Resumo: Busca-se no presente ensaio analisar a aplicação do cumprimento de sentença na satisfação dos créditos de natureza alimentícia a partir das regras já consagradas pelo CPC e Lei de Alimentos, bem como da compreensão das correntes jurisprudenciais que se firmaram nos últimos anos a respeito do tema. As conclusões alcançadas – optando pela aplicação restrita do cumprimento de sentença nos casos em análise – são comparadas com as disposições do Anteprojeto para o novo Código de Processo Civil, construído recentemente pela Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal.
Palavras-chave: Alimentos. Execução. Cumprimento de sentença. Anteprojeto do CPC.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS[1]
A satisfação da prestação alimentícia recebeu disciplina especial do legislador brasileiro. Embora seja uma obrigação que se resolva com a entrega de dinheiro, sua natureza particular fez com que o credor sempre tivesse à sua disposição vários mecanismos processuais para fazer cumprir a condenação judicial ou o ajuste extrajudicial, diferentemente do tratamento dado aos credores de outras obrigações pecuniárias.
Uma rápida análise das previsões do Código de Processo Civil e da Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68) leva à conclusão de que a sistemática adotada na legislação confere ao credor o poder da escolha de quatro modalidades para satisfação da prestação alimentícia: desconto em folha de pagamento (arts. 16, LA e 734, CPC), cobrança em aluguéis ou outros rendimentos do devedor (art. 17, LA), expropriação de bens do devedor (arts. 732 e 735, CPC) e coerção através da prisão civil (art. 733, CPC). A intenção do legislador, pelo menos numa interpretação majoritária, é que as medidas sejam utilizadas na ordem mencionada, da menos drástica à mais extrema. Nesse sentido, por todos, a lição de Araken de ASSIS (1998, p. 904):
“Se algum consenso se mostra necessário, a lei parece tê-lo adotado de modo exemplar. Não franqueou ao credor todos os meios executórios indistintamente. Cumpre ater-se ao roteiro dos arts. 16, 17 e 19 da Lei 5.478/68, segundo insiste jurisprudência mais arejada, e independentemente da natureza dos alimentos devidos.”
Trata-se de clara aplicação do art. 620, do CPC, que consagra o princípio da menor onerosidade para devedor: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.
2 O PROBLEMA DA APLICAÇÃO DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA
Com o advento da Lei nº 11.232/2005, adotou-se a ideia do sincretismo processual através do qual extinguiu-se a necessidade de processo de execução autônomo para satisfação de obrigação estampada em sentença judicial, bastando um prolongamento da fase inicial cognitiva para outra em que se busca o “cumprimento da sentença”.
Em termos sistemáticos o legislador pretendeu que as ações autônomas de execução fossem utilizadas apenas para as obrigações oriundas de títulos executivos extrajudiciais, para as quais continuam em vigor os vários procedimentos do Título II, do Livro II, do Código de Processo Civil.
Por conta da ideologia que cerca as reformas do CPC desde 1994, pautada na busca incessante pela efetividade do processo e considerando que o direito processual civil é um grande sistema formado não somente pelo Código, mas por toda a legislação extravagante, haveria o intérprete de concluir que, por via indireta, as várias modalidades disponíveis para satisfação das obrigações alimentícias estariam extintas. Restaria, então, apenas a vias do cumprimento de sentença ou da execução por título executivo extrajudicial (arts. 646 e seguintes). Tal interpretação seria possível ainda que a Lei nº 11.232/2005 não tenha revogado expressamente os dispositivos referentes à execução de prestações alimentícias[2].
Conclusões dessa ordem são incentivadas porque alguns tribunais estaduais já decidiram no sentido da aplicação do art. 475-J, do CPC, às execuções dessa natureza:
“Agravo de Instrumento. Ação de alimentos. Menor. Cumprimento de sentença. Execução de alimentos pelo rito do art. 475-J do CPC. Eficácia da lei 11.232/05. Admissibilidade. Processamento de execução de alimentos em autos de ação de alimentos, com pedido de cumprimento de sentença, pelo rito do art. 475-J do CPC. A Lei nº 11.232/05, ao extinguir do CPC o processo de execução de título judicial, não tratou da temática alimentos, construindo-se o entendimento da jurisprudência no sentido de ser possível o rito do cumprimento de sentença aos créditos alimentares, considerando a própria natureza da referida lei, que é trazer celeridade e efetividade à prestação jurisdicional, incidência imediata da lei após sua publicação. Precedentes desta corte. Agravo de instrumento provido”. (TJRS – AI 70031735509 – 7ª Câmara Cível – Rel. André Luiz Planella Villarinho – DJ 13/10/2009).
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a seu turno, tem entendimentos conflitantes, ora concluindo pela aplicação do “cumprimento de sentença” às execuções dessa natureza, ora afastando-o em virtude da não-revogação da legislação específica. Tome-se como exemplos os dois julgados a seguir, publicados em setembro de 2009:
“Agravo de instrumento – Execução de alimentos – Cumprimento de sentença – Inaplicabilidade – Necessidade de observância do disposto nos artigos 732 e 733 do CPC – Ausência de revogação – Recurso não provido”. (TJMG – AI nº 1.0313.09.285187-9/001 – 4ª Câmara Cível – Rel. Audebert Delage – DJ 29/09/2009 – Comarca de Ipatinga).
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIMENTOS – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – APLICABILIDADE DO ARTIGO 475-J DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO – Os alimentos devidos ao alimentando devem ser cobrados pelo meio mais ágil existente no ordenamento jurídico. Assim, aplica-se à execução de alimentos as novas regras do cumprimento de sentença inseridas pela Lei 11. 232/2005 que acrescentou o art. 475-J ao Código de Processo Civil – Recurso provido”. (TJMG – AI nº 1.0702.05.228844-7/002 – 1ª Câmara Cível – Rel. Eduardo Andrade – DJ 22/04/2010 – Comarca de Uberlândia).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vai além ao entender que o cumprimento de sentença é procedimento obrigatório, cabendo ao magistrado, de ofício, a adequação do feito caso o credor tenha optado pelo rito do art. 732, do CPC, por se tratar de norma de ordem pública:
“AGRAVO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS SOB A FORMA DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. POSSIBILIDADE, INCLUSIVE COM A INCIDÊNCIA DE MULTA EM FACE DO EVENTUAL INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO. 1. Mostra-se correta a imposição do rito do cumprimento de sentença ao pleito de execução de alimentos, inclusive com a possibilidade de fixação da multa prevista no artigo 475-J, do Código de Processo Civil. 2. A nova legislação, por sua natureza, tem incidência imediata, devendo a execução dos alimentos ser processada nos mesmos autos da ação de alimentos, como pedido de cumprimento de sentença, cabendo ao magistrado, de ofício, a adequação do procedimento, caso a parte tenha requerido a execução pelo rito do artigo 732 do Código de Processo Civil, na medida em que se trata de norma de ordem pública. Recurso desprovido”. (TJRS – AI 70028504876 – 7ª Câmara Cível – Rel. Ricardo Raupp Ruschel – DJ 22/04/2009).
Pelo que se viu a pesquisa jurisprudencial permite destacar os seguintes posicionamentos:
a) o cumprimento de sentença (art. 475-J) pode ser aplicado nos casos de satisfação de créditos alimentícios, a despeito da Lei nº 11.232/2005 não tratar expressamente do tema. É cabível, nesse caso, a multa de 10% prevista em caso de inadimplemento;
b) em virtude da ausência de revogação expressa na Lei nº 11.232/2005 o cumprimento de sentença não pode ser aplicado em tais hipóteses, prevalecendo ainda os arts. 732 e 733 do CPC e demais disposições da Lei de Alimentos;
c) o procedimento inaugurado pelo art. 475-J do CPC é obrigatório, devendo o magistrado, inclusive, determinar a adequação do feito caso a execução seja proposta nos termos da legislação tradicional.
3 RESPOSTA AO PROBLEMA NO DIREITO ATUAL
Diante dos posicionamentos encontrados apresenta-se uma tentativa de solução para o problema, nos seguintes termos: ainda que se reconheça que o ideal seria a adoção do cumprimento de sentença para obrigações de qualquer natureza, os créditos alimentícios continuam a merecer ritos próprios e tratamento especial do legislador, pois não houve revogação tácita dos procedimentos previstos para a satisfação da obrigação alimentícia. Além disso, o juiz não está autorizado a converter o procedimento escolhido pelo credor adequando o feito ao cumprimento de sentença.
A Lei nº 11.232/05 (art. 9º) revogou expressamente vários dispositivos relativos ao processo de execução tradicional, modificou o conceito de sentença, alterou seus requisitos e efeitos, extinguiu a liquidação de sentença com a conhecíamos, mas nada disse a respeito dos alimentos. A única menção consta do art. 475-Q que disciplinou a hipótese de cumprimento de sentença para os alimentos oriundos de indenização por ato ilícito, reforçando que a nova sistemática teve por base a efetividade processual para a satisfação de obrigações com essa origem. Em casos tais o juiz poderá ordenar ao devedor constituição de capital para assegurar o pagamento da pensão mensal. Nos parágrafos do mesmo dispositivo há providências semelhantes às previstas nos ritos tradicionais para execução dos alimentos, mas não se pode interpretar que o legislador incluiu aqui as hipóteses de alimentos por relações de parentesco.
Talvez num esforço um pouco maior, poderia o intérprete argumentar que as disposições do CPC contidas no Capítulo IV, do Título II, do Livro II (arts. 646 e seguintes) ficaram reservadas apenas à execução dos títulos executivos extrajudiciais, não sendo possível pretender utilizá-las para exigir a satisfação de prestações alimentícias estampadas em títulos judiciais. Pensando assim, o posicionamento do TJRS seria adequado, cabendo aos juízes a adaptação das execuções alimentícias autônomas para o cumprimento de sentença.
Porém, a adaptação obrigatória significaria a revogação tácita dos modelos de execução alimentícia já consagrados e, por conseqüência, todas as vantagens criadas para o credor destas prestações desapareceriam, pois o cumprimento de sentença não traz previsões semelhantes, como por exemplo a coerção possível através da prisão civil do devedor, que continua recebendo guarida constitucional (art. 5º, LXVII, CF). Não faria sentido a previsão constitucional continuar em vigor sem disposições infraconstitucionais que regulassem sua aplicação.
A conversão obrigatória do procedimento implicaria na impossibilidade de decreto da prisão do devedor. Estaria o juiz retirando do credor uma ferramenta historicamente eficaz contra a inadimplência e, por outro lado, admitir a possibilidade de decreto da prisão no cumprimento de sentença é um equívoco de interpretação, é criar um “novo rito” por via não autorizada, pois só a lei poderá fazê-lo (art. 22, I, CF).
Em síntese, a modalidade para satisfação do crédito alimentício ainda é escolha do credor, que continua tendo à sua disposição o que está previsto no CPC e na Lei de Alimentos. Porém, nada impede que opte pelo cumprimento de sentença, hipótese em que deverá obedecer as disposições dos arts. 475-I e seguintes, não sendo a ele franqueados os benefícios típicos da execução dos alimentos (especialmente a prisão civil do devedor). Porém, admite-se que a multa de 10% pelo inadimplemento pode ser aplicada no caso concreto, como já admitiu o TJMG na seguinte decisão:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – APLICAÇÃO DE MULTA PARA CASO DE DESCUMPRIMENTO – POSSIBILIDADE – ARTIGO 475-J – CPC – INCIDÊNCIA DA MULTA ESPECÍFICA. Inexiste óbice legal à aplicação da multa de 10% prevista no art. 475-J, do Código de Processo Civil, uma vez que o artigo 475-O, do citado dispositivo, dispõe que a execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva; portanto, aplicável o regramento do cumprimento de sentença às execuções de alimentos, inclusive provisórios, não havendo razão para se afastar a incidência do art. 475-J, do Código de Processo Civil”. (TJMG – AI nº 1.0024.08.282104-2/001 – 7ª Câmara Cível – Rel. Alvim Soares – DJ 25/09/2009 – Comarca de Belo Horizonte).
4 A PROPOSTA DO ANTEPROJETO DO CPC
Ao contrário da Lei nº 11.232/2005 que silenciou-se a respeito do tema, o Anteprojeto do CPC, elaborado por uma Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal, cuidou de forma clara do “cumprimento da obrigação de prestar alimentos” (art. 499 e 500).
Pela proposta as modalidades atualmente consagradas continuarão a vigorar (à exceção da prevista no art. 17, segunda parte, da Lei de Alimentos)[3], mas disciplinados pelo novo texto do CPC, mantendo-se a escolha do credor pelo rito que melhor lhe convém, na seguinte “ordem de preferência”:
a) inclusão em folha de pagamento quando o devedor for servidor público, militar, diretor ou gerente de empresa, bem como empregado sujeito à legislação do trabalho. A ordem judicial será dirigida à autoridade, empresa ou empregador, nela constando os nomes do credor e devedor, a importância da prestação e o tempo de sua duração;
b) não satisfeita a obrigação, o credor poderá requerer a intimação do devedor para efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo no prazo de três dias, sujeito ao decreto de prisão civil pelo prazo de um a três meses.
Importante notar que nesse caso não há necessidade de uma nova ação (de execução), pois bastará a intimação do devedor, inaugurando-se um “prolongamento” do procedimento após a sentença, adotando-se uma vez mais um modelo sincrético, em nome da economia e efetividade processuais.
c) caso o credor não deseje prosseguir a execução nos termos do item anterior (art. 500, ACPC), poderá optar pelo “cumprimento de sentença”, à semelhança do que ocorre na atualidade (art. 475-J, CPC). Para inaugurá-lo basta ao credor apresentar demonstrativo de cálculo discriminado e atualizado do débito, intimando-se o executado para realizar o pagamento no prazo de quinze dias, sob pena de multa de dez por cento.
5 CONCLUSÕES
Pelo exposto, conclui-se que:
1 – o rito para o cumprimento de sentença instituído pela Lei nº 11.232/2005 não revogou os modelos anteriores de execução da prestação alimentícia, mas pode ser utilizado também para essa finalidade à escolha do credor, não cabendo ao juiz determinar a “conversão” do procedimento.
2 – embora compatível com os créditos de natureza alimentícia, o cumprimento de sentença não admite o decreto de prisão civil, mas apenas os mecanismos coercitivos previstos no art. 475-J e seguintes do CPC, dentre eles a aplicação da multa de 10%.
3 – na hipótese de aprovação do Anteprojeto do CPC, será revogada a Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68), mas o texto do novo Código contemplará dois modelos atuais de execução de prestação alimentícia, deixando que o credor também opte pelo “cumprimento de sentença” com incidência de multa de 10%.
Mestre em Direito pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Professor do Centro Universitário do Triângulo (UNITRI) e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG). Advogado.
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