Resumo: O artigo trata de comentar o PL nº 1987/ 2007 que trata da reconsolidação das leis trabalhistas no Brasil. O texto procura mostrar criticamente que, diferente do que consta na justificativa do projeto, a “reconsolidação” proposta altera o conteúdo de uma série de leis importantes.
Introdução[1]
O PL nº 1987 de 2007 foi apresentado em 6/9/2007 pelo Deputado Cândido Vaccarezza (PT/SP), presidente (coordenador) do Grupo de Trabalho instituído pelo Congresso Nacional e que visa a consolidação das leis trabalhistas. Logo no seu enunciado, o PL propõe-se a “consolidar os dispositivos (…) referente ao Direito Material Trabalhista e revogar as leis extravagantes (…) e os artigos 1º ao 642 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT”.
No entanto, convém registrar desde logo que o PL não se limita a consolidar as leis atualmente em vigor, que estão esparsas no ordenamento jurídico, ou a eliminar as “extravagâncias” – trabalho que em si mesmo já exigiria ampliados debates preliminares e grandes dificuldades de ordem técnica. O PL vai além: ele introduz uma série de mudanças (na forma de alterações, revogações e acréscimos), de modo que, ao final, se ele, de um lado, inova e acrescenta determinados direitos, por outro lado, elimina ou reduz diversos outros direitos a partir do próprio texto da consolidação, antes mesmo do seu debate no Congresso (citam-se alguns exemplos adiante).
Comentários sobre o Projeto de Reconsolidação da CLT
A “consolidação” da legislação trabalhista proposta pelo PL é composta por 1689 artigos – portanto, apresenta, paradoxalmente, mais artigos que o atual texto da CLT (cerca de 922 artigos). Isto, ainda que o PL tenha tratado apenas do “Direito Material”[2].
Antes de, a partir de uma leitura inicial, apresentar o quão complicado é o conteúdo de alguns artigos da consolidação sugerida pelo PL, uma discussão precede às demais. Trata-se de se perguntar se é oportuno, no atual momento, colocar em debate (e votação) no Congresso Nacional todos os direitos dos trabalhadores, seja na área dos direitos individuais, dos direitos coletivos ou da organização sindical, expondo-os à possibilidade de serem modificados negativamente na forma de emendas parlamentares que objetivem reduzir ou eliminar tais direitos? Estrategicamente, é este o melhor caminho para a condução da reforma trabalhista, especialmente tendo em conta a não realização da reforma sindical e a atual composição do Congresso Nacional?
O PL traz para “dentro” da CLT legislações importantes, como, por exemplo, a lei de quotas para os portadores de deficiência física (artigo 9º do PL) e a lei da Proteção à Maternidade (artigos 216 ao 225 do PL). Por conseguinte, os comentários feitos no item anterior se recolocam uma vez mais: é oportuno colocar estas e outras legislações sob a mira de alterações do Congresso no atual momento?
O PL traz também para “dentro” da CLT legislações como a das micro e pequenas empresas (como acontece, por exemplo, no artigo 52 do PL), que podem sugerir conflitos com o atual texto da CLT, alicerçado na isonomia de direitos entre todos os trabalhadores.
O projeto, em seus artigos 342 a 358, incorpora também a legislação de greve no setor privado. Isto significa que, no debate parlamentar, esta lei, hoje já objeto de críticas por parte de diversos segmentos do movimento sindical, poderá inclusive ser piorada, estabelecendo-se mais restrições à atividade sindical.
No inciso II do parágrafo único de seu artigo 2º, o projeto define como “empregador” a administração pública direta, indireta e fundacional de todos os poderes e de todas as esferas. Entretanto, em seu artigo 10º, exclui da proposta de consolidação, salvo quando expressamente determinado em contrário, todos os funcionários públicos e servidores de autarquias paraestatais desde que em situação análoga ao do funcionalismo público. Essa aparente confusão pode ter incluído os servidores públicos, inclusive na regulamentação do direito de greve, como pode ter excluído da proteção trabalhista, os servidores públicos celetistas.
O PL, ao que parece, recoloca na nova “consolidação” (artigos 384 até 478 do PL) os artigos da CLT em vigor que tratam da organização sindical. Cabe ponderar, contudo, que existe na atualidade debate a respeito da validade do conjunto destes artigos da atual legislação, tendo em vista o que veio a estabelecer o artigo 8º da Constituição Federal de 1988, sabidamente mais próximo do princípio da liberdade sindical do que o texto da CLT.
O PL mantém, na essência, o sistema de relações de trabalho da atual CLT, que, desde sua origem nos anos 40, baseia-se no direito individual. Por conseguinte, o PL não contempla a proposta sugerida pelo movimento sindical (em particular, por parte da CUT) de um Código de Trabalho que incentive um sistema de relações estruturado na contratação coletiva.
Convém reafirmar que os comentários aqui realizados nem de longe buscam esgotar o leque de questões abertas pelo PL 1987. A análise do PL exige um olhar multidisciplinar de diversos especialistas (juristas, advogados trabalhistas, economistas, profissionais da saúde, especialistas em previdência, engenharia de produção, entre outros). Aqui são apresentados apenas alguns exemplos de artigos que ajudam a ilustrar que o PL não faz apenas uma “consolidação” da legislação trabalhista. Ele traz modificações profundas que, tendo em vista os elementos já citados, apresentam-se, em seu conjunto, como perigosas para a classe trabalhadora. Alguns dos exemplos:
1) Artigo 52 do PL: introduz o banco de horas mediante acordo individual ou coletivo.
Comentário: pela atual legislação, o banco de horas só é permitido por meio de acordo coletivo.
2) Artigo 53 do PL: exclui o § 4º do artigo 59 da CLT, que proíbe o empregado sob regime de tempo parcial de prestar horas extras.
Comentário: Ao fazer tal exclusão, o PL piora o artigo 59 da CLT. O movimento sindical tem como uma de suas principais bandeiras a redução da jornada sem redução de salário. Neste sentido, uma das propostas apresentadas recentemente pela CUT é a da limitação das horas extras. Na publicação “Horas extras: o que a CUT tem a dizer sobre isto”, de 2006, a Central apresentou sua proposta de nova legislação para as horas extras no Brasil, substituindo o atual artigo 59 da CLT, propondo que a duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares em número não excedente a duas horas diárias; 30 horas mensais e 110 horas em seis meses. Sugere também, entre outros pontos, que os empregados sob o regime de tempo parcial; aposentados; empregados que apresentem restrições físicas ou psíquicas comprovadas por um profissional de saúde; mulheres gestantes a partir do 6º mês de gravidez e; mulheres lactantes até seis meses após o parto não poderão prestar horas extras.
3) Artigos 54 do PL: autoriza por até 3 meses prorrogáveis por mais três meses a redução simultânea da remuneração e da jornada de trabalho, mediante prévio acordo com a entidade sindical.
Comentário: o artigo cria condições objetivas para a redução da remuneração e da jornada. Ao faze-lo, o PL dificulta ações judiciais contra soluções que, diante de conjunturas de supostas ou reais dificuldades, resultem na redução da remuneração dos trabalhadores.
4) Artigo 54 do PL: o artigo permite ainda que o juiz de primeira instância possa julgar conflitos coletivos.
Comentário: Na atual legislação, a prerrogativa de julgamento de conflitos coletivos é exclusiva apenas aos Tribunais.
5) Artigo 55 do PL: possibilita a redução da remuneração e da jornada, juntamente com a demissão.
Comentário: As situações de redução de remuneração e jornada são admitidas com restrições pelo ordenamento jurídico brasileiro, justamente para permitir a manutenção do emprego em situações de evidentes dificuldades conjunturais.
6) Artigo 61 do PL: trata do repouso semanal remunerado de 24 h consecutivas, aos domingos e, nos limites das exigências técnicas das empresas, nos feriados civis e religiosos. de acordo com a tradição local. (…) São exigências técnicas, as que, pelas condições peculiares às atividades da empresa, ou em razão do interesse público, tornem indispensável a continuidade do serviço.
Comentário: Quais os limites e quem define as imposições de continuidade por “exigência técnica” da atividade da empresa.
7) Artigo 64 do PL: Autoriza o trabalho aos domingos no comércio varejista em geral, observado o art. 30, inciso I, da CF, ressalvado que “o repouso semanal remunerado deverá coincidir, pelo menos uma vez no período máximo de quatro semanas, com o domingo, respeitadas as demais normas de proteção ao trabalho e outras previstas em acordo ou convenção coletiva”.
Comentário: O Congresso Nacional, recentemente, alterou esta legislação, garantindo pelo menos um repouso a cada três semanas.
8) Artigo 67 do PL: O artigo exige que as faltas por motivo de doença do empregado sejam comprovadas por meio de atestados fornecidos por médicos do INSS, ou, na falta deste, sucessivamente, por médicos do Serviço Social do Comércio ou da Indústria; de médico da empresa ou por ela designado; de médico a serviço de representação federal, estadual ou municipal incumbidos de assuntos de higiene ou de saúde pública; ou não existindo estes, na localidade em que trabalhar, de médico da sua escolha.
Comentário: Além de não fazer referência explícita aos médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) e aos médicos dos planos de saúde, o PL impõe uma ordem seqüencial que certamente dificultará a obtenção de atestado médico pelo trabalhador.
9) Artigo 69: O artigo trata do pagamento do trabalho nos feriados. Introduz a possibilidade do pagamento “em dobro”, salvo se o empregador determinar outro dia de folga.
Comentário: O artigo permite uma compensação de um feriado por outro dia trabalho qualquer determinado pelo empregador. Em outras palavras, pode-se trocar um feriado por um dia comum de trabalho na semana.
10) Artigo 164: “O empregado que exerce atividade no setor de energia elétrica, em condições de periculosidade, tem direito a uma remuneração adicional de trinta por cento sobre o salário que perceber”.
Comentário: O artigo introduz uma “pequena” mas significativa mudança em relação ao texto em vigor: ao invés de fazer referência à remuneração, utiliza o termo “salário”. Isto significa que incorporações tais como as horas extras foram excluídas do cálculo.
11) O título X, que abarca os artigos de 517 a 1684, trata da regulamentação das profissões. São elas: administrador; aeronautas; dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias; dos arquivistas e dos técnicos de arquivo; artista e de técnico em espetáculo de diversões; assistente social; dos atuários; dos bancários; dos bibliotecários; dos biólogos e biomédicos; do comerciante ambulante; do contador e do guarda-livros; do corretor de imóveis; corretor de seguros; economista; empregados nos serviços de telefonia, de telegrafia submarina e subfluvial, de radiotelegrafia e radiotelefonia; economista doméstico; profissional de educação física; profissão de enfermagem; dos engenheiros, dos arquitetos e dos engenheiros-agrônomos; das equipagens das embarcações da Marinha Mercante Nacional, de Navegação fluvial e lacustre, do Tráfego nos portos e da pesca; da profissão de estatístico; da profissão de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional; da profissão de fonoaudiólogo; dos profissionais de futebol e do treinador profissional de futebol; da profissão de geógrafo; da profissão de geólogo; da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos;da profissão de guia de turismo; dos jornalistas profissionais; da profissão de leiloeiro rural; da atividade de mãe social; da profissão de massagista; dos médicos veterinários; da profissão de museólogo; da profissão de músico; dos nutricionistas; dos odontólogos; da profissão de orientador educacional; das atividades de peão de rodeio; dos empregados nas atividades de exploração, perfuração, produção e refinação de petróleo, industrialização do xisto, indústria petroquímica e transporte de petróleo e seus derivados por meio de dutos; dos professores;da profissão de propagandista e vendedor de produtos farmacêuticos; da profissão de psicólogo;da profissão de publicitário e agenciador de propaganda; dos químicos;da profissão de radialista; do profissional de relações públicas;dos representantes comerciais; da profissão de secretário; do serviço ferroviário;dos serviços frigoríficos; da profissão de sociólogo; da profissão de técnico em prótese dentária; dos técnicos em radiologia; do técnico industrial de níveo médio e técnico agrícola de nível; do trabalho em minas de subsolo; do transportador rodoviário autônomo de bens; dos vendedores, dos viajantes ou pracista; dos vigilantes; dos zootecnistas.
Comentário: Ao que parece, a proposta do PL 1987/2007 é reunir todas as regulamentações existentes sobre as diversas profissões e atividades. O PL incorpora inclusive a regulamentação de atividades como guardador e lavador autônomo de veículos; comerciante ambulante; economista doméstico; leiloeiro rural; mãe social e; peão de rodeio. de carro. Apesar disso, o PL não consegue evidentemente abarcar todas as profissões (por exemplo, não estão contemplados, os fotógrafos, os desenhistas, os advogados e os analistas de sistemas). Cabe então perguntar se estas regulamentações não devem continuar em legislação à parte, fora da CLT. Até porque várias dessas regulamentações competem aos conselhos federais.
O PL revoga explicitamente cerca de 205 leis, decretos-lei, artigos de lei ou parágrafos de lei. Em um estudo detalhado sobre o PL é fundamental uma análise cuidadosa, uma a uma, destas revogações.
Por fim, cabe dizer que há também a necessidade de uma redação técnica mais rigorosa por parte do PL. Dois exemplos ilustram este fato. O primeiro: em determinadas passagens, o PL fixa expressamente multas em moeda corrente (ex: R$ 103,00) e não na forma indexada (tantos salários referência regional). O segundo: o PL utiliza terminologia ultrapassada como “funcionário público” e não “servidor público”.
Conclusão
Diante destes comentários preliminares, chega-se a conclusão que, não obstante a intenção mencionada pelos autores de apenas “consolidar a legislação existente e eliminar as extravagâncias”, o PL, da forma como está e da maneira como está sendo encaminhado, traz uma série de interrogações e até perigos para os trabalhadores, mesmo em se tratando de pelo manter as conquistas e os direitos dos trabalhadores.
Informações Sobre os Autores
Fausto Augusto Junior
Sociólogo e Mestrando em Educação na USP. É técnico do DIEESE
Jefferson José da Conceição
É desde janeiro de 2009 o Secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo do Campo. É Prof. Dr. da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Foi economista do DIEESE nas Subseções do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1987-2003) e da CUT (2003-2008). Autor do livro “Quando o apito da fábrica silencia”. Santo André: ABCDMaior, 2008; e um dos autores do livro “O abc da crise”. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.
Maria da Consolação Vegi da Conceição
Professora de Direito da Fundação Santo André e advogada trabalhista do Sindicato dos Bancários do ABC. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos da UNIMES.
Patrícia Toledo Pelatieri
Economista. É técnica do DIEESE