Constitucionalidade e aplicabilidade do parágrafo único do Art. 38 da LEF

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Resumo: A renúncia à faculdade de recorrer na esfera administrativa e a automática desistência de eventual recurso interposto, desde que se trate de dívida ativa, é decorrência lógica da opção feita pelo contribuinte de exercitar a sua defesa em conformidade com os meios que considere mais favoráveis aos próprios interesses (parágrafo único, art. 38, LEF). Não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade ou desproporcionalidade no dispositivo, que apenas visa conferir racionalidade à dúplice proteção do ordenamento jurídico.  Há, entretanto, um pressuposto para a aplicabilidade da prejudicialidade, qual seja, a identidade de objeto nas discussões administrativa e judicial. Uma vez que a superveniência da decisão judicial liquida a questão na esfera administrativa, somente caberá a aplicação do §único do art. 38 se a matéria for única, ou seja, a mesma nas duas esferas. Em suma, apenas em se tratando de ação judicial tendente a anular crédito devidamente inscrito em dívida ativa, é que será aplicável o parágrafo único do art. 38 da LEF.


Palavras-chave: Renúncia; Recurso Administrativo; Dívida Ativa; Judicialização.


Sumário: 1. Introdução. 2. A judicialização como renúncia da esfera administrativa. 3. Pressuposto de aplicabilidade da norma. 4. Necessidade de trânsito em julgado para a caracterização de dívida ativa. 5. Conclusão.


1. Introdução


O presente trabalho tem por escopo verificar a aplicabilidade do parágrafo único do art. 38 da LEF, que prevê a renúncia ao poder de recorrer administrativamente quando o contribuinte houver ajuizado ação para discutir judicialmente a dívida ativa. Visa-se esclarecer, em tese, a amplitude do dispositivo, bem como se a propositura de ação judicial com causa de pedir diversa também implicaria em renúncia da via administrativa.


Em consonância com o contido no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser subtraída do conhecimento do Judiciário”, seria absolutamente inconstitucional exigir o exaurimento da esfera administrativa como condição para o ingresso em Juízo. No momento em que o administrado se acha ameaçado de sofrer as conseqüências de um ato ilegal ou abusivo da autoridade fiscal, surge o interesse jurídico para demandar.


Ocorre que a efetivação desse direito produz efeitos jurídicos na esfera administrativa, consoante se pode extrair do parágrafo único do artigo 38 da LEF.


Art. 38 – A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.


Parágrafo Único – A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.” (g.n.).


2. A judicialização como renúncia da esfera administrativa


“A lei fala impropriamente em renúncia ao poder de recorrer e em desistência do recurso interposto, que são atos voluntários. O que deveria dizer e o que se há de entender é que a invocação do Judiciário traz como conseqüência o arquivamento ou a extinção do procedimento administrativo sobre as questões argüidas na ação proposta em juízo” (José da Silva Pcheco, Comentários à Lei de Execução Fiscal, 8ª Ed., Ed. Saraiva, 2001, p. 282).


Tem-se que a renuncia à faculdade de recorrer na esfera administrativa e a automática desistência de eventual recurso interposto é decorrência lógica da opção feita pelo contribuinte de exercitar a sua defesa em conformidade com os meios que considere mais favoráveis aos próprios interesses.


Não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade ou desproporcionalidade no dispositivo, que apenas visa conferir racionalidade à dúplice proteção do ordenamento jurídico. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça defendem a constitucionalidade e a legalidade da regra.


“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO DESTINADO À DISCUSSÃO DA VALIDADE DE DÍVIDA ATIVA DA FAZENDA PÚBLICA. PREJUDICIALIDADE EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO QUE TAMBÉM TENHA POR OBJETIVO DISCUTIR A VALIDADE DO MESMO CRÉDITO. ART. 38, PAR. ÚN., DA LEI 6.830/1980. O direito constitucional de petição e o princípio da legalidade não implicam a necessidade de esgotamento da via administrativa para discussão judicial da validade de crédito inscrito em Dívida Ativa da Fazenda Pública. É constitucional o art. 38, par. ún., da Lei 6.830/1980 (Lei da Execução Fiscal – LEF), que dispõe que “a propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo [ações destinadas à discussão judicial da validade de crédito inscrito em dívida ativa] importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”. Recurso extraordinário conhecido, mas ao qual se nega provimento.” (RE 233582, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 16/08/2007, DJe-088 DIVULG 15-05-2008 PUBLIC 16-05-2008 EMENT VOL-02319-05 PP-01031)


“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. DECISÃO QUE ANULOU O ACÓRDÃO RECORRIDO POR CONTRADIÇÃO (ART. 535 DO CPC). MULTA PREVISTA NO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC  PREJUDICADA PELA NULIDADE DO ACÓRDÃO.  SUPOSTO RECONHECIMENTO DO DIREITO DA CONTRIBUINTE POR PARTE DO FISCO. VERIFICAÇÃO INVIÁVEL. 1. Hipótese em que a decisão monocrática deu provimento ao Recurso Especial da empresa, uma vez constatada contradição no acórdão recorrido. 2. A contribuinte agrava, pedindo o afastamento da multa aplicada pelo TJ (art. 538, parágrafo único, do CPC), e a modificação do provimento dado ao Recurso, pois teria havido reconhecimento, pelo Fisco, de que o auto de infração era inválido. 3. Ao anular o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça, relativo aos Embargos de Declaração, foi extinta, por conseqüência lógica, a multa então aplicada nos termos do art. 538, parágrafo único, do CPC.


4. Quanto ao suposto reconhecimento pelo Fisco de que a autuação é nula, a contribuinte refere-se à decisão do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, posterior ao início da demanda judicial. 5. A informação é controversa, pois não houve confirmação pela recorrida. Não há como o STJ analisar a decisão administrativa para aferir eventual identidade de objeto e a prejudicialidade argüida pela empresa. 6. Ademais, a propositura de Ação Anulatória pela contribuinte (caso dos autos) implica, como regra, a renúncia à instância administrativa (art. 38, parágrafo único, da Lei 6.830/1980 e precedentes do STJ), o que impede a presunção de prejudicialidade em favor da empresa. 7. Inviável, portanto, a extinção do feito nesta instância especial, podendo o pedido ser reiterado nas instâncias ordinárias. 8. Agravo Regimental não provido.” (AgRg no REsp 821.434/SP, Rel. Ministro  HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/02/2009, DJe 19/03/2009)


3. Pressuposto de aplicabilidade da norma


Há um pressuposto para a aplicabilidade da prejudicialidade, qual seja, a identidade de objeto nas discussões administrativa e judicial. É que, como o escopo na norma é exatamente evitar o surgimento de conflitos entre decisões divergentes, se a ação judicial não coincidir com o objeto do procedimento administrativo, restaria afastada a chamada “litispendência”.


Ocorre litispendência quando duas causas são idênticas quanto às partes, o pedido e a causa de pedir, ou seja, quando se ajuíza uma nova ação que repita outra já ajuizada, sendo idênticas as partes, o conteúdo e pedido formulado. Malgrado a litispendência do Código de Processo Civil ser aplicada tão-somente diante da coexistência de duas ações judiciais, entende-se que no âmbito administrativo seria possível cotejar um processo administrativo com um processo judicial, fazendo-se uso da regra contida no C.P.C., uma vez que a caracterização da litispendência produz conseqüência idêntica à constante do parágrafo único do art. 38 da LEF, a saber, ocasiona a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 267, V, do CPC.).


Como bem leciona Leandro Paulsen, em sua obra Direito Processual Tributário, “o parágrafo em questão tem como pressuposto o princípio da jurisdição una, ou seja, que o ato administrativo pode ser controlado pelo Judiciário e que apenas a decisão deste é que se torna definitiva, com o transito em julgado, prevalecendo sobre eventual decisão administrativa que tenha sido tomada ou pudesse vir a ser tomada. Considerando que o contribuinte tem direito a se defender na esfera administrativa mas que esfera Judicial prevalece sobre a administrativa, não faz sentido a sobreposição dos processos administrativo e judicial. A opção pela discussão judicial, antes do exaurimento da esfera administrativa, demonstra que o contribuinte desta abdicou , levando o seu caso diretamente ao Poder ao qual cabe dar a última palavra quanto à interpretação e à aplicação do Direito, o Judiciário. Entretanto, tal pressupõe identidade de objeto nas discussões administrativa e judicial. Caso a ação anulatória fira, e. g., a questão da constitucionalidade da norma tributária impositiva e o recurso administrativo se restrinja a discussões quanto à apuração do valor devido, em razão de questões de fato, não haverá a identidade que tornaria sem sentido a concomitância das duas esferas”. (2007, p. 413).


Segundo Araken de Assis, “empregando algum remédio processual, o contribuinte renuncia ao poder (rectius: faculdade) de recorrer e desiste do recurso, porventura interposto na esfera administrativa (…). Face à preponderância do órgão judiciário sobre a autoridade administrativa, submetendo-a sempre aos seus pronunciamentos, a decisão administrativa restaria mesmo prejudicada: idêntica ao teor do provimento judicial, se mostraria redundante; contrária, inútil. Por este motivo, e considerando razões de economia e orientação aos órgãos administrativos, o único destino admissível do procedimento administrativo, na hipótese de sobrevir iniciativa judicial do contribuinte, é a extinção”.(in Manual do Processo de Execução. 6º Ed. RT: 2003, pág. 801).


Interpreta-se da seguinte forma: Se a medida judicial versar sobre o mesmo objeto do recurso administrativo, o interesse recursal no âmbito administrativo resta desaparecido. Cabe aqui mencionar que o citado dispositivo não malfere o princípio da independência das esferas administrativa, cível e criminal, nas quais a atuação pode ser simultânea, desde que, como visto, não faleça a uma delas o interesse de agir (condição da ação).


4. Necessidade de trânsito em julgado para a caracterização de dívida ativa


Ocorre que o art. 38 refere-se à discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e não há dívida ativa antes da coisa julgada administrativa.


“Art. 38 – A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.” (g.n.).


Após a coisa julgada administrativa e a inscrição do débito em dívida ativa, aí sim não subsiste interesse na sorte do recurso administrativo eventualmente interposto, pois que sempre prevalecerá a decisão oriunda do Poder Judiciário.


Todavia, a lavratura do auto de infração não gera de imediato a consolidação do débito, tampouco propicia a sua inscrição em dívida ativa. A autuação concretiza apenas o início do procedimento destinado à apuração da infração e aplicação das penalidades administrativas ambientais.


É o que se extrai do art. 96 do Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre as infrações ambientais e respectivas sanções administrativas.


“Art. 96.  Constatada a ocorrência de infração administrativa ambiental, será lavrado auto de infração, do qual deverá ser dado ciência ao autuado, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa.” 


Em outras palavras, a autuação não se traduz em aplicação definitiva da sanção, uma vez que somente após o transcurso do procedimento e com a decisão da autoridade administrativa tornada definitiva, ou seja, não passível de recurso, é que o crédito da Administração poderá ser tido por consolidado.


A inscrição da multa administrativa em dívida ativa marca o fim do processo administrativo apuratório.


“Nas precisas palavras de DEBRASCH”, a Administração pode tomar, sponte sua, as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, impondo desde logo obrigações aos particulares, com vistas ao interesse coletivo. Pelo objeto que a inspira, não pode ficar a Administração à mercê do consentimento dos particulares. Ao revés, cumpre-lhe agir de imediato” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13ª Ed., 2005).


Essa prerrogativa de praticar imediatamente a execução de um ato, independentemente de manifestação judicial, denomina-se autoexecutoriedade. Tanto é autoexecutória uma restrição imposta em caráter geral, como a que se destina diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimentos, etc.


Há atos, no entanto, em que não se autoriza a imediata e satisfativa execução, como é o caso das multas, cuja cobrança somente se concretiza pela ação própria na via judicial. Portanto, a Administração, por meio de seus agentes, expede auto de infração e concede oportunidade para o autuado defender-se, não podendo promover atos executórios, ou seja, não expropriará o indivíduo de seus bens para satisfazer a obrigação pecuniária existente.


Tornada definitiva a multa, após a coisa julgada administrativa, e depois de esgotado o prazo conferido ao infrator para pagamento, terá a Administração que inscrever o crédito não tributário em dívida ativa e buscar as vias judiciais para compelir o pagamento coercitivo da sanção.


Concluindo: A lavratura de um auto de infração não pode ser confundida com a inscrição do suposto débito em dívida ativa. É que tão-somente após a formação da coisa julgada administrativa (decisão da autoridade julgadora de última instância, sobre a qual não caiba mais recurso) é que o crédito se tornará definitivo e estará passível de inscrição em dívida ativa.


Dívida ativa é o crédito público não extinto, notadamente por pagamento, e não afetado por nenhuma causa de suspensão de exigibilidade, integrado ao cadastro identificado pelo mesmo nome mediante ato administrativo próprio denominado de inscrição.


Assim, os elementos inafastáveis da dívida ativa são: (a) crédito público; (b) ausência de causa extintiva ou suspensiva (da exigibilidade); (c) inscrição e (d) integração a um cadastro específico.


Desse modo, o parágrafo único do art. 38 da LEF é claro no sentido de que a opção pela discussão judicial do débito inscrito implica no esgotamento do processo administrativo.


5. Conclusão


Face às razões expostas, tem-se que a propositura de uma ação judicial visando anular um auto de infração ainda não homologado e não inscrito em dívida ativa não tem o condão de suspender o procedimento apuratório administrativo, tampouco de aniquilá-lo, salvo decisão judicial em sentido contrário. Por outro lado, em se tratando de ação judicial tendente a anular crédito devidamente inscrito em dívida ativa, aí sim será aplicável o parágrafo único do art. 38 da LEF.


Na última hipótese, ressalte-se, somente há de se aplicar o §único do art. 38 se a matéria for única, ou seja, a mesma nas duas esferas.



Informações Sobre o Autor

Mariana Wolfenson Coutinho Brandão

Procuradora Federal em exercício no IBAMA-Sede. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola de Magistratura de Pernambuco – ESMAPE