Considerações sobre o processo administrativo disciplinar

A competência disciplinar do Poder Público consiste no dever-poder de apurar ilícitos administrativos e aplicar penalidades às pessoas que se vinculam, de alguma forma, à Administração Pública. O exercício dessa atribuição também é encontrado numa relação profissional, mediante a instauração de um processo administrativo para examinar se infrações funcionais foram cometidas por agentes no âmbito do Poder Público. Observe-se que o poder do Estado de punir seus agentes deve ser exercido quando necessário, mas deverá sempre ser apurado por meio de um processo adequado.

Além dos princípios constitucionais do art. 37, caput, da Constituição,[1] presentes em toda atividade administrativa, é necessário respeitar os princípios da ampla defesa e do contraditório, expressamente previstos na Constituição da República, no art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Conforme ensina Romeu Felipe Bacellar Filho, “O princípio da ampla defesa, aplicado ao processo administrativo disciplinar, é compreendido de forma conjugada com o princípio do contraditório, desdobrando-se i) no estabelecimento da oportunidade da defesa, que deve ser prévia a toda decisão capaz de influir no convencimento do julgador; ii) na exigência de defesa técnica; iii) no direito à instrução probatória que, se de um lado impõe à Administração a obrigatoriedade de provar suas alegações, de outro, assegura ao servidor a possibilidade de produção probatória compatível; iv) na previsão de recursos administrativos, garantindo o duplo grau de exame no processo”.[2]

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Tais requisitos são obrigatórios para a concretização do princípio do devido processo legal previsto no art. 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Não foi apenas mera coincidência a previsão da necessidade de um devido processo administrativo legal com ampla defesa e contraditório no Título II da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Em primeiro lugar, o processo deve ser compreendido como uma garantia de todo aquele que está sendo acusado de uma determinada falta. Nesse sentido, o servidor, acusado de uma infração disciplinar, terá a oportunidade de apresentar a sua defesa e comprovar suas alegações no desenvolvimento de um processo administrativo. Este será o ambiente adequado e idôneo em que o acusado poderá defender-se.

Tendo em vista a necessidade de um regular processo administrativo, em que serão assegurados os princípios da ampla defesa e do contraditório, o instituto denominado verdade sabida é inconstitucional. A verdade sabida, meio de apuração de faltas e aplicação de penalidades, previsto em determinados estatutos dos servidores públicos, consiste na mera verificação direta e pessoal do cometimento de uma infração administrativa pela autoridade que detém competência para aplicar a sanção e a imediata imposição da respectiva pena. Não existindo ampla defesa e contraditório, qualquer penalidade estabelecida é considerada nula.

Após regular processo administrativo, portanto, deve ser sancionado o servidor que, comprovadamente, cometeu ilícitos administrativos. Sanção administrativa, segundo Daniel Ferreira, consiste na “direta e imediata conseqüência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo, a ser imposta no exercício da função administrativa, em virtude de um comportamento juridicamente proibido, comissivo ou omissivo”[3].

Em virtude do princípio da legalidade e da tipicidade, compete à lei definir qual conduta configura ilícito administrativo e a sua correspondente sanção.

Quanto ao princípio da legalidade, apenas em decorrência do exercício da função legislativa pode-se inovar o ordenamento jurídico, estabelecendo tanto a descrição do ilícito administrativo como a própria penalidade respectiva. Conforme Marçal Justen Filho assevera, “submeter a competência punitiva ao princípio da legalidade equivale a afirmar que somente o povo, como titular da soberania última, é quem se encarregará de qualificar certos atos como ilícitos e de escolher as sanções correspondentes e adequadas”[4].

Em relação à importância do princípio da tipicidade, assinala Geraldo Ataliba que “o Estado não surpreende seus cidadãos: não adota decisões inopinadas que os aflijam. A previsibilidade da ação estatal é magno desígnio que ressuma de todo o contexto de preceitos orgânicos e funcionais postos no âmago do sistema constitucional”[5]. Assim sendo, levando em consideração a semelhança dos sistemas, inúmeros princípios do Direito Penal são aplicados em relação a punições no Direito Administrativo. O princípio da tipicidade, portanto, consiste na necessidade de que os comportamentos reprováveis estejam descritos por uma norma legal, atuando como uma garantia aos cidadãos para ciência das condutas admitidas ou não pelo ordenamento.

Tomando por base a Lei nº 8.112/90, estatuto do servidor público no âmbito federal, o art. 127 prevê as penalidades disciplinares que podem ser aplicadas aos servidores estatutários: advertência; suspensão; demissão; cassação de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada. O art. 130, § 2º, desta lei, ainda prevê a possibilidade da pena de suspensão ser convertida em multa, na base de 50% por dia de vencimento ou remuneração, ficando o servidor obrigado a permanecer em serviço. Cabe à autoridade competente decidir por essa conversão, quando houver conveniência para o serviço.

As fases do processo administrativo disciplinar de procedimento ordinário são, no sistema federal: a) instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão; b) inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório; c) julgamento (art. 151 da Lei nº 8.112/90).

A instauração do processo administrativo disciplinar tem início com a publicação da portaria que constituiu a comissão processante, composta de três servidores estáveis designados pela autoridade competente (art. 149 da Lei nº 8.112/90).

Observa-se, portanto, que, em virtude do princípio da oficialidade, compete à Administração, o impulso de ofício do processo. A autoridade que tiver conhecimento de infração no serviço público está obrigada a realizar a sua apuração imediata.

Eventuais impedimentos e suspeições com relação aos membros da comissão devem ser levantados para evitar a nulidade do processo administrativo. A Lei nº 8.112/90 determina que “não poderá participar de comissão de sindicância ou de inquérito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau” (art. 149, §2º). Outras hipóteses de impedimento ou suspensão estão previstas nos arts. 18 a 21 da Lei nº 9.784/99, que pode ser utilizada subsidiariamente no âmbito federal.

Um processo administrativo disciplinar eficiente depende diretamente da escolha dos membros que irão compor a comissão processante. Assim, deverão ser indicados servidores responsáveis e conscientes da importante função que irão desempenhar e da verdadeira finalidade desse instituto. Para alcançar o seu desiderato de forma imparcial, a comissão também deverá ser composta por servidores estáveis, buscando reduzir influências externas que possam afetar o resultado dos seus trabalhos.

Cabe destacar ainda a importância de instituir comissões permanentes de sindicância e processo disciplinar no interior da Administração, em respeito ao princípio do juiz natural, conforme expressamente previsto na Constituição da República, em seu art. 5º, incisos XXXVII – “não haverá juízo ou tribunal de exceção” – e LIII –  “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

A determinação prévia dos servidores que poderão compor a Comissão de inquérito administrativo garante a imparcialidade do processamento do feito, bem como a independência do juízo em relação às partes envolvidas, para se alcançar um julgamento objetivo e sem qualquer prejulgamento. Ao tratar do princípio do juiz natural, Romeu Bacellar Filho ensina que “a comissão deve ser permanente, para evitar que o administrador, ao seu talante, selecione os membros integrantes com o intuito preconcebido de absolver ou punir” [6].

No inquérito administrativo, ocorre, em primeiro lugar, a instrução do feito em que se asseguram os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF). Após a instrução, se tipificada a infração, o servidor será indiciado com especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas. Em seguida, o indivíduo será citado para apresentar defesa. O inquérito administrativo se encerra com o relatório conclusivo de competência da comissão.

O julgamento será proferido pela autoridade instauradora do processo, salvo se a penalidade a ser aplicada exceder a sua alçada. Nesse julgamento a autoridade competente acatará o relatório da comissão, salvo quando contrário à prova dos autos (art. 168 da Lei nº 8.112/90).

Há incidência do princípio da proporcionalidade na aplicação das penalidades, uma vez que a autoridade julgadora deverá considerar a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais para a escolha da sanção.

Como já afirmado em outra oportunidade[7], não se deve considerar eficiente um processo disciplinar apenas por ter sido aplicada uma penalidade. A punição não é o objetivo final e necessário do processo administrativo. A finalidade desse instrumento consiste em permitir a apresentação de resposta pelo acusado a qualquer denúncia efetuada dentro da Administração Pública, esclarecimentos de fatos e eventual aplicação de penalidade, uma vez verificada a responsabilidade administrativa de algum agente.

Notas
[1] Princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.
[2] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 347.
[3] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 34.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 398.
[5] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 145-146.
[6] BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p.88.
[7] BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Manual de Direito Administrativo. 1ª Edição – 2ª Tiragem. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 107.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt

 

Advogado da União, Mestre em Direito do Estado pela UFPR, Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba, da Escola da Magistratura Federal do Paraná, do Curso Aprovação e do Curso Jurídico. Autor do Livro “Manual de Direito Administrativo”- Editora Fórum – 2005

 


 

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