Resumo: Neste trabalho se discute o comportamento das finanças públicas dos entes subnacionais brasileiros desde a década de 1980, com especial enfoque para o endividamento público e para o processo de refinanciamento de dívidas sob a égide da Lei n. 9.496/97. Verificou-se, por levantamento bibliográfico, que o neofederalismo adotado a partir da Constituição da República vigente foi determinante para explicar o comportamento do endividamento público de estados e municípios brasileiros no período estudado. A implantação do Plano Real e o crescimento cada vez mais desenfreado do endividamento público fizeram com que a União buscasse medidas no sentido de tornar as contas públicas subnacionais mais racionais e responsáveis. Uma dessas medidas foi lançar um plano de refinanciamento de dívidas, com a edição da Lei n. 9.496/97, a partir do oferecimento de juros subvencionados, em contrapartida à submissão de estados e municípios a um maior rigor fiscal. Entretanto, as condições estabelecidas nos contratos se tornaram insustentáveis com o passar do tempo, especialmente em relação ao indexador e aos juros reais definidos. Com a promulgação da Lei Complementar n. 148/14, no final de 2014, verificou-se uma proposta interessante no sentido de aliviar as finanças públicas das entidades pactuantes e ajustar os termos do contrato aos novos parâmetros macroeconômicos.[1]
Palavras-chave: Finanças Públicas – Dívida Pública – Refinanciamento – Entes subnacionais – Lei Complementar n. 148/14.
Abstract: In this paper, it was discussed the behavior of the public finances of Brazilian subnational entities since the 1980s, with special focus on public debt and the debt refinancing process under the aegis of Law n. 9.496/97. It was found that, for literature, the neofederalism adopted from the current Republic Constitution was crucial to explain the behavior of the states and municipalities public debt in the studied period. The implementation of the Plano Real and the increasingly unbridled public debt growth have made the central government seek measures to make the subnational public accounts more rational and responsible. One of these measures was launching a refinancing plan of debts, with the edition of the Law n. 9.496/97, from the offer of subsidized interest, in contrast to submission of states and municipalities to a greater fiscal rigor. However, the conditions laid down in the contracts have become unbearable with the passing of time, especially in relation to the index and the real interest rates defined. With the promulgation of Complementary Law n. 148/14, at the end of 2014, there was an interesting proposal to alleviate the public finances of entities and adjust the terms of the contract to the new macroeconomic parameters.
Keywords: Public Finances – Debt – Refinancing – Subnational Entities – Complementary Law n. 148/14.
Sumário: Introdução. 1. Desenvolvimento. 1.1. Aspectos teóricos da dívida de estados e municípios. 1.2. O refinanciamento da dívida de estados e municípios. 1.3. A solução se torna um problema. 1.4. O que muda com a Lei Complementar n. 148/14. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
No presente trabalho, se discute o comportamento da dívida dos estados desde a década de 1980 até os dias atuais, com especial enfoque ao processo de refinanciamento das dívidas com a União em 1997. Além disso, serão abordadas, também, as principais inovações trazidas pela Lei Complementar n. 148/14, de 25 de novembro de 2014, que modifica o arcabouço normativo disciplinador dos contratos firmados, oferecendo, em tese, condições mais favoráveis de quitação do saldo inicial.
Na primeira seção, serão apresentados aspectos teóricos na tentativa de explicar o comportamento da dívida dos governos subnacionais brasileiros na época. A ideia que mais prevalece, fugindo à tradicional teoria da dívida pública, é a do federalismo fiscal associada a uma questão moral, visto que os entes subnacionais tinham incentivos constantes a gerar novos endividamentos, como se verá.
Na segunda seção, é apresentado um histórico sobre a evolução temerária do endividamento dos entes subnacionais e sobre as reações do governo central, que culminou na promulgação da Lei n. 9.496/97, a qual autorizava o refinanciamento da dívida de estados e municípios, mediante a submissão a um maior rigor fiscal.
Na terceira seção, serão analisados os fatores que fizeram com que o refinanciamento da dívida de estados e municípios se desvirtuasse ao longo do tempo, de modo que a solução se tornaria um problema, especialmente para um grupo de estados, cuja dívida é bastante representativa.
Na quarta seção, serão apresentadas e discutidas as principais alterações trazidas pela Lei Complementar n. 148/14, que se dispõe a aliviar a pressão sobre os entes subnacionais que celebraram os contratos de dívida com a União, a partir da adoção de parâmetros mais condizentes com a atual conjuntura macroeconômica brasileira.
Finalmente, em “Conclusões”, serão recuperadas as principais considerações deste estudo, que permitirá um posicionamento sobre a pertinência das inovações trazidas pela mencionada Lei Complementar.
1 DESENVOLVIMENTO
1.1 Aspectos teóricos da dívida de estados e municípios
A teoria tradicional da dívida pública tem como um dos pilares a questão da estabilidade do nível de impostos. Isto é, em função da restrição orçamentária intertemporal do governo, os deficits surgem nos períodos de dispêndio temporariamente elevado, enquanto os superavits surgem quando dos dispêndios temporariamente baixos (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999). Assim, a dívida pública se presta a minimizar as distorções tributárias ao longo do tempo, em função de determinado padrão de gastos do governo (BARRO, 1979).
Contudo, os estudos de Alesina e Perotti (1999) consideraram insuficiente a explicação supra para justificar a expansão recente da dívida pública de diversos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No mesmo sentido, Rigolon e Giambiagi (1999) consideraram que o comportamento explosivo da dívida pública dos governos supranacionais brasileiros, na década de 1990, não são facilmente explicados pelo postulado tradicional e sugerem modelos alternativos da chamada “nova economia política” para tanto.
Sobre a teoria da “Transferência entre Gerações” de Cukierman e Meltzer (1989), em que a dívida pública se presta a realocar a renda entre gerações, Rigolon e Giambiagi (1999) entendem que as conclusões são sugestivas para explicar o comportamento dos governos subnacionais brasileiros, pois estes acumulariam dívida pública para aumentar o bem-estar da geração corrente. Entretanto, o ideal seria que o estoque de dívida pública alcance patamares suficientes a igualar custos e benefícios marginais e maximizar bem-estar social, o que não se enquadra no comportamento explosivo das dívidas dos estados brasileiros.
Alesina e Tabellini (1987) entendem que a dívida pública é usada estrategicamente pelos governos para influenciar as escolhas de seus sucessores. Sendo assim, a dívida de equilíbrio dependerá do grau de polarização de preferências entre governos alternativos, da probabilidade de o partido no poder não ser reeleito e do grau de rigidez em relação ao consumo do governo. Nos estudos de Persson e Svensson (1989), se defende que um governo conservador, tradicionalmente pouco consumista, tem a expectativa de ser substituído por um governo liberal, mais consumista e, por isso, tenderá a reduzir impostos e acumular dívida a fim de aumentar os encargos da dívida e restringir o consumo do governo subsequente.
Alesina e Perotti (1999) concluíram que o rápido crescimento da dívida de países da OCDE nas décadas de 80 e 90 se associa a um aumento da polarização e da instabilidade política. Além disso, o nível de endividamento dos países seria diretamente proporcional ao nível de polarização dos partidos políticos e das preferências do eleitorado. Para Rigolon e Giambiagi (1999), de fato no Brasil, houve um aumento da polarização política e da incerteza eleitoral em seguida ao processo de redemocratização na década de 80, verificável especialmente nos estados mais ricos, cuja polaridade era mais perceptível, o que explicaria parcialmente o comportamento da dívida desses entes no período. Entretanto, a assertiva é, em certa medida, prejudicada pela possibilidade de os governos estaduais não honrarem os encargos da dívida, tal como na experiência dos anos 90.
Finalmente, Rigolon e Giambiagi (1999) propõem uma explicação para o comportamento da dívida dos governos subnacionais a partir da questão do federalismo fiscal.
A ideia do federalismo fiscal ganhou força nas décadas de 80 e 90 em prol de uma maior eficiência alocativa, uma vez que a repartição dos recursos disponíveis permite que os diversos entes federativos ofereçam uma cesta de bens e serviços públicos maior e melhor aos seus cidadãos, o que não ocorreria de maneira tão eficiente se o provimento desses bens ocorresse a partir do governo central, que está distante dos beneficiários (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Além disso, a possibilidade de fluxo livre dos cidadãos entre os entes federativos induz a uma competição entre esses, que, por sua vez, os conduzirá a uma relação cada vez melhor entre impostos arrecadados e prestação de serviços públicos (próxima de um ótimo de Pareto) em função da comparação/concorrência (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Ainda, a descentralização fiscal permite ganhos de eficiência a partir do aprendizado, uma vez que alguns entes federativos, em prol de uma máquina pública melhor, desenvolverão novos métodos de gestão que serão difundidos e compartilhados com os demais. Caso houvesse um monopólio governamental, este estímulo ao aperfeiçoamento gerencial inexistiria (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Quanto ao controle da gestão pública, inevitável que a aproximação entre os atos da administração pública e os cidadãos incutirá nesses uma maior possibilidade de supervisão sobre o tratamento da coisa pública, acarretando novamente em ganhos de eficiência (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Contudo, a experiência de países em desenvolvimento revelou que os governos subnacionais, ao contrário dos postulados teóricos, se enveredaram pelo agravamento dos problemas macroeconômicos ou pelo entrave na sua solução. Primeiro, em face de os governos subnacionais serem estimulados a produzir deficits e transferir seu financiamento para o governo central. O poder político de algumas unidades subnacionais e as implicações sistêmicas e políticas de eventual deterioração de suas contas diminuem a capacidade de o governo central se opor às pressões por mais recursos. Segundo, porque a confiança de que o governo central sempre haverá de, em última instância, honrar os compromissos dos demais entes federativos cria um problema de perigo moral que induz a um endividamento excessivo (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
“Do ponto de vista da economia política da dívida, a questão que se coloca e que os economistas neoclássicos e sua teoria positiva consideram, é o fato das escolhas que geram endividamento público não serem feitas por um governo benevolente, maximizador do bem-estar social, governo este que quando “erra” (por exemplo, no caso de um endividamento explosivo) é “irracional” ou “incompetente”. A bem da verdade, a escolha pública somente se coloca enquanto tal nome; todas as escolhas dentro do Estado são, em última instância, privadas, tomadas por agente self-seeking, que agem de acordo com interesses rent-seeking privados ou de terceiros.
Por outro lado, o problema do endividamento permanente ou do financiamento dos gastos governamentais por meio de déficits crônicos, pode ser encarado como uma questão moral; ele reflete alguma falha moral. A moralidade das ações individuais e públicas exige autocontrole. Déficits públicos crônicos indicam falta de disciplina e são, portanto, indicadores de ausência de controle. O acúmulo de déficits (ou a dívida pública) é, portanto, imoral” (SILVA, 1998, p. 31-32).
Uma forma eficaz de se contornar um problema de natureza moral é criar, modificar ou aperfeiçoar o marco institucional correspondente, isto em perspectiva sociológica, com atenção especial ao arcabouço normativo cogente, tal como obtido com a promulgação da Lei Complementar n. 101/00, que impôs aos gestores públicos brasileiros rígidos parâmetros de controle da receita, da despesa e do endividamento.
1.2 O refinanciamento da dívida de estados e municípios
Com a promulgação da atual Constituição da República, em 1988, houve um rearranjo do federalismo fiscal no Brasil. O governo central perdeu parcela considerável de suas receitas para estados e municípios, sem que tal movimento fosse acompanhado da transferência da responsabilidade pelos dispêndios financeiros na mesma proporção (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Segundo Palos (2011), a Constituição da República vigente não foi precisa na distribuição dos encargos executivos, tendo apenas estabelecido competências comuns aos entes federativos. Assim, conclui no mesmo sentido de Rigolon e Giambiagi (1999), ao afirmar que a descentralização das obrigações não se deu na mesma proporção das receitas.
De acordo com Giambiagi e Além (2001), o governo central, antes da atual Constituição da República, ficava com 67% da receita proveniente do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), enquanto estados e municípios ficavam com os 33% restantes. Após 1988, o governo central passou a ficar com 53% do IR e 43% do IPI, enquanto aos estados e municípios couberam, respectivamente, 47% e 57%.
Tal fato não significou que estados e municípios envidaram esforços na melhoria de sua condição fiscal. Antes pelo contrário, o que se verificou foi um crescimento abrupto das despesas, chegando, até mesmo a superar as receitas, ocasionando sucessivos deficits (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Por isso, houve um enorme entrave à política de estabilização brasileira, uma vez que os esforços fiscais do governo central eram parcialmente anulados pela displicência de estados e municípios com suas contas públicas. Rigolon e Giambiagi (1999) atribuem culpa parcial ao financiamento excessivo dos governos estaduais pelos respectivos bancos públicos sobre o fracasso do Plano Cruzado, em 1988, e do Plano Collor I em 1990 (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
A dívida líquida desses entes federativos evoluiu constantemente de um patamar de 5,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1989 para 14,4% em 1998. Isso representa um aumento considerável na participação da dívida líquida de estados e municípios em relação à dívida líquida total do setor público, que era de 15% em 1989, e passou a ser 39%, em média, entre 1995 e 1998 (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Comparando o quinquênio (1990-1994) com o quadriênio (1995-1998), se verifica a substituição de um superavit primário de 0,6% do PIB por um deficit primário de 0,4% em relação a estados e municípios. Ainda sobre esses, se verificou a ampliação do deficit operacional, que, no primeiro período, correspondia a 0,3% do PIB e, no segundo período, já equivalia a 2,1% do PIB. As despesas com juros reais passaram de 0,9% do PIB para 1,7%. A situação, portanto, se evidenciava insustentável no longo prazo (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Para Rigolon e Giambiagi (1999), uma das causas do endividamento dos estados está na atuação dos seus respectivos bancos estaduais, que financiavam excessivamente seus acionistas controladores ou emprestavam a terceiros em observância a critérios políticos. Em última instância, recorriam a reservas financeiras negativas ou aos mecanismos de assistência de liquidez do Banco Central.
Com o lançamento do Plano Real, em julho de 1994, a questão se agravou ainda mais em função do fim súbito da megainflação, que, associado às altas taxas de juros reais, reduziram as receitas inflacionárias e anteciparam as esperadas crises de iliquidez dos bancos estaduais (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999). Embora o Plano Real tenha sido bem concebido, tal fato não significou que a inflação estava definitivamente controlada e que a economia brasileira estava imune às crises internacionais. A implantação do Plano Real deveria estar acompanhada de supervisão constante e da adoção tempestiva de medidas necessárias a preservar a estabilidade monetária (PEREIRA, Luiz, 1994).
O fato de as finanças públicas dos estados se deteriorarem rapidamente nos idos das décadas de 1980 e 1990 não significou que o governo central tenha se quedado inerte. Desde 1987[2], o Banco Central já intervinha nos bancos públicos estaduais, mas em poucos casos prosseguiu com a liquidação dessas instituições. Em relação às grandes unidades da federação, o seu peso político se constituía como obstáculo a uma postura mais rígida por parte do Banco Central. Tal fato conduzia a um problema de ordem moral, uma vez que o refinanciamento sucessivo das dívidas dos estados os estimulava a prosseguir de maneira displicente em relação às suas finanças, amparado sempre na expectativa de novo socorro financeiro (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Segundo Souza (2003), a primeira medida mais consistente em relação às finanças dos estados se deu com a promulgação da Lei n. 7.976/89, que permitiu ao governo central assumir o endividamento externo daqueles, com prazo de pagamento de 20 anos. O prazo de carência era de cinco anos e se permitia o bloqueio de repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) na hipótese de inadimplemento (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Em 1991, o governo federal possibilitou o refinanciamento da dívida dos estados com o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), através da Lei n. 8.212/91. Já em 1993, foi a vez de refinanciar a dívida dos estados com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autorizado pela Lei n. 8.620/93 (PEREIRA, João, 2008).
Com a Lei n. 8.727/93, se refinanciou a dívida dos estados com instituições financeiras federais, a juros abaixo dos níveis de mercado, prazo de 20 anos e limite máximo de comprometimento de 9% da receita líquida real em 1994 e 11% para os anos seguintes. A inovação desta norma reside na possibilidade de bloqueio de receitas tributárias próprias dos estados (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), por exemplo) (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
“Relevante em relação a esse processo é que não consta que tenha havido uma pressão eficaz por parte da autoridade central no sentido de tomar medidas para evitar que os passivos novamente aumentassem. O governo federal trouxe para si compromissos estaduais e, de certa forma encorajou mais dívidas” (PEREIRA, João, 2008, p. 15).
O Conselho Monetário Nacional (CMN), por meio da Resolução n. 2.008/93, proibiu o aumento da participação dos bancos privados na dívida estadual. Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 3/93, de 17 de março de 1993, restringe-se bruscamente a emissão de títulos de dívida por estados, municípios e Distrito Federal até 31 de dezembro de 1999. O Decreto n. 1.006/93 cria o Cadastro Informativo (CADIN) dos créditos de órgãos e entidades federais não quitados e veda a concessão de novos empréstimos a entidades em débito com a União (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Em 1994, o Senado Federal editou a Resolução n. 11/94, que “dispõe sobre as operações de crédito interno e externo dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas autarquias, inclusive concessão de garantias, seus limites e condições de autorização”, exercendo sua competência privativa estabelecida no art. 52, VI, VII, VIII, e IX da Constituição da República vigente (BRASIL, 1995, p. 11).
Em 1995, o Conselho Monetário Nacional aprovou o Programa de Saneamento Financeiro e de Ajuste Fiscal dos Estados, que previa refinanciamento de operações de Antecipação de Receita Orçamentária (ARO) e criava linhas de crédito para pagamento de pessoal e outras obrigações de curto prazo. Em contrapartida, os estados deveriam adotar medidas de austeridade fiscal e privatizar estatais (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Em 1996, foi editada a Medida Provisória n. 1.514/96, de 5 de setembro, que estabelecia “mecanismos objetivando incentivar a redução da presença do setor público estadual na atividade financeira bancária, dispõe sobre a privatização de instituições financeiras” (BRASIL, 1996).
Finalmente, em 1997, foi editada a Medida Provisória n. 1.560/97, de 12 de agosto, posteriormente convertida na Lei n. 9.496/97, de 11 de setembro de 1997, que estabelecia “critérios para a consolidação, a assunção e o refinanciamento, pela União, da dívida pública mobiliária e outras que especifica, de responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal” (BRASIL, 1997). “A iniciativa assegurou ao governo federal amplos poderes para renegociar as dívidas mobiliárias e contratuais dos estados” (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999, p. 20).
O refinanciamento da dívida de estados e municípios contemplava um montante de R$ 101,9 bilhões, sendo R$ 77,5 bilhões sobe a égide de um financiamento de 30 anos, R$ 11,4 bilhões a serem amortizados com receitas de privatizações e R$ 13 bilhões correspondentes à diferença de encargos em relação à rolagem das dívidas entre a data de corte e a de assinatura dos respectivos contratos. Para se ter uma ideia da dimensão do programa de refinanciamento, o montante total correspondia a 11,3% do PIB e a 77,9% da dívida líquida de estados e municípios em dezembro de 1998 (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Os contratos contariam com o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) como indexador, além de juros de 6% a 7,5% ao ano. Mensalmente, os pactuantes poderiam comprometer, no máximo, 15% da sua Receita Líquida Real. Todos os estados, com exceção de Tocantins e Amapá, e o Distrito Federal firmaram ajustes com a União. O método de cálculo utilizado foi o da Tabela Price e, caso o valor a ser pago em determinado mês superasse o limite da receita líquida real estipulado em contrato, o valor excedente constituiria um novo montante a ser amortizado ao término dos 30 anos, em um prazo máximo de dez anos (PEREIRA, João, 2008).
“Pela primeira vez, a União exigiu dos Estados que se comprometessem, por contrato, a respeitarem um conjunto de metas como contrapartida pela assunção de suas dívidas. As principais metas estabelecidas foram a obtenção de superávits primários e a diminuição da relação dívida/receita anual” (PIRES; BUGARIN, 2001, p. 5).
Os novos contratos estavam garantidos pelas receitas próprias e pelo FPE, que poderia ser retido na hipótese de inadimplemento. Ficou vedada a emissão de dívida nova até que a dívida financeira do ente superasse a sua respectiva receita líquida real anual. Além disso, o descumprimento das metas do programa ou de alguma das cláusulas contratuais ensejaria o aumento da taxa de juros dos contratos para um ponto percentual superior àquela admitida pela União em sua dívida mobiliária própria e aumento do grau de comprometimento máximo da receita líquida real em quatro pontos percentuais (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Segundo Santos (2003), antes do refinanciamento da dívida, os estados basicamente apenas rolavam os compromissos existentes. O serviço da dívida aumentava cada vez mais porque os estoques de dívida se avolumavam, bem como se ampliavam o risco inerente e as correspondentes taxas de juros, de modo que a situação se tornava insustentável. Após o refinanciamento, o serviço da dívida se reduziu sensivelmente, os desembolsos aumentaram e novos compromissos não podiam ser assumidos, o que contribuía para uma melhor situação fiscal.
“O estoque de dívida refinanciada assumida pela União representa um custo para toda a Federação, pois, enquanto os Estados irão pagar sua dívida com taxas de juros variando entre 6,0 e 7,5 % a.a, a União necessitará se financiar pela emissão de títulos pagando juros de mercado. O diferencial de taxas implica um subsídio aos Estados” (PIRES; BUGARIN, 2001, p. 5).
O que se observa, pois, é que o refinanciamento da dívida dos entes subnacionais brasileiros, sob a égide da Lei n. 9.496/97, no contexto da época, embora incutisse naqueles um maior rigor fiscal, aparentava ser uma solução atraente, principalmente em perspectiva puramente financeira.
1.3 A solução se torna um problema
Pelo levantamento bibliográfico apresentado, se denota um certo consenso em torno da insustentabilidade da dívida pública de estados e municípios, antes do refinanciamento das mesmas em 1997. Além disso, o estudo de Rigolon e Giambiagi (1999) foi otimista em relação à capacidade de o refinanciamento da dívida dos estados ser bem sucedido, ao concluir que o montante seria zerado em 2027 (Dívida Renegociada = 0,00).
No citado estudo, foi apresentado um modelo constituído por dezessete equações, cujos resultados, segundo os autores, “não devem ser interpretados como previsões, mas sim como sinalizadores dos impactos esperados da renegociação das dívidas estaduais nos resultados fiscais dos estados e municípios” (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999, p. 24).
Tal modelo funcionaria admitidas três hipóteses, quais sejam: 1 – taxa de juros real da dívida refinanciada igual a 6,6% ao ano (a. a.), 2 – taxa de juros real Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC) bruta diminui, gradativamente, de 27% a. a., em 1998, para 7,5% a. a. a partir de 2004, e 3 – crescimento real do PIB convergente em 5% a. a. (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
A taxa de juros real, igual a 6,6% a. a., equivale à média ponderada das taxas de juros estipuladas nos diversos contratos firmados, em observância à representatividade da dívida refinanciada em cada um deles. Além de concluir que o estoque de dívida seria zerado em 2027, o modelo apontou que as dívidas financeiras dos estados se igualariam às suas respectivas receitas líquidas reais a partir de 2013, o que lhes permitiria contrair novos endividamentos pela emissão de títulos (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999).
Ocorre que as segunda e terceira hipóteses não têm se confirmado até então. Pelos Gráficos 1 e 2 abaixo, se verifica que o crescimento acumulado do PIB brasileiro até 2013 ficou consideravelmente abaixo do admitido no modelo, bem como que a taxa SELIC[3] ficou consideravelmente acima do admitido.
Tais fatores convergem para uma situação fiscal dos estados pior do que a esperada e uma consequente maior dificuldade em honrar os compromissos assumidos. Sendo assim, a expectativa de que o estoque da dívida refinanciada seja zerado em 2027 é cada vez mais improvável a partir do modelo citado.
Além disso, o modelo de Rigolon e Giambiagi (1999) considera apenas a taxa de juros real dos contratos, desprezando o indexador utilizado, no caso o IGP-DI. Entretanto, o indexador adotado nos contratos, como se verá adiante, é justamente uma das questões mais problemáticas que embasam as críticas ao processo de refinanciamento das dívidas dos estados.
O Gráfico 3 abaixo demonstra a evolução dos índices IGP-DI e Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), este tido como o índice oficial de inflação, acumulados, entre julho de 1994 e dezembro de 2014. De julho de 1994 até agosto de 1999, o valor acumulado para o IPCA, de maneira geral, foi superior ao valor acumulado para o IGP-DI. Contudo, a partir de setembro de 1999, o valor acumulado para o IGP-DI ultrapassa o valor acumulado para o IPCA e este fenômeno permanece até dezembro de 2014.
Comparando os valores anuais dos citados índices entre 1995[4] e 2014, se pode verificar um comportamento bastante diversificado entre ambos, por se revezarem continuamente nas primeira e segunda colocações ao longo do tempo. O Gráfico 4 abaixo demonstra este comportamento.
Embora o comportamento dos índices anuais seja bastante variado no período considerado, uma análise das respectivas curvas sugere que o IPCA é mais estável em comparação ao IGP-DI. Tal hipótese é confirmada pelo cálculo dos respectivos coeficientes de variação[5]: IPCA = 57,91% e IGP-DI = 71,98%, embora sejam ambos relativamente altos.
O IGP-DI é uma das três variações do Índice Geral de Preços (IGP), calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV, e compreende o período entre o primeiro e o último dia do mês de referência. O IGP é composto por média ponderada entre outros três índices, quais sejam: Índice de Preços por Atacado (IPA), na proporção de 60%, Índice de Preços ao Consumidor (IPC), na proporção de 30%, e o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC), na proporção de 10% (PRESSER, 2003).
Guimarães (2003) teceu duras críticas sobre a condição do IGP-DI de indexador de ativos financeiros, conforme o seguinte:
“[…] a existência do IGP tem sido justificada como uma estimativa, de periodicidade mensal, do Deflator Implícito do PIB. Contudo, o IGP tem fornecido, nos últimos anos, uma má antecipação do Deflator […].
Apesar da discrepância sistemática entre o IGP e os demais índices de preços, a importância de sua substituição como indexador tem sido minimizada sob o argumento de que, ao longo do tempo, as variações dos diversos índices se compensam. O argumento é evidentemente descabido quando se trata da utilização do índice como indexador de ativos financeiros com vencimentos diferenciados no tempo. Além disso, o argumento é falso.
Embora algumas discrepâncias possam ser compensadas no curto prazo, o que se tem constatado, ao longo dos últimos anos, é uma divergência crescente entre as variações acumuladas do IGP e dos demais índices. Assim, quando se considera a taxa de variação entre dois meses quaisquer com intervalo igual ou superior a doze meses, compreendidos entre janeiro/1996 e dezembro/2002, constata-se que a variação do IGP é inferior à sic do IPCA em apenas sete casos de um total de 2.628 combinações possíveis – esses sete casos foram observados em 1996/97 e, em nenhum deles, a diferença acumulada supera 0,4 pontos de percentagem.
A crescente defasagem entre o IGP e os demais índices de preços reflete o efeito da flutuação do real sobre aquele índice a partir da introdução do regime de câmbio flutuante. O impacto da desvalorização real do câmbio sobre o IGP tem sido acentuadamente mais forte do que em relação ao IPCA. […]
São significativas as conseqüências da adoção de um indexador de ativos financeiros e de contratos que não estima de forma adequada a inflação, em particular se o desvio tem sistematicamente a mesma direção.
No caso dos ativos financeiros, a principal conseqüência é obliterar a própria essência do mecanismo de indexação: assegurar uma determinada taxa de juros real às partes envolvidas na operação. O viés do indexador implica que a taxa de juros real será diferente daquela esperada na contratação da operação financeira. Como o indexador supera sistematicamente a inflação observada, o ônus da adoção de um indexador inadequado recai sobre o tomador dos recursos; para o aplicador, a divergência dá origem a um bônus, que se acrescenta à taxa de juros contratada.
[…] No caso da dívida dos Estados e municípios refinanciada pela União, a adoção do IGP, em vez do IPCA, acarretou um aumento do saldo devedor superior a R$ 24 bilhões no ano passado[6].[…]
Diante desse quadro, não é admissível ignorar que a utilização do IGP como indexador de ativos financeiros e contratos não contribui para o funcionamento eficiente da economia e cria dificuldades à execução da política econômica. Cabe, portanto, proceder à sua substituição” (GUIMARÃES, 2003).
Outro aspecto nevrálgico sobre o refinanciamento da dívida dos estados se refere aos juros reais dos contratos. É notório que o governo central brasileiro empreendeu esforços, nos últimos anos, a fim de permitir uma redução da taxa SELIC. Segundo Rigolon e Giambiagi (1999), havia um subsídio implícito no refinanciamento da dívida dos estados decorrente da diferença entre a taxa de juros contratual e a taxa de juros de mercado. Considerando a imutabilidade dos juros reais dos contratos, o que ora se propõe é uma análise acerca da permanência do suposto subsídio, passados mais de dezessete anos desde a celebração dos contratos.
Para tanto, efetuou-se uma comparação entre a taxa de juros real dos contratos, admitida em Rigolon e Giambiagi (1999) como 6,6% a. a. a partir de média ponderada entre as taxas estabelecidas nos diversos contratos, e a taxa SELIC no mesmo período, descontada a inflação oficial (IPCA da FIBGE). A taxa SELIC média anual se refere à mesma taxa utilizada na elaboração do Gráfico 2 deste artigo, cujos critérios de cálculo já foram anteriormente apresentados[7]. O resultado está sintetizado no Gráfico 5 seguinte:
Em conformidade com a metodologia descrita, verifica-se, pelo Gráfico 5, a existência, de fato, de uma menor taxa de juros real nos contratos refinanciados, porém até 2008 apenas. A partir de então, a taxa de juros real dos contratos supera a taxa SELIC média anual líquida, indicando que, neste período, o suposto subsídio inexistiu.
Portanto, a estratégia de estabelecer uma taxa de juros real fixa para os contratos durante todo o período de sua vigência (30 anos) se revelou inadequada, em face de uma alteração significativa nas variáveis macroeconômicas, obtida a partir de um maior rigor fiscal em relação às contas públicas brasileiras com o passar do tempo. Mais apropriado seria adotar uma taxa de juros real que se reduziria progressivamente ao longo dos anos até um patamar mais condizente com as circunstâncias ou adotar uma cláusula contratual que permitisse uma revisão das taxas reais de juros periodicamente, de acordo com critérios previamente definidos. Certamente que o refinanciamento da dívida dos estados não pode ser interpretado como a celebração de um negócio financeiro puramente considerado, uma vez que eles, em contrapartida a juros supostamente subsidiados, se comprometeram a adotar um maior rigor fiscal em relação às suas contas públicas.
Há de se considerar também a questão do limite máximo de comprometimento da receita líquida real (RLR), que poderia chegar a até 15%. Isto é, pelo método da Tabela Price, caso o valor a ser pago em determinado mês superasse o limite máximo da RLR, o excedente constituiria um novo saldo a ser quitado no prazo de 10 anos, após o decurso dos 30 anos de contrato. O limite efetivamente estabelecido dependeria de uma série de circunstâncias, tais como o montante pago à vista com recursos de privatizações e o próprio saldo negociado.
Sem dúvida que o estabelecimento de um limite máximo de comprometimento é importante para que o gestor tenha uma segurança em face de eventuais superveniências financeiras, especialmente considerando as diversas vinculações que são impostas sobre a execução orçamentária, como os gastos mínimos com educação e saúde, por exemplo. Entretanto, o limite máximo de comprometimento não pode ser interpretado como regra, mas como exceção, sob pena de o processo de refinanciamento das dívidas fracassar por completo, uma vez que restará um saldo remanescente a ser pago posteriormente. Estar-se-ia, portanto, apenas postergando um problema para o futuro, em proporções possivelmente ainda maiores.
“O valor pago pelos Estados para custear a dívida não tem sido suficiente para amortizar o saldo devedor, uma vez que existe o limite de comprometimento da Receita Líquida Real, que varia de 11,5% a 15%. Esse fato gera uma trajetória ascendente de endividamento ao longo do prazo de liquidação dos contratos” (MINAS GERAIS, 2012, p. 2).
É difícil, senão impossível, analisar essa variável separadamente, uma vez que o sucesso do programa de refinanciamento de dívidas dos estados depende de outras variáveis. O estudo de Mora e Giambiagi (2005) apresenta uma série de simulações considerando os limites de comprometimento, bem como o crescimento da receita e do PIB. Verificou-se forte elasticidade entre o crescimento da receita e do Produto Interno Bruto. Ressalte-se que a receita de alguns estados, como Minas Gerais, por exemplo, também apresenta considerável elasticidade em relação ao nível de exportação, uma vez que sua produção é destinada, em grande medida, ao exterior.
Em Mora e Giambiagi (2005), constatou-se, ainda, que o crescimento do PIB tem ficado aquém das expectativas que embasaram a formatação dos planos de amortização das dívidas. Além disso, demonstrou-se preocupação em relação à evolução da dívida de alguns estados, quais sejam: Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Alagoas e Rio Grande do Sul, que poderia ser amenizada com um maior limite de comprometimento.
Nos casos de Goiás e Mato Grosso, embora a relação dívida/receita seja bastante alta e preocupante, a conjugação de ganhos na captação de receita e a definição de altos limites de comprometimento da RLR conduzem a uma expectativa de quitação da dívida, desde que se confirme um padrão razoável de crescimento da receita futuramente (MORA; GIAMBIAGI, 2005).
Sobre Minas Gerais, pesa a combinação de uma taxa de juros real alta (7,5%), potencializada pelos efeitos do IGP-DI, com um estoque alto de dívida negociada, que não indicam um equacionamento da mesma no prazo estabelecido. Em relação a São Paulo, não se observou um crescimento extraordinário da receita, supostamente pelo fato de o estado já contar com uma relativa eficiência tributária, e esta ainda foi comprometida pela transferência de unidades produtivas para outros estados, em decorrência da guerra fiscal. Por isso, a evolução da dívida de São Paulo também causa preocupação (MORA; GIAMBIAGI, 2005).
Alagoas não conta com o dinamismo econômico de outras unidades da federação e sua despesa com pessoal alcançou patamares altos, que comprometem sua capacidade de pagamento da dívida no prazo acordado. Finalmente, o problema apontado para Rio Grande do Sul está nos gastos com pessoal, gerado por uma relativamente baixa arrecadação previdenciária associada a altas taxas de expectativa de vida, afetando o seu equilíbrio atuarial e onerando demasiadamente suas despesas (MORA; GIAMBIAGI, 2005).
Os estudos mais recentes sobre o assunto concluem, basicamente, no mesmo sentido, qual seja: há um relativamente pequeno grupo de estados, cuja situação fiscal é mais grave, que terão maior dificuldade em quitar seus débitos negociados com a União, se é que isto ocorrerá. Embora pequeno numericamente, o montante da dívida desses estados é bastante relevante, quando comparado ao montante total.
Segundo Flores (2013), vinte estados brasileiros possuem relação entre a dívida e a receita corrente líquida inferior a um, em 2010, o que é um bom resultado. Contudo, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul possuem essa relação superior a 1,5 no mesmo ano e suas dívidas correspondem a mais de três quartos da dívida total dos estados. Acrescenta, ainda, que, embora a dívida dos estados em relação ao PIB tenha reduzido de 15,6% para 9,9%, no período entre 2001 e 2011, a dívida refinanciada com a União reduziu num ritmo menos intenso que as demais.
Para Campo (2014), desconsiderando as alterações trazidas pela Lei Complementar n. 148/14, os estados de São Paulo, Minas Gerais, Alagoas e Rio Grande do Sul, possivelmente, não conseguirão zerar o saldo ao término dos 360 meses de prazo, sendo que este último talvez não consiga fazê-lo mesmo no prazo adicional de 120 meses. Campo também assevera que os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul continuarão desembolsando com o serviço da dívida algo próximo do limite máximo de comprometimento (13% da RLR), pelo menos, até 2025, o que compromete severamente suas capacidades de investimento. “[…] todos os Estados pagam em dia as parcelas da dívida. Juntos, eles deviam à União R$137 bilhões em 2000, pagaram aproximadamente R$131 bilhões até 2010 e ainda devem R$350 bilhões.” (MINAS GERAIS, 2012, p. 2).
“Algumas avaliações da literatura recente sobre o tema, como Piancastelli e Miranda (2008), apontaram para melhorias no quadro geral das finanças estaduais no período 1995-2006, com melhoria do indicador despesas/receita corrente líquida. Entretanto, segundo estes autores, o investimento público dos estados estaria em rota descendente nos anos analisados, tornando-se um motivo de forte preocupação. A análise tende a apontar que o processo de ajustamento às novas condições impostas pela renegociação não tem sido fácil. Seus resultados, quanto à criação de um terreno sólido para a retomada do crescimento econômico em bases mais robustas, têm se mostrado muito lentos.
Para os governos estaduais no Brasil contemporâneo, cada vez mais se configura um quadro de passividade quanto ao desenho e à implementação de políticas públicas. Os estados têm se caracterizado como meros administradores de recursos transferidos da União para políticas centralmente definidas – principalmente, saúde, educação e assistência social – e como negociadores apáticos de propostas de investimento junto à União e suas estatais e ao capital privado. A centralização de receitas tributárias na esfera da União e, por conseguinte, a baixa participação dos estados na base tributária nacional têm sido elemento favorável à lentidão observada na recuperação das finanças estaduais” (SILVA; MONTEIRO NETO; GERARDO, 2014, p. 121).
A consequência da situação apresentada é o papel coadjuvante de estados e municípios na implementação de políticas públicas que busquem a superação do subdesenvolvimento e do enorme fosso que separam ricos e pobres no Brasil. Sobre o assunto, leciona Monteiro Neto:
“Comprimidos, de um lado, pela expansão dos gastos em políticas sociais (educação, saúde, previdência e assistência social), pelas regras de renegociação do endividamento (e seus encargos) junto ao governo federal e, de outro lado, pela estabilidade da trajetória das fontes de recursos próprios (ICMS) e redução dos montantes de transferências constitucionais (FPE), os governos estaduais se veem sic limitados em suas capacidades para desenhar e implementar trajetórias de desenvolvimento em seus territórios” (MONTEIRO NETO, 2014, p. 318).
Tal situação corrói a legitimidade dos entes subnacionais brasileiros, porquanto inviabiliza suas capacidades de atender às demandas das sociedades locais no tempo e na medida adequados, atentando, inclusive, contra o pacto federativo, uma vez que o único ente federado que possui uma margem orçamentária alocativa substancial é o governo central.
1.4 O que muda com a Lei Complementar n. 148/14
No dia 26 de novembro de 2014, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Complementar n. 148/14, de 25 de novembro de 2014, que traz importantes alterações na Lei n. 9.496/97, por dispor sobre os critérios de indexação dos contratos de refinanciamento da dívida celebrados entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL, 2014).
A primeira alteração se refere à autorização para a União substituir os juros reais dos contratos, que variam entre 6 e 7,5% ao ano, para 4% a. a. (BRASIL, 2014). Certamente que esta alteração é significativa por que importa na redução de 33,33% a até 46,67% da remuneração do montante refinanciado. Ressalte-se que a nova taxa é indistinta em relação à situação dos entes pactuantes, diferentemente do que estabelecido na legislação original.
Um aspecto negativo é que novamente se optou por estabelecer uma taxa fixa, em tese, para todo o período de vigência dos contratos. Ou seja, caso haja uma nova alteração nas variáveis macroeconômicas, que permitam juros reais menores, o programa de refinanciamento das dívidas dos entes subnacionais necessitará de um novo ajuste via alteração normativa, o que será, provavelmente, precedido de um longo debate político e mensuração de forças intrafederativas.
Retomando o Gráfico 5 deste trabalho, tem-se que apenas nos anos de 2012 e 2013, conforme metodologia de cálculo então descrita, a SELIC líquida foi inferior a 4% a. a., o que indica que a nova taxa de juros foi redefinida em parâmetros razoáveis. Em tempo, há de se esclarecer que a nova remuneração aplicar-se-ia apenas a partir de 1º de janeiro de 2013.
Outra alteração fundamental está na substituição do indexador que era o IGP-DI e passa a ser o IPCA da FIBGE, também apenas a partir de 1º de janeiro de 2013 (BRASIL, 2014). Certo que o IPCA tem um comportamento mais estável e previsível que o IGP-DI, como já amplamente abordado neste estudo. O Gráfico 6 seguinte apresenta a variação dos cinco principais índices de preços brasileiros (Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), IGP-DI, IPC geral, Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) e IPCA) entre 1995 e 2013, bem como da média entre esses índices no mesmo período.
Em seguida, efetuou-se o cálculo dos índices de correlação entre cada um dos cinco índices e a média, tendo chegado aos seguintes resultados: IPC geral (87,19%), IGP-DI (89,07%), IPCA (89,85%), IGP-M (89,87%) e o INPC (91,55%). Tais resultados sugerem que o INPC é mais estável em relação à média do que os outros quatro índices considerados. Portanto, seria sua admissão como indexador dos contratos a escolha mais equilibrada dentre as analisadas. Mesmo assim, a substituição do IGP-DI pelo IPCA já é um passo importante na tarefa de se admitir um indexador mais sóbrio aos contratos de refinanciamento estudados.
Além de substituir a remuneração e o indexador dos contratos, a Lei Complementar n. 148/14 também prevê uma remuneração alternativa que é a taxa SELIC, aplicável quando as novas taxas estabelecidas a superarem (BRASIL, 2014). Novamente, há uma evolução importante no sentido de que, não sendo possível preservar o subsídio implícito no refinanciamento das dívidas, seja pelo menos adotada uma equivalência entre os custos de captação por parte da União e os custos de refinanciamento dos entes subnacionais.
Adicionalmente, permite-se uma revisão do montante inicialmente refinanciado até 1º de janeiro de 2013, tendo como parâmetro de remuneração a taxa SELIC (BRASIL, 2014). Foge aos objetivos deste estudo calcular, caso a caso, a pertinência desta alteração. Contudo, há de se concluir que a revisão do cálculo somente será efetivada, caso a caso, se o novo montante, em 1º de janeiro de 2013, for inferior ao saldo calculado com as condicionantes originais. Portanto, este dispositivo, se não ajudar, também não piorará o status quo ante.
De acordo com o artigo 4º da Lei Complementar n. 148/14, as novas condicionantes serão aplicadas apenas mediante a celebração de aditivos aos contratos vigentes. Conforme art. 8º, a entidade subnacional somente poderá contrair novas dívidas desde que incluídas no respectivo Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal, caso ainda exequível (BRASIL, 2014).
Finalmente, a Lei Complementar n. 148/14, em seu artigo 11, veda a emissão de títulos de dívida pública mobiliária por Estados, municípios e Distrito Federal indistintamente (BRASIL, 2014).
Como se observa, o pleito de governadores e prefeitos de que se alterassem os limites máximos de comprometimento não foi acolhido. Naturalmente que uma alteração nesse sentido, embora desejável para a ampliação da capacidade de investimento de estados, municípios e Distrito Federal, seria temerária em função da situação de alguns deles em relação ao refinanciamento das dívidas. Portanto, o mais prudente seria, de fato, manter inalterados os limites originalmente estabelecidos.
Segundo Cabral, “em qualquer cenário pode-se esperar que a revisão da dívida irá indiscutivelmente aliviar tensões federativas e ajudar a equacionar financeiramente os investimentos a serem realizados pelos entes (Saúde, Educação, mobilidade, etc.)” (CABRAL, 2014).
Para o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais,
“O estudo desenvolvido pelo Tribunal de Minas, parte integrante do parecer prévio/2010, é exemplo de interferência promissora do Controle Externo nas políticas públicas, pois, levado à discussão às Assembleias Legislativas Estaduais, incrementou a mobilização política no âmbito federal, culminando na aprovação da Lei que significará, somente para Minas Gerais, uma redução em valores de 2013, de R$ 59,370 bilhões ao final do contrato em 2028, ocasião em que a dívida será quitada sem nenhum valor residual ou prorrogação contratual.
A nova lei modifica expressivamente a trajetória do endividamento de nosso Estado que, além de quitar a dívida com a União em 2028 ‒ no cenário anterior seria possível somente em 2038 ‒, ficará livre do comprometimento de 13% da receita base, hoje em torno de R$400,00 milhões/mês, que poderão ser aplicados em políticas essenciais para o Estado” (MINAS GERAIS, 2014).
A revisão dos termos do refinanciamento das dívidas de estados, municípios e Distrito Federal, sob a égide da Lei n. 9.496/97, foi, portanto, muito bem recebida e é promissora em relação à situação fiscal desses entes.
O mais importante disso tudo é que a lição seja aprendida e que a irracionalidade do endividamento público experimentado nas últimas décadas do século XX, no Brasil, não volte a vigorar, porquanto absolutamente destoante dos primados da Constituição da República vigente e da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/00). Que a superação deste dilema simbolize o nascimento de uma nova administração pública brasileira, mais responsável e mais responsiva ao atendimento das demandas da sociedade.
CONCLUSÕES
Desde a década de 1980, os entes subnacionais brasileiros se enveredaram por uma trajetória perniciosa de endividamento, caracterizada pelo socorro dos bancos públicos aos recorrentes deficits anuais acumulados. Com a promulgação da atual Constituição da República, em 1988, o federalismo fiscal brasileiro apresentou uma nova configuração, de modo que estados e municípios passaram a auferir receita que antes pertencia à União, mas este movimento não foi acompanhado da redistribuição de despesas. Rapidamente, o excedente de receitas foi capturado por gastos correntes de estados e municípios.
Com a implantação do Plano Real, em 1994, verificou-se que o mecanismo da âncora cambial seria insuficiente a zelar pela estabilidade monetária, sem que algo fosse feito em relação às contas públicas brasileiras. Acompanhando a trajetória de endividamento de estados e municípios o governo central brasileiro reagiu periodicamente, sem que houvesse uma solução definitiva, até a promulgação da Lei n. 9.496/97.
O refinanciamento das dívidas de estados e municípios, com a promulgação da mencionada Lei, permitiu que o crescente endividamento fosse racionalizado. Em troca de condições supostamente subsidiadas, os entes subnacionais assumiram uma série de compromissos fiscais, incluindo a interrupção da emissão de títulos de dívida e a realização de privatizações de estatais, principalmente de seus bancos públicos.
Ocorre que os termos em que os contratos foram celebrados se revelaram inadequados ao longo do tempo, seja por causa da flexibilização do câmbio no princípio de 1999, seja pela mudança no comportamento das variáveis macroeconômicas, que permitiram juros reais mais baixos.
O resultado foi que a dívida refinanciada, pelo menos em relação aos estados mais endividados, assumiu um comportamento preocupante, por um lado constrangendo as capacidades de investimentos dos pactuantes, e por outro sem apresentar uma perspectiva de amortização plena no prazo estabelecido.
Com a promulgação da Lei Complementar n. 148, em 2014, deu-se um passo importante na tentativa de reduzir a pressão sobre as finanças dos entes subnacionais e de se retomar a sobriedade das condições assumidas nos contratos firmados.
Informações Sobre o Autor
Ângelo Emílio de Carvalho Fonseca
possui graduação em Administração Pública pela Escola de Governo Prof. Paulo Neves de Carvalho (2009), graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011), aperfeiçoamento em Direito Público aplicado ao Controle Externo pela Escola de Contas Prof. Pedro Aleixo (2015) e especialização em Gestão Pública pela Escola de Contas Prof. Pedro Aleixo (2015). Desde 2009, é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Controladoria-Geral do Estado de Minas Gerais. Advogado e membro da OAB-MG desde 2011