Considerações sobre as decisões judiciais para os juspositivistas: Austin, Kelsen, Hart, Dworkin

Resumo: Este artigo trata do conceito de decisão em alguns dos filósofos do Direito positivistas. Os posicionamentos têm como linha mestra, a explicação da decisão judicial a partir de parâmetros de uma ciência. É possível verificar uma explicação do Direito cada vez mais interna e independente da política.

Palavras-chave: Juspositivismo, Filosofia do direito, Decisões judiciais

Abstract: This article deals with the concept of decision in some of the positivist law philosophers. The positions have as main line, the explanation of the judicial decision from the parameters of a science. It is possible to verify an explanation of Law that is increasingly internal and independent of politics.

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Key-words: Juspositivism, Philosophy of Law, Judicial Decisions

Sumário: Introdução, 1) Decisões judiciais para Austin, 2) Decisões judiciais em Kelsen, 3) Decisões judiciais em Hart, 5) Decisões judiciais em Dworkin, Considerações Finais, Referências

Sumary: Introduction, 1) Judgments in Austin, 2) Judgments in Kelsen, 3) Judicial decisions in Hart, 5) Judgments in Dworkin, Final Remarks, Bibliography

Introdução

O juspositivismo procura entender o Direito como uma ciência, que tem objeto específico e um método. Esse método e esse objeto variam conforme os jusfilósofos. Em alguns deles é possível encontrar uma teoria da decisão, em que buscam explicar como é possível se chegar cientificamente a uma decisão. Essa decisão é almejada por meio de um método de escolha racional e não somente de uma vontade.

Tércio Sampaio detecta em Savigny a mudança do que significava interpretar. Para o autor, Savigny tem uma fase em que acredita na busca daquilo que a lei diz, e buscar o sentido da norma é uma questão técnica, dada pela interpretação do vocabulário, da lógica, da estrutura e da história. (FERRAZ JR, 1994, p.265) Somente depois de 1814 que Savigny começa a buscar um critério/método para a interpretação. Passa a fazer uma teoria da interpretação, variando entre o pensamento do legislador e o espírito do povo (FERRAZ JR, 1994, p.266)

Os jusfilósofos passam então a se interessar como os juízes decidem e analisar como se chega em uma decisão judicial, que envolve uma interpretação. Essas explicações dos jusfilósofos estão pautadas em um Direito entendido como ciência. As explicações aqui escolhidas estão no âmbito da Filosofia do Direito e não de uma sociologia do direito.

Este artigo pretende apontar brevemente como é definida a decisão judicial em alguns autores juspositivistas. Não se pretende aqui explicar os conceitos desenvolvidos em cada um desses autores, mas apenas tratar da questão da decisão jurídica. Para tanto serão utilizados os textos dos próprios jusfilósofos e de alguns comentadores. Dentre os textos dos jusfilósofos, foi escolhido uma obra de cada autor, que tratasse do tema. Privilegiou-se uma visão geral dos autores, do que um aprofundamento em cada um deles.

1. Decisões judiciais em Austin

Um dos primeiros filósofos do Direito moderno a se preocupar com a questão de como o juiz deve atuar foi Austin, que é considerado como um dos pais do juspositivismo. Austin ainda apresenta como parte de sua definição de Direito as leis divinas. Para ele a lei positivada é definida a partir da figura de quem as positivou, seja do soberano ou de um corpo de pessoas (AUSTIN, 1995, VI). O soberano é aquele que faz e dá autoridade à lei. A aproximação do pensamento de Austin e de Hobbes é bem direta, no que tange ao poder da autoridade da lei.

Austin está interessado em uma visão do Direito como um processo, em que uma autoridade determina um comando, que deve ser seguido:

“Para Austin, o direito é essencialmente uma questão de processo: um direito/regra é uma espécie de comando emitido dentro de uma sociedade política por dirigentes políticos a súditos políticos, contexto do qual o dirigente político tem o poder, se assim o desejar, de infligir um mal ou sofrimento quando o comando por desobedecido” (MORRISON, 2006, p.267)

A questão sobre a atuação do juiz, não está particularmente na hermenêutica, mas na discussão sobre a existência de dois direitos: um direito judiciário e outro direito codificado. Austin irá formular uma filosofia do Direito que defende que o direito judiciário não é menos controlável que o direito positivado dos códigos, como afirmava Bentham. Isso acontece porque para Austin o juiz ao sentenciar deveria obedecer as leis do soberano e não estaria livre para criar. Austin repele duas afirmações sobre o direito judiciário, como relata Bobbio:

“A primeira objeção que Austin repele é por ele assim formulada: a produção do direito judiciário não pode ser controlada pela comunidade política, enquanto a do direito legislativo permite tal controle. Essa objeção evoca Bentham, mas não a reproduz fielmente. Bentham realmente falava da possibilidade de controlar a produção legislativa do direito referindo-se não à realidade de fato, mas a um Estado democrático ideal; Austin, por outro lado, formula a objeção referindo-a à realidade de fato. Desse modo, ele repele facilmente a afirmação de seu mestre, ressaltando que a possibilidade do controle popular não depende da natureza judiciária ou legislativa do direito, mas sim do tipo de constituição própria do órgão produtor do direito. Numa monarquia absoluta, existe uma produção legislativa do direito que não permite nenhum controle, enquanto este é possível na produção judiciária do direito, se os juízes forem eleitos democraticamente. A segunda objeção de Bentham refutada por Austin diz respeito à natureza arbitrária do direito judiciário, que seria criado pelos juízes sem nenhum critério objetivo, sem limites e sem controles; na realidade, observa o nosso autor, o juiz não é absolutamente livre para agir como deseja, mas está submetido a múltiplos vínculos e controles: está sujeito ao sistema dos precedentes, é controlado pela autoridade soberana que pode afastá-lo das suas funções, se não respeitar as normas jurídicas existentes; e é controlado pelos órgãos judiciários superiores, que anulariam suas eventuais decisões arbitrariamente prolatadas” (BOBBIO, 1995, p. 110)

A justificativa de Austin para o controle das decisões dos juízes está no poder do soberano e não no próprio Direito. Assim, pode-se dizer que a explicação de Austin ainda não é totalmente referenciada em questões internas da discussão da ciência do Direito. A medida que o juspositivismo avança no tempo, os autores buscam explicações cada vez mais interna.

2. Decisões jurídicas para Kelsen

Hans Kelsen que é tido como o paradigma do jusfilósofo positivista irá tratar da questão da interpretação das normas e da atuação do juiz ao julgar, afirmando que essa atividade foge dos limites da Ciência do Direito. Kelsen restringe sua Teoria Pura do Direito ao conhecimento sobre a norma jurídica com sanção e estatal, e deixa a interpretação fora da ciência do Direito. As poucas referências de Kelsen na sua Teoria Pura do Direito, quanto à atuação do juiz na interpretação tratam de dois conceitos: “interpretação autorizada/autêntica” e “moldura interpretativa”.

Kelsen entende como interpretação autêntica aquela que é dada pelo juiz na condição de autoridade competente para produzir uma norma jurídica especial, que é a sentença. As interpretações dos doutrinadores não são tidas como autênticas, uma vez que lhes falta competência estatal e suas interpretações não estão na esfera do dever ser, mas sim de um conselho. Kelsen irá discutir se essa interpretação doutrinária pode ser ciência e aponta para sua limitação:

“De princípio Kelsen nos diz que os conteúdos normativos, objetivo de uma interpretação doutrinária, são, por sua natureza linguística, plurívocos. Por isso fazem a nota da equivocidade (são vagos e ambíguos, diríamos nós). (…) A interpretação doutrinária é ciência até o ponto em que denuncia a equivocidade resultante da plurivocidade. Daí para frente, o que se faz é política, é tentativa de persuadir a alguém de que esta e não aquela é a melhor saída, a mais favorável, dentro de um contexto ideológico para uma estrutura de poder. Tudo o que existe, portanto, quando a interpretação doutrinária se apresenta como verdadeira porque descobre ‘unívoco’ do contexto normativo, é, no máximo uma proposta que se esconde sob a capa de uma pretensa cientificidade.” (FERRAZ JR, 1994, p. 262-263)

Para Kelsen não há uma interpretação judiciária verdadeira, mas diversas possíveis e isso ocorre por causa da pluralidade dos significados conteúdos normativos:

“Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença é fundada na lei, não significa que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral”. (KELSEN, 1984, p. 467)

Kelsen não trata da atividade propriamente dita do juiz de julgar, apenas apresenta que sentenciar é uma forma de produzir normas jurídicas e que o juiz que produz uma sentença interpreta a norma jurídica dentro de uma moldura, escolhendo um dos diversos sentidos que o conteúdo da norma possibilita.

Kelsen não traz recomendações para o caso das lacunas, uma vez que para o jusfilósofo o sistema de direito não deve admitir lacunas (KELSEN, 1984, p. 341).

Devido a esses diversos sentidos que uma norma jurídica pode ter, Kelsen entende que a atuação dos juízes não é apenas de declarar o que está nas normas ou mesmo de descobrir o Direito, ou seja, não é apenas jurisdictio (KELSEN, 1984, p. 329). O juiz ao sentenciar tem de determinar qual norma jurídica aplicar ao caso concreto, declarar o direito e o constituir como norma jurídica individual. Kelsen descreve os passos dessa individuação:

“Para individualizar a norma geral por ele aplicada, o tribunal tem de verificar se, no caso que se lhe apresenta, existem in concreto os pressupostos de uma consequência do ilícito determinados in abstracto por uma norma geral. Essa determinação do fato que condiciona as consequências do ilícito implica a determinação da norma geral a aplicar, isto é, a averiguação de que está em vigor uma norma geral que liga uma sanção ao fato (ou situação de fato) em apreço. O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também à quaestio juris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem de fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstracto na norma jurídica geral. Essas averiguações e esta ordem ou comando são as funções essenciais da decisão judicial. Nesse ponto existe uma certa diferença entre uma decisão civil e uma decisão penal, na medida em que, naquela, a sanção concreta é, em regra, ordenada condicionalmente. O tribunal civil condena o demandado a fazer uma determinada prestação ao demandante e ordena a sanção somente sob condição de esta prestação não ser efetuada dentro de um determinado prazo. A imposição da pena é feita, em regra, incondicionalmente. No entanto, esta também pode ser condicionada fazendo depender a sua execução do fato de o condenado cometer um novo delito dentro de um determinado prazo”. (KELSEN, 1984, p. 328)

O que importa para Kelsen é a atuação do juiz de acordo com as normas jurídicas de um Estado. Kelsen não dá pistas de como escolher uma das diversas possibilidades que o juiz tem ao sentenciar. Qualquer das possibilidades dentro da ‘moldura jurídica’ parece ser adequada. Depois de escolher um desses caminhos, somente resta ao juiz fazer a subsunção.

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3. Decisões jurídicas para Hart

Hebert Hart em seu livro “O conceito de Direito” defende que o Direito tem textura aberta. Hart defende a atividade criadora do juiz ao sentenciar, mesmo em casos em que não há previsão legislativa explicita. Assim, diz o autor:

“A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. Este fato saliente da vida social continua a ser verdadeiro, mesmo que possam surgir incertezas relativamente à aplicabilidade de qualquer regra (quer escrita, quer comunicada por precedente) a um caso concreto”. (HART, 2001, p.149)

A função criadora dos juízes ao interpretar as regras (leis e precedentes) é assumida abertamente por Hart, que critica o papel dos tribunais ingleses quando negam o caráter criativo do judiciário na elaboração dos precedentes. Nas suas palavras:

“Aqui, na franja das regras e no campo deixado em aberto pela teoria dos precedentes, os tribunais preenchem uma função criadora de regras que os organismos administrativos executam de forma centralizada na elaboração de padrões variáveis. Num sistema em que o stare decisis é firmemente conhecido, esta função dos tribunais é muito semelhante ao exercício de poderes delegados de elaboração de regulamentos por um organismo administrativo. Em Inglaterra, este fato é muitas vezes obscurecido pelas aparências: porque os tribunais frequentemente negam qualquer função criadora desse tipo e insistem em que a tarefa apropriada da interpretação da lei e do uso do precedente é, respectivamente procurar a ‘intensão do legislador’ e o direito que já existe” (HART. 2001, p. 149)

Hart é influenciado por uma filosofia da linguagem e apresenta em sua obra considerações quanto a linguagem e o Direito. É exatamente a linguagem, com sua textura aberta, que leva o Direito a também ter essa característica. É essa textura aberta da linguagem que gera a indeterminação das sentenças, sejam elas decorrentes da legislação ou dos precedentes.

“Seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamento, estes, não obstante a facilidade com que atuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão: possuirão aquilo que foi designado como textura aberta. Até aqui, apresentamos tal, no caso da legislação como um aspecto geral da linguagem humana, a incerteza da linha de fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite a questões de fato. As línguas naturais como o inglês têm irredutivelmente uma textura aberta, quando usadas desse modo” (HART. 2001, p.141)

A textura aberta do Direito não é entendida por Hart como uma falha a ser solucionada pela atividade interpretativa do juiz, mas é inerente ao Direito e também ao homem. Isso porque o homem através do Direito busca regular as condutas humanas que ainda não ocorreram, e devido a impossibilidade de saber sobre o futuro, o homem não tem como prever todas as condutas que deveriam ser reguladas. Se fosse possível tudo prever e tudo regular, bastaria ao juiz sentenciar de maneira mecânica, mas isso não é possível, como aponta Hart:

“É um aspecto da condição humana (e, por isso, da legislativa) que trabalhemos sob a influência de duas desvantagens ligadas, sempre que procuramos regular, de forma não ambígua e antecipadamente, alguma esfera da conduta por meio de padrões gerais a ser usados, sem diretiva oficial ulterior, em ocasiões particulares. A primeira desvantagem é a nossa relativa ignorância de fato; a segunda d nossa relativa indeterminação de finalidade” (HART. 2001, p.141)

A atividade do juiz ao interpretar para poder sentenciar é uma atividade que depende de sua capacidade de criar. O juiz é tido como aquele que decide as questões que estão presentes em um jogo, mesmo quando não há regras sobre o tal fato. Isso pode ocorrer, segundo Hart, porque há uma regra que diz que quando há dúvida sobre algo deve se recorrer ao árbitro. Assim, para Hart, é o juiz ou tribunal quem irá dizer o que é o direito e mesmo que ele erre ou que fosse altamente discricionário, isso não alteraria sua capacidade para continuar a dizer o que é o direito (HART. 2001, p. 157).

Para Hart, o juiz não se confunde com o legislador, uma vez que as sentenças dos juízes não fazem lei, elas apenas criam onde não há legislação e sempre com base nas regras já existentes. Assim diz Hart:

“A textura aberta do direito deixa aos tribunais um poder de criação de direito muito mais amplo e importante do que o deixado aos marcadores, cujas decisões não são usadas como precedentes criadores de direito. Seja o que for que os tribunais decidam, quer sobre questões que caem dentro daquela parte da regra que parece simples a todos, quer sobre as questões que ficam na sua fronteira sujeita a discussão, mantém-se, até que seja alterado por legislação; e sobre a interpretação de tal, os tribunais terão de novo a última palavra dotada de autoridade. Mesmo assim, continua a haver ainda uma distinção entre uma constituição que, depois de esta constituição estabelecer um sistema de tribunais, dispõe que o direito será tudo aquilo que o supremo tribunal considere adequado e a constituição efetivados Estados Unidos- ou, para mesmo efeito, a constituição de qualquer Estado moderno (….) Qualquer juiz em concreto, quando toma posse do seu cargo, como qualquer marcador quando inicia as suas funções, encontra uma regra, por exemplo a que dispõe que os atos promulgados pela Rainha no Parlamento são direito, estabelecida como uma tradição e aceite como padrão de conduta para aquele cargo. Esta regra circunscreve, ao mesmo tempo que permite a atividade criadora dos seus titulares (…) ” (HART, 2001, p. 159)

Hart ainda tratar em sua obra “O conceito do Direito” de como o juiz atua quando sentencia. Para Hart, o juiz escolhe um dentre os vários sentidos das palavras em uma determinada norma ou precedente. Essa escolha ocorre por um sistema que chama de sopesamento. Diz Hart:

“Não restam dúvidas de que os tribunais proferem os seus julgamentos de forma a dar impressão de que as suas decisões são a consequência necessária de regras predeterminadas cujo sentido é fixo e claro. Em casos muito simples, tal pode ser assim; mas a larga maioria dos casos que preocupam os tribunais, nem as leis, nem os precedentes em que as regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado. Nos casos mais importantes, há sempre uma escolha. O juiz tem de escolher entre sentidos alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações conflituantes do que um precedente ‘significa’. É só a tradição de que os juízes ‘descobrem’ o direito e não o ‘fazem’ que esconde isto e apresenta as suas decisões como se fossem deduções feitas com toda a facilidade de regras claras preexistentes, sem intromissão da escolha do juiz” (HART. 2001, p. 17)

4. Decisões jurídicas para Dworkin

Dworkin é um dos jusfilósofos modernos que trata mais longamente do problema da atuação do juiz ao sentenciar. Isso ocorre porque Dworkin está interessado em uma teoria que se conecte com a prática judiciária. A própria definição de Direito de Dworkin incorpora a interpretação: Direito é prática humana complexa, que se dá por meio das ações interpretativas e essas buscam transparência e o império do Direito.

Diferente de Kelsen e Hart, Dworkin entende que somente pode haver uma decisão correta, não sendo possíveis diversas interpretações. Para Dworkin há sempre uma resposta certa e isso ocorre porque Dworkin funda sua interpretação na racionalidade e na certeza. Segundo Dworkin há dois tipos de interpretações dos juízes, uma que pode ser feita diretamente dos precedentes ou da legislação, em que não há dúvidas sobre que direção tomar na sentença e outros casos em que não existem diretivas legais para o juiz como proceder. Dworkin denomina esses casos respectivamente de: casos fáceis e casos difíceis. Nos casos difíceis o juiz não pode se restringir as regras, como previa Hart, pois elas nada dizem sobre o caso. Dworkin cria o conceito de ‘princípios’, que são para ele proposições que descrevem direitos, e são eles que irão auxiliar o juiz nos casos difíceis.

Dworkin critica a atuação do juiz como parte de um poder discricionário e que pode criar o direito, assim como o faz o legislador. Esse poder discricionário irrestrito que permite a criação do novo, para Dworkin, não é o poder que deveria ter o juiz.

“O poder discricionário de um funcionário não significa que ele esteja livre para decidir sem recorrer a padrões de bom senso e equidade, mas apenas que sua decisão não é controlada por um padrão formulado pela autoridade particular que temos em mente quando colocamos a questão do poder discricionário” (DWORKIN, 2002, p.53)

Dworkin entende que a teoria do positivismo jurídico, em especial a de Hart, explica mal como o juiz age quando elabora uma sentença, diz o autor:

“O positivismo jurídico fornece uma teoria dos casos difíceis. Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o poder discricionário para decidir o caso de uma maneira ou de outra. Sua opinião é regida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal ideia não passa de uma ficção. Na verdade, ele legisla novos direito jurídicos (new legal rights) e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão” (DWORKIN, 2002, p.127)

Para Dworkin o poder do juiz ao julgar não pode invadir a esfera da política e criar o novo, mas deve se manter no âmbito do direito e se utilizar dos princípios para criar o direito no caso concreto para solucionar a determinada demanda. Seguindo os princípios de Direito o juiz teria um poder discricionário fraco, utilizaria de técnicas para decidir e se afasta da política e da arbitrariedade das decisões.

Se a atuação dos juízes ao sentenciar não é mero ato discricionário, mas fruto da técnica do julgar, Dworkin tem de descrever os passos para se passar da política à técnica. Para dar conta disso Dworkin cria a figura do “juiz Hércules”, que representa um ideal de como o juiz deveria atuar. Primeiramente o juiz irá verificar se o caso diante dele é um caso fácil ou um caso difícil. Se for um caso fácil o juiz aplica as leis ou os precedentes. Se for um caso difícil o juiz deve passar por uma série de etapas: a) estabelecer 3 etapas interpretativas- pré-interpretação, interpretação e pós-interpretação; b) buscar os princípios relativos ao caso, olhando para os precedentes judiciais e construindo a justificação de sua sentença como um “romance em cadeia”, c) aplicar o que chama de “princípio da integridade do direito” que instrui os juízes a identificar direitos e deveres expressando concepção coerente de justiça e equidade.

Nota-se também uma crescente preocupação com a previsibilidade dos julgamentos, que está retratado na teoria de Dworkin. Esta preocupação já estava presente nas discussões dogmáticas no início do século XX, porém é nos fins do século XX que se elabora uma teoria para buscar justificar a atuação do juiz dentro de uma tradição legal e que assim seja de alguma maneira previsível. A questão de como escolher diante de diversas possibilidades de legislação ou precedentes para elaborar uma sentença está presente em uma gama de teorias filosóficas, como as vistas acima, como também nas próprias regras da dogmática jurídica. Escolher com base na utilidade das sentenças é uma das correntes hermenêuticas que se tiveram desenvolvimento no fim do século XX.

Dworkin no artigo “A Justiça e o alto custo para a saúde” analisa a questão buscando ir além da discussão que restringe ao argumento de que a saúde deva ter custos altos se for para salvar a vida e do consequencialismo puramente econômico. O jusfilósofo busca elaborar um princípio para decisão do quanto gastar com a saúde, sem que isso gere um custo dispendioso para o país. Para tal tarefa, Dworkin propõe um outro princípio de direito para substituir o princípio do resgate.

O princípio do resgate é aquele, segundo Dworkin, que diz que se deve salvar uma vida independente do custo para o país e independente dos benefícios em longo prazo para as pessoas. Esse princípio não olha para os recursos escassos da sociedade, somente tem por base que “deve-se gastar tudo o que se pode até que não seja possível pagar nenhuma melhora de saúde ou melhorar a expectativa de vida de uma pessoa”. (DWORKIN, 2005, p. 435)

O princípio do seguro prudente visa substituir o princípio do resgate, que para Dworkin é inadequado. Segundo o princípio do seguro prudente há limites para a cobertura universal dos custos com a saúde. Esse princípio equilibra o valor estimado do tratamento com outros bens e riscos e busca avaliar a prioridade das pessoas. Para implantar tal princípio seria necessário para Dworkin um conselho de técnicos e leigos, que seriam consultados caso a caso se deveria-se pagar tratamentos específicos fora do plano geral oferecidos à todos. Esse conselho iria além da consulta somente técnica ou somente de avaliação custo benefício. (DWORKIN, 2005, p. 447).

Considerações finais

É possível notar uma mudança significativa nas teorias dos jusfilósofos apontados em relação à questão da atuação do juiz, de como as sentenças são proferidas e dos limites dessa atuação. Enquanto Austin e Hart defendem que as sentenças são parte da criação do juiz, mas essas não são criações ilimitadas devido à limitação que o faz o soberano, no caso de Austin, e do Parlamento, no caso de Hart. Kelsen irá defender um apreço as normas jurídicas na atuação do juiz, mas não delimita como o juiz pode atuar. Dworkin entende que a limitação ao juiz decorre da sua discricionariedade fraca e da necessidade de uma busca de uma técnica para julgar e não de uma atuação política, que permitiria criar o novo e minimizar a insegurança.

 

Referências
AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. A virtude soberana: a teoria a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 2ed. São Paulo: Atlas, 1994.
HART, Hebert. O conceito de Direito. 3ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2001.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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Informações Sobre o Autor

Gisele Mascarelli Salgado

Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056


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