princípio constitucional da isonomia.
Nesse sentido é o entendimento de Santin (2007):
“Como se vê a pretexto de proteger a mulher, numa pseudopostura “politicamente correta”, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento do homem e da mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segundo categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina.”
Não estão bem colocadas as palavras do respeitado autor, pois, como anteriormente vem sendo afirmando no presente trabalho, a Lei Maria da Penha não veio para desmerecer o sexo masculino e nem para tornar o homem um “cidadão de segunda categoria”. Na realidade, a nova legislação, surgiu com o intuito de punir de forma mais justa o agressor de uma mulher, pois esta, por ser mais frágil está mais sujeita a violência doméstica do que o homem.
O princípio da isonomia está expressamente previsto na Constituição Federal no caput do art. 5° que preceitua o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e no inciso I do mesmo artigo: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
A Constituição, ao estabelecer os artigos supramencionados, apenas tratou da isonomia formal, no sentido de que a lei deve ser aplicada a todos de maneira igual e indistintamente, porque todos são iguais perante ela. Entretanto, para Barbosa e Cavalcanti (2007): “[…] tal isonomia não leva em conta a existência de grupos ditos minoritários ou hipossuficientes, que necessitam de uma proteção especial para que alcancem a igualdade não apenas normativa, mas baseadas nas idéias de justiça”. Essa igualdade, aqui citada, é a isonomia matéria que determina que os iguais devam ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente na medida da suas desigualdades.
A petição da Ação Declaratória n° 19 também argumenta nesse sentido, pois afirma em seu texto que a nova legislação foi editada com vistas a inibir violência doméstica e familiar contra as mulheres, conferindo-se efetividade ao principio da igualdade material, consoante determina a Carta Magna.
Conforme o exposto acima, a mulher, por fatores físicos e culturais sempre esteve, em relação ao homem, numa situação de inferioridade e desigualdade. Por esse motivo ela está mais vulnerável as vontades do homem e ao mesmo tempo mais sujeitas a serem vítimas de violência doméstica. Prova disso são os altos índices de denúncias nas delegacias e nos serviços de assistência social das agressões que ocorrem todos os dias no âmbito das residências domiciliares brasileiras.
No atual ordenamento jurídico, é possível verificar a aplicação da isonomia material, pois existem leis voltadas às minorias da população e que buscam protegê-las de forma mais efetiva e justa. São exemplos dessas normas, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. No mesmo contexto surgiu, então, a Lei Maria da Penha que veio dar proteção especial a mulher, já que a mesma por razões culturais e físicas esta mais sujeita a violência doméstica.
No entanto, a nova Lei por meio do que dispõe seu art.1°, conforme afirma Dias (2007, p. 56), não viola o principio constitucional da isonomia. A existência de tal norma é plenamente justificável, pois, a mulher, como já exposto anteriormente, encontra-se em situação de vulnerabilidade e hipossuficiencia em relação ao homem o que as tornam, portanto, mais sujeitas à violência doméstica e familiar.
Há que ressaltar, ainda, outro importante argumento em favor da constitucionalidade do referida norma. Já é de conhecimento de todos que a Lei Maria da Penha foi editada em conseqüência das incansáveis lutas feministas, mas que também surgiu com objetivo do Brasil cumprir acordos firmados perante a Sociedade Internacional.
Todos os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e que são recepcionados pelo Brasil, seja com natureza de emenda constitucional, seja como norma infraconstitucional, são considerados materialmente constitucionais em virtude do que dispõe o art. 5°, parágrafo segundo da CF.
Portanto, confirma-se aqui, mais uma vez, a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, pois ela regulamenta direitos assegurados internacionalmente e que foram ratificados pelo Brasil através de tratados sobre direitos humanos. Destacando-se, ainda, que a própria lei no art. 6° prever como forma de violação dos direitos humanos a violência doméstica e familiar contra a mulher.
5.3 Da Constitucionalidade dos Dispositivos 33 e 41 da Lei Maria da Penha
Além das constantes críticas quanto à constitucionalidade da Lei 11.340/06, em razão do que dispõe o seu art. 1°, que tem como principal objetivo retirá-la do ordenamento jurídico, outras inconstitucionalidades também são apontadas. Estas últimas estão relacionadas a alguns de seus dispositivos. Os referidos artigos são: 33 e 41.
O art. 33 determina a competência civil e criminal das Varas Criminais da Justiça Comum para processar e julgar as ações decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ocorre que o dispositivo supracitado vem sendo taxado de inconstitucional por ferir regra assegurada pela Constituição Federal no seu art. 2°, que garante a independência entre os Poderes da União, pois o mesmo versa sobre matéria de organização judiciária, ou seja, de competência exclusiva do Poder Judiciário. Segundo argumento dos doutrinadores que defendem a inconstitucionalidade desse dispositivo, lei federal não tem competência para definir organização judiciária criando juizado específico para tratar de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ocorre que, conforme relata a petição inicial da Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19: “a alegação é improcedente, visto que compete privativamente à União legislar sobre Direito Processual (CF, art. 22, I)”. Portanto a determinação da competência fixada pelo art.33 é constitucional, pois regulamenta matéria de direito processual.
Cabe ainda ressaltar que não é a primeira vez que Lei Federal define competência, conforme esclarece Dias (2007, p. 58), pois situações semelhantes já ocorram outras vezes. Como, por exemplo, a Lei 9.278/1996 que definiu a competência das Varas da Família para as causas que versem sobre união estável.
Além do dispositivo supracitado, o art. 41 também é taxado de inconstitucional. De acordo este artigo, os crimes praticados com violência doméstica contra a mulher, não importa o valor da pena, não será aplicada a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais).
A discussão é quanto ao fato de que o mesmo delito ao ser praticado contra um homem conduz a soluções diversas, pois o conhecimento da causa, neste caso, será da competência dos Juizados Especiais, porque é crime de menor potencial ofensivo. Sendo que se praticado contra a mulher deixa de ser crime de menor potencial ofensivo e passará para a competência da justiça comum.
A inconstitucionalidade de tal dispositivo é inexistente visto que, devido aos grandes índices de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher no Brasil, faz-se necessária a adoção de medidas mais severas para punir esta forma de delito. Por se mostrar plenamente ineficaz no combate a violência doméstica e familiar contra a mulher é que a lei Maria da Penha afastou a aplicação da Lei 9.099/95.
Portanto, art.33 e 41 da Lei 11.340/06 são absolutamente válidos. O primeiro é constitucional porque trata de matéria que pode ser regulamentada através de Lei Federal, conforme estabelece o art.22, I da Constituição Federal. O segundo dispositivo, também constitucional, estabelece medida mais eficaz no combate à violência contra a mulher, por punir mais severamente o infrator.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência do presente estudo realizado conclui-se que:
A Lei 11.340 de 2006, denominada de Lei Maria da Penha é válida e deve ser aplicada, por ser constitucional o seu art.1°. Conforme o exposto acima, o mesmo não fere o princípio constitucional da isonomia, tendo em vista que a lei atende a isonomia matéria. Apesar de não estar prevista na Constituição Federal, a isonomia material, é perfeitamente aceita pelo ordenamento jurídico brasileiro e visa elaboração de normas mais justas aplicadas a determinadas pessoas que se encontra em situação de desigualdade diante de outras.
Ressalta-se, também, que são constitucionais os dispositivos 33 e 41 da referida Lei. O art. 33 é válido porque dispõe sobre matéria de direito processual penal que, de acordo com a própria Constituição Federal, é de competência da União a regulamentação da matéria. Assim, o art. 41 é constitucional porque é mais eficaz no combate à violência doméstica contar a mulher.
Desse modo, verifica-se a harmonia jurídica da nova norma com a Constituição Federal de 1988, uma vez que os dispositivos referidos buscam ajustar a situação de desequilíbrio social da mulher em relação ao homem. Por esse motivo impõem condições mais justas, céleres e eficazes para solução dos crimes, na tentativa de minimizar os altos índices de violência doméstica que ocorrem dia após dia no Brasil.
Por fim, conforme afirma Dias (2007, p. 8), “A partir de agora a mulher pode denunciar, sem temer que sua palavra não seja levada a serio. Basta aplicar a nova lei. E, por mais que se tente minimizar a eficácia e questionar a valia da nova emenda, a Maria da Penha veio para ficar”.
Informações Sobre os Autores
Maísa Sá de Andrade
Consultora Jurídica. Bacharel em Direito
Manoel Valente Figueiredo Neto
Mestre em Políticas Públicas –UFPI. Especialista em Gestão Pública. Especialista em Direito Civil. Professor de Direito. Bacharel em Direito e Licenciado em Letras.