Constituição, movimentos sociais e cultura jurídica tradicional

Resumo: Este artigo analisa as circunstâncias histórico-sociais de criação da Constituição brasileira, e em que medida elas contribuíram para um texto amplo, detalhista e ideologicamente fragmentado. Ele apresenta condicionantes históricas, como a de crise de hegemonia do período constituinte, que resultou num texto sem grande unidade lógico-formal. Esse fato resultou, segundo o artigo, em uma ampliação de demandas sociais, as quais foram levadas ao Judiciário, que se tornou uma arena importante de embate. Esses embates, conclui o artigo, não são adequadamente explicados pela chamada cultura jurídica tradicional.

Palavras-chave: Constituição; História; Sociologia.

Abstract: This article analyzes the historical-social circumstances of the creation of the Brazilian Constitution, and to what extent they contributed to a broad, detailed and ideologically fragmented text. It presents historical constraints, such as that of crisis of hegemony of the constituent period, which resulted in a text without great logical-formal unity. This fact resulted, according to the article, in an expansion of social demands, which were taken to the Judiciary, which became an important arena of struggle. These clashes, the article concludes, are not adequately explained by the so-called traditional legal culture.

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Key-words: Constitution; History; Sociology.

Sumário: Introdução. 1. Circunstâncias históricas do processo constituinte e características do texto constitucional. 2. O Judiciário e a Constituição. 3. Cultura jurídica tradicional: utilitarismo, individualismo e formalismo. 4. Constituição e movimentos sociais: desafios à cultura jurídica tradicional. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, traçamos um panorama da atual Constituição brasileira, destacando em que medida as circunstâncias histórico-sociais de sua criação contribuíram para um texto amplo, detalhista e ideologicamente fragmentado. O processo constituinte deu-se num momento de crise de hegemonia, o que possibilitou uma ampla participação (algumas vezes direta, no mais das vezes indireta) da sociedade civil (e também dos movimentos sociais) na elaboração do texto constitucional. Tudo isso resultou numa Constituição sem unidade lógico-formal, o que, conforme aponto, tornou-se um catalizador de demandas populares, fomentando a mobilização de movimentos sociais e tornando o Judiciário um locus privilegiado para a vocalização de suas demandas. Essa nova configuração social e constitucional, no entanto, entra em choque com a mentalidade tradicional do meio jurídico brasileiro (que chamei de “cultura jurídica tradicional”), marcada pelo utilitarismo, individualismo e – especialmente – formalismo. Tento demonstrar nesse artigo como essa cultura e o tipo de racionalidade dominante no sistema jurídico estão deslocadas dos novos tipos de demandas e atores que surgiram pós-Constituição. Afirmo que há um hiato entre a racionalidade formal e as demandas dos movimentos sociais, o que aponta para uma crise e um paradoxo: uma crise da cultura jurídica tradicional, e um paradoxo entre a manutenção da lógica tipicamente jurídica e o uso dos tribunais para a solução de demandas que não se encaixam nessa lógica.

1 CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS DO PROCESSO CONSTITUINTE E CARACTERÍSTICAS DO TEXTO CONSTITUCIONAL

A promulgação da Constituição brasileira, surgida num período pós-ditatorial, tem alguns traços marcantes. Marcos Nobre (2008) aponta algumas características importantes que se refletiram na estrutura e na forma do texto constitucional: (1) ausência de um bloco hegemônico que conduzisse o processo de elaboração da Constituição; e (2) intensa participação da sociedade civil. Essas duas características do processo constituinte se refletiram no texto constitucional, excessivamente detalhista e com muitas matérias deixadas à regulação posterior (grande número de normas de “eficácia limitada”). Não era possível chegar-se a acordos mais substantivos, e a fragmentação dos interesses políticos tornava impossível que houvesse um consenso suficiente, ou mesmo que se alcançasse o quórum de maioria qualificada exigido, a respeito de determinadas matérias. “O texto constitucional”, afirma Nobre (2008, p. 100), “é muito mais uma expressão, uma cristalização da crise de hegemonia própria dos anos 1980 do que um índice de sua superação”.

Outro fator que deve ser acrescentado é o “enfraquecimento da ação partidária”. Os partidos não se “reformularam” para a fase constituinte, de maneira que os agrupamentos partidários que compunham a Assembleia Constituinte, com exceção de alguns partidos menores, como PT (à época), PCB e PC do B, não se apresentavam ideologicamente coerentes, havendo divergências programáticas dentro das próprias siglas (BONAVIDES; ANDRADE, 1988, p. 472). Isso, sem dúvidas, contribuiu para uma fragmentação ideológica, já que não haviam grupos coesos que pudessem tentar alcançar a hegemonia na condução do movimento.

Essa característica do processo constituinte e do próprio texto Constitucional deu munição para que o atacassem de “colcha de retalhos”: não há uma ideologia, uma sentido unitário definido. A mesma Constituição que, de um lado, consagra os valores da livre iniciativa típicos de uma ordem liberal clássica, de outro, distribui direitos sociais que fariam corar qualquer liberal, mas sorrir partidários do welfare state.

Fato curioso a respeito do caráter ideologicamente heterogêneo da Constituição de 1988 é o relato de Leôncio Martins Rodrigues, citado por Paulo Bonavides e Paes de Andrade. Questionados sobre suas posições políticas e filiações ideológicas, “nenhum deputado se declarou ser de direita ou de esquerda” (BONAVIDES; ANDRADE, 1988, p. 474). Bonavides e Andrade são céticos quanto a essas auto-declarações dos deputados constituintes, mas não deixa de ser interessante notar como o processo foi conduzido por pessoas que procuravam, o quanto possível, não filiar-se a ideologias definidas. Se isso não impediu que se formassem coalizões em torno de convicções comuns (caso emblemático é o do chamado “Centrão”), não deixa de ser um fato que corrobora a tese de Marcos Nobre segundo a qual o processo constituinte foi marcado por uma “crise de hegemonia”.

A ausência de um núcleo político hegemônico e de uma convergência mais profunda de interesses, aliada a um texto constitucional nos moldes do texto de 1988, fez com que “todas as forças políticas passassem a recorrer ao direito para conquistar e preservar espaços na luta por direitos e fundos públicos”. A fragmentação levou à juridificação.

 Mais ainda: a fragmentação política levou o texto constitucional a engessar determinadas matérias o que, junto a um texto amplo e detalhista, tornou a Constituição Federal referência para as discussões políticas.

Nessa linha é o diagnóstico de José Eduardo Faria (1989, p. 17):

"Se é certo que o pleito para  a escolha dos integrantes da Assembléia foi realizado com base num espectro partidário ideologicamente inconsistente e num sistema eleitoral que atomizava as classes sociais enquanto cidadãos e eleitores sujeitos a discursos programáticos ambíguos e vazios por parte dos candidatos, também é correto que a própria “abertura” propriciada pela “Nova República”, apesar de bastante restrita e contemporizadora, propiciou novas condições para lutas mais amplas por transformações alternativas da sociedade e novas circunstâncias para a polarização e confrontação social".

A Constituição de 1988, portanto, foi menos uma constituição de consenso do que uma constituição de compromisso: menos consenso em torno de valores comuns, do que compromisso entre valores divergentes. Essa característica do texto constitucional, acredito, tornou a Constituição ponto de referência para as mais diversas discussões públicas.

Essa extensão e detalhismo tornou possível que todas as demandas públicas se vocalizassem em termos constitucionais. Para os movimentos sociais, carregadores dos protestos contra a sociedade e seus sistemas funcionais, a Constituição permitiu juridicizar suas demandas de protesto, já que tratou do funcionamento de praticamente todos os outros sistemas sociais. Os tribunais, então, em especial os tribunais superiores, tornaram-se um locus privilegiado para os protestos dos movimentos sociais, que passaram a tomar a forma de demandas jurídicas. Juntamente a isso, a Constituição assegurou o amplo direito de acesso ao judiciário, e com a ampliação dos legitimados para a proposição de ações de controle de constitucionalidade, passou a ser o centro e ponto de referência a partir do qual os movimentos sociais poderiam ter voz e vez.

A mobilização dos movimentos sociais passou a dar-se, então, em dois níveis: num primeiro, propriamente político, tratava-se de lutar pela regulamentação (que Faria (1989) chamou de “batalha regulamentar”) de determinados dispositivos constitucionais (ainda não-regulamentados) que favorecessem suas demandas (caso, por exemplo, da greve dos servidores públicos); num segundo, já jurídico, tratava-se de fazer valer, mesmo sem regulamentação, direitos constitucionalmente assegurados.

Essas circunstâncias cristalizaram-se num texto constitucional fragmentário e ideologicamente heterogêneo. Conforme afirma o professor Faria (1989, p. 52), “o projeto aprovado pela Assembléia Constituinte peca por sua falta de unidade lógico-formal (…) pela inexistência de identidade e ideologia próprias”. Nesse sentido “a nova Constituição não é um sistema lógico-formal destinado a funcionar na produção de resultados concretos e específicos” (FARIA, 1989, p. 17). Em nome da congregação de valores díspares e fruto de uma crise de hegemonia, a Constituição perdeu em unidade e consistência, o que por certo pôs em xeque – como veremos adiante – diversos postulados lógico-formais do raciocínio jurídico. É certo, também, que essa fragmentação ideológica foi o catalizador de diversas demandas de movimentos sociais, que passaram a ter a seu dispor diversos dispositivos constitucionais para questionar estruturas sociais vigentes e que, muitas vezes, também tinham respaldo no texto da Constituição. Tornou-se possível assim questionar arranjos institucionais, políticas públicas e planos econômicos, prima facie constitucionais, com base em outros dispositivos da própria Constituição. O texto constitucional facilitou, assim, “a constituição de novos sujeitos ou atores políticos”, alargou “o espectro político à disposição de grupos voltados voltados aos interesses dos setores populares”, adensou os “mecanismos de participação/ação/mobilização política”, aprofundou “o alcance dos direitos sociais e [assegurou] novos direitos coletivos” (FARIA, 1989, p. 21).

Todas essas características da Constituição ensejaram novas demandas, que, dada a grande abrangência do texto constitucional, passaram a ser judicializadas. Os movimentos sociais foram, em parte, responsáveis (na medida em que realizaram pressões e participaram ativamente do processo constituinte), em parte, resultado (na medida em que a Constituição tornou-se um catalisador para suas demandas e para sua mobilização) desse processo.

2 O JUDICIÁRIO E A CONSTITUIÇÃO

Vale ressaltar ainda um aspecto importante da nova realidade constitucional brasileira, surgida com a Constituição de 1988: o Judiciário, que por 20 anos se submetera a uma ditadura militar, passou a gozar de autonomia e independência efetivas e a estar aberto aos mais diferentes tipos de demanda (poderíamos dizer, em face do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a todos os tipos de demanda). O Judiciário voltou a ter voz ativa. Esse processo foi menos resultado da Constituição em si do que do longo processo de redemocratização, mas não é errado afirmar que a Constituição de 1988 desempenhou um papel decisivo nesse aspecto.

Não que antes o Judiciário não condenasse o Estado a pagar indenizações em casos particulares. Isso ocorreu, mesmo no período de ditadura. O que aconteceu foi que o Judiciário, “devido a pressões dos movimentos sociais de base, movimentos populares e classes populares, passou a ter visibilidade em novas espécies de conflito” (LOPES, 2010, p. 72). A Constituição, nesse aspecto, foi fundamental: garantiu a independência dos magistrados, a harmonia entre os poderes; trouxe um rol amplo de direitos sociais e garantias individuais que poderiam ser exigidas no Judiciário (e que implicariam em “intromissões” nos demais poderes). Tudo isso, aliado à mudança social do final da década de 1980 (abertura democrática, avanço do sindicalismo, organização de movimentos sociais) colocou o Judiciário num novo patamar, e sua autonomia e independência trouxeram de volta a questão sobre suas responsabilidades sociais (principalmente em face da judicialização de várias áreas da vida política e econômica).

Talvez a característica mais importante da atual Constituição, e que alterou profundamente o papel do Judiciário brasileiro, seja o seu aspecto “dirigente”: a juridificação de matérias antes afetas exclusivamente ao domínio político e econômico, e a seleção de finalidades vinculantes para a atividade governamental. Quer dizer, a Constituição passou a assegurar direitos sociais importantes, e a permitir (por meio do amplo acesso ao Judiciário) que eles fossem exigidos perante juízes e tribunais. O Direito passou a criar limitações e estabelecer finalidades para a elaboração de políticas públicas, o que, por certo, trouxe novos desafios à relação entre os sistemas político, jurídico e econômico. Também concentrou no Judiciário problemas que passaram a envolver não só questões jurídicas, mas também políticas, econômicas e até morais (muito devido à consagração de um “princípio da dignidade humana” no art. 1º da Constituição). Esse aumento de temas judicializáveis, os novos tipos de demanda que passaram a ser veiculadas nos tribunais, junto ao caráter finalístico da Constituição (que vinculou atividades estatais a dispositivos teleológicos) alterou a forma tradicional de conceber as responsabilidades do Judiciário: passou-se a questionar a “responsabilidade social” dos juízes. Isso colocou sérios desafios à racionalidade formal-burocrática dominante na cultura jurídica brasileira, ponto que será explorado de forma mais detalhada nos tópicos seguintes.

3 CULTURA JURÍDICA TRADICIONAL: UTILITARISMO, INDIVIDUALISMO E FORMALISMO

Conforme vimos, os movimentos sociais foram tanto responsáveis por uma Constituição detalhista, extensiva e garantidora de direitos sociais, como tiveram um estímulo adicional dessa mesma Constituição: se por um lado ajudaram a moldá-la, por outro, foram moldados por ela. Essa situação permitiu que aflorassem novas demandas sociais que, graças ao novo texto Constitucional, encontraram (ou deveriam encontrar) respaldo no Poder Judiciário: quer dizer, a Constituição trouxe novos fundamentos para a expressão de demandas sociais ao mesmo tempo que tornou-se receptiva a elas.

Essa nova configuração social e constitucional, no entanto, encontrou, desde seu início, um adversário bastante enraizado no Brasil: o que chamarei de “cultura jurídica tradicional”. Por cultura jurídica entendo a ideologia dominante entre os membros, potenciais e efetivos, do poder judiciário brasileiro, e o tipo de prática e atitude moldada por essa ideologia: “um conjunto de crenças de caráter moral e simbólico que sustenta de maneira geral a prática dos homens imersos em um determinado sistema social” (LOPES, 2010, p. 71), no caso, o sistema jurídico. Tentarei identificar algumas características dessa cultura e mostrar porque elas se contrapõem às demandas dos movimentos sociais constitucionalizadas a partir de 1988.

Uma das características mais marcantes dessa cultura é o seu apego ao utilitarismo. Como tal, sustenta, ora explícita, ora implicitamente, que todas as questões (mesmo as de Justiça e Cidadania) podem ser entendidas (e resolvidas) a partir da análise de interesses  comensuráveis. O jurista, formado nessa cultura, entende as demandas contrapostas que se apresentam numa lide como interesses conflitantes que podem ser medidos a partir de um critério comum e que deve servir de base e de norte para sua decisão.

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O apego ao utilitarismo deve-se, em parte, à crença de que não cabe ao juiz discutir a legitimidade, a importância ou a relevância social das demandas contrapostas. As circunstâncias sociais, como, por exemplo, um contexto de desigualdade e exclusão crônicas, não alteram a “qualidade” dos interesses envolvidos. Daí dizer-se que essa cultura é utilitarista: não porque haja uma influência direta de Mill ou Bentham, mas porque, tal como utilitaristas, os juristas formados nessa tradição tentam, ao máximo, abster de julgar criticamente a “qualidade” dos interesses, o contexto social que tornaria a situação concreta de uma pessoa ou grupo (e assim, seus interesses) fundamentalmente distintos e qualitativamente incomparáveis aos interesses de indivíduos para o qual esse contexto não se aplicaria. Abstrai-se, portanto, a realidade concreta das pessoas e dos grupos, e isso guarda uma relação estreita com a característica seguinte dessa cultura jurídica tradicional.

Além do utilitarismo, a cultura jurídica também é marcada pelo individualismo. Esse individualismo, de um lado, sustenta que o indivíduo precede a, e está acima da, sociedade: o coletivo deve estar subordinado ao individual, e, em casos em que prevaleça, será porque o coletivo está sendo entendido como a soma agregada de preferências individuais – o coletivo só prevalece quando está em jogo o maior benefício possível para o maior número possível de indivíduos (aproximam-se, aqui, individualismo e utilitarismo). Por outro lado, e como decorrência do ponto anterior, tende a entender as demandas por direitos ou como demandas por direitos individuais ou como demandas individuais por direitos: mesmo no caso das demandas coletivas, tende a entendê-las como demandas de direitos individuais agregados (ainda que difusamente agregados).

Por fim, a cultura jurídica também é formalista: e esse é, no nosso entender, seu aspecto mais importante. Desde cedo, os estudantes de direito são treinados a entender não a dinâmica social, não os problemas concretos que a sociedade e o sistema jurídica enfrentaM, mas as estruturas burocráticas do aparato judicial. O que ele deve aprender é a “lógica do sistema”, sistema no qual deve entrar, fechar-se e passar a raciocinar de forma recursiva segundo padrões determinados. O estudante deve familiarizar-se com os procedimentos, o “andamento” cartorário, o intricado funcionamento de fóruns e tribunais. Como advogado ou “operador do direito” (um termo que, aliás, já denota o tipo de formalismo que estou descrevendo) e ao imiscuir-se ainda mais nesse universo, percebe que as questões formais e burocráticas são mais decisivas para o andamento do processo (e para sua decisão) do que a questão de fundo envolvida. “Nos burocratizados tribunais brasileiros”, escreve José Eduardo Faria, “[seus] integrantes parecem acreditar que os conflitos podem ser solucionados pelo simples apego a certas formas e/ou pela ritualização de certos atos” (FARIA, 2010, p. 94).

Essas características que atribuí (seguindo Lima Lopes) à cultura jurídica tradicional, decorrem em parte do modelo que o professor Faria chama de modelo “liberal-burguês” (FARIA, 1992, p. 25) e também da influência do positivismo normativista de matriz kelseniana, que nortearam tanto a estruturação de nossas instituições jurídicas pré-1988 quanto a formação jurídica e profissional de nossos “operadores” do direito e de nossa cultura jurídica.

As instituições jurídicas moldadas nessa tradição liberal caracterizam-se pela constitucionalização do poder do Estado, a unificação das fontes do direito, codificação das diferentes leis e normas, institucionalização das funções normativas, profissionalização das atividades judiciais e atuação padronizada e impessoal dos intérpretes do direito (FARIA, 1992, p. 25). A cultura jurídica que daí resultou, orientada pelo ideal de “segurança jurídica” e “estabilidade social”, tornou-se essencialmente formalista em que passou a vigorar um apego excessivo a um tipo de racionalidade lógico-formal e uma ideologia legalista (FARIA, 1992). Tratava-se de formar os profissionais numa cultura de “respeito” às instituições, em que juízes e tribunais deveriam aplicar o direito da forma mais literal possível, em nome da previsibilidade e da decidibilidade dos conflitos. Os juízes, cegos aos interesses particulares, às circunstâncias sociais e às condições políticas e econômicas concretas, deveriam enxergar os conflitos de forma “neutra” (donde a tradicional imagem da deusa vendada), e também de forma “neutra” e desapegada (daí a noção de um “terceiro impessoal) decidi-los.

Na interpretação jurídica (e na prática forense), os juristas passaram a enxergar o ordenamento jurídico a partir dos postulados de unidade, sistematicidade e coerência, que se baseavam (e ao mesmo tempo fomentavam) a ideologia e o paradigma liberais. A “certeza jurídica” torna-se “condição legitimadora da ordem institucional” e passa a exigir uma “tecnificação na aplicação do direito” (FARIA, 1992, p. 25). Isso levo os aplicadores do direito a (a) raciocinar a partir de uma séria constante de abstrações e (b) entender o indivíduo de forma atomizada, individualizada, fora do seu contexto social e – portanto – como uma figura abstrata. Essas características, supostamente, permitiriam a neutralidade necessária à atividade judicante (pois abstrairia as condições concretas dos indivíduos, em nome da igualdade formal) (FARIA, 1992) e garantiriam a certeza e a segurança jurídica (pois os julgamentos se dariam em abstrato, fora das circunstâncias concretas, mutáveis e potencialmente infinitas da vida social). Um exemplo ilustrativo do que expus é a noção de “sujeito de direito”, “um caso paradigmático do processo de asbtração generalizante” (FARIA, 1992, p. 55) de base liberal, por um lado, e positivista, por outro, que marca a cultura jurídica tradicional. Sobre isso, vale citar, mais uma vez, o professor Faria num trecho que, mesmo longo, merece ser citado integralmente por condensar vários pontos da presente exposição.

"Mediante essa estratégia de generalização indeterminada, as normas podem organizar relações formalmente “igualitárias” entre os “sujeitos de direito”; organização essa que, privilegiando a autonomia (formal) da vontade e a liberdade (formal) de disposição contratual, condições básicas para a satisfação das necessidades por meio do mercado, também torna previsíveis e controlóveis atos de autoridade emanados dos diferentes órgãos decisórios do sistema normativo. Em nome dessa concepção legal-racional de legitimidade, que despreza as determinações genético-políticas de suas categorias e preceitos, tal sistema é auto-limitado para resolver conflitos jurídicos a partir de decisões estritamente legais – o que faz com que a ordem institucional seja encarada como uma estrutura formalmente homogênea, exclusiva e disciplinadora tanto dos órgãos estatais quanto do comportamento dos cidadãos" (FARIA, 1992, pp. 57-58).

Em que medida essa cultura tradicional choca-se, de frente, com a nova realidade social brasileira pós-1988, com a proliferação de demandas coletivas, o uso do judiciário pelos movimentos sociais e uma Constituição ideologicamente pulverizada e de caráter eminentemente “dirigente”? É o que se verá no próximo tópico.

4 CONSTITUIÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS: DESAFIOS À CULTURA JURÍDICA TRADICIONAL

Utilitarismo, individualismo, formalismo; caráter abstrato, suposta neutralidade, atomização dos indivíduos; apego à segurança e certeza jurídica. Se podemos entender a cultura jurídica brasileira tradicional a partir dessas características, podemos perceber em que a Constituição atual e os movimentos sociais põem em xeque essa cultura. Tentarei mostrar, brevemente, de que modo se dá esse confronto, enfatizando em que medida as características típicas dessa cultura são incapazes de lidar com os novos atores políticos e as novas formas de mobilização do judiciário.

Vejamos primeiro o problema que é colocado pela nossa Constituição de 1988. Conforme afirmei, parte importante da cultura jurídica tradicional é seu apego ao formalismo, de onde derivam a racionalidade formal típica dos juristas e os postulados de interpretação por ele utilizados, em especial o da unidade lógico-formal do ordenamento, que permitiria que a aplicação do direito se desses de maneira silogística.

Conforme afirmei anteriormente, no entanto, a Constituição de 1988 foi marcada por uma pulverização ideológica. “O individualismo “possessivo” subjacente a muitos dispositivos constitucionais”, por exemplo, “contraria abertamente a ênfase à dimensão “social” de muitos outros dispositivos igualmente constitucionais” (FARIA, 2013, p. 62) . Isso significa que a realidade do texto Constitucional é uma realidade sem unidade: o processo constitucional foi um processo marcado pela crise de hegemonia e o texto constitucional que daí resultou foi marcado pela extensão, detalhismo e pela ausência de um núcleo duro e unitário. Um compromisso entre posições e ideologias opostas. Daí as afirmações do professor Faria, citadas anteriormante, de que à Constituição de 1988 faltam tanto unidade ideológica quanto unidade lógico-formal. A falta de unidade ideológica é evidente; a falta de unidade formal é consequência: a pulverização de temas e de ideologias permite que se construam cadeias silogísticas igualmente válidas a partir de diversos pontos de partida constitucionais e que sustentem conclusões radicalmente opostas. De um lado “propriedade privada”, de outro, “funcão social” da propriedade privada; de um lado “livre iniciativa”, de outro, o caráter “normativo e regulador” da atividade estatal (FARIA, 2013, p. 62). Isso desafia o postulado da unidade formal, que só pode ser sustentado contra a realidade concreta do próprio texto, o que cria um descompasso óbvio entre a forma de raciocinar proposta pela cultura tradicional e a realidade concreta de um ordenamento jurídico fundado numa Constituição com as características da nossa atual carta.

Some-se a isso a presença marcante de (a) direitos sociais; (b) princípios; (c) normas programáticas. Esses três fatores trazem para o centro do raciocínio jurídico questões de política e de economia que não podem ser abstraídas. O magistrado não pode ignorar a realidade concreta ao aplicar e interpretar esses tipos de dispositivos constitucionais. O recurso a “abstrações generalizantes e indeterminadas” não está disponíveis em casos com esses.

E quanto aos movimentos sociais? Em que medida sua existência, suas ações e seus protestos colocam em dúvida a pertinência atual da cultura jurídica tradicional?

O primeiro e mais óbvio descompasso é entre o caráter eminentemente coletivo dos movimentos sociais e o individualismo arraigado na cultura jurídica tradicional. Esse descompasso se dá em diversos níveis: (1) as demandas dos movimentos sociais não são veiculadas de maneira individual; (2) as demandas dos movimentos sociais têm uma dimensão social; (3) os movimentos sociais são atores coletivos.

Os movimentos sociais são atores coletivos por excelência. Trata-se de um ator coletivo que está pondo em xeque a própria estrutura da sociedade. Segundo o professor Campilongo, os movimentos sociais protestam contra a “diferenciação funcional” da sociedade moderna (CAMPILONGO, 2012). A demanda, portanto, não toma a forma de uma “lide privada”, e o modelo clássico do conflito de interesses que norteia o processo civil e que domina a mente dos juristas no momento de entender os conflitos que são colocados à sua frente torna-se deslocado e defasado. Os movimentos sociais não podem, ademais, ser entendidos como um agregado de indivíduos protestando, cada um, por seus direitos individuais (ou mesmo individualmente por seus interesses comuns). Aqui a abordagem sistêmica aos movimentos sociais pode nos ajudar a entender o descompasso entre eles e o individualismo: o que define o movimento social como sistema são suas operações internas e o tipo de comunicação que ele produz (CAMPILONGO, 2012, pp. 61-63). Isso é relativamente independente das demandas individuais e dos estados de consciência das pessoas concretas que podem compor um determinado movimento.

Significa que um movimento social como o movimento feminista é diferente das mulheres (e homens) que o compõe concretamente e circunstancialmente. As demandas feministas podem, de alguma forma, se destacadas das demandas individuais das militantes feministas. O problema é a violência e a desigualdade de gênero, a dominação masculina, o machismo e a estrutura fundamentalmente opressora que sustenta a sociedade: esses são os temas do protesto, e são essas as questões que se espera que os tribunais dêem conta quando são acionados em nome, por exemplo, do princípio da igualdade esculpido no art. 5º da Constituição. No entanto, dificilmente é possível compreendê-las a partir de uma ótica puramente individualista. Como entender uma militante que não sofreu nenhum tipo de discriminação, mas que protesta contra ela? Assim, mesmo as demandas pontuais que são judicializadas têm uma dimensão social muito maior: não se trata de um caso de violência contra essa mulher em específico, mas contra “a mulher”. Juízes formados numa cultura tradicional dificilmente conseguiriam entender essa dimensão social inescapável das demandas dos movimentos sociais.

Outro fator de confronto entre movimentos sociais e cultura jurídica tradicional é o fato de os movimentos sociais levarem para o Judiciário (e para os seus protestos em geral) as circunstâncias concretas das pessoas e dos grupos. Que quer isso dizer? Os movimentos sociais desafiam a abstração, a comensurabilidade dos interesses e a atomização dos indivíduos ao afirmarem que a realidade social importa. Não é possível descolar os movimentos sociais (e as pessoas que deles fazem parte) de suas condições concretas de vida, porque elas são constitutivas de sua própria existência e dão forma e conteúdo às suas demandas. Não é possível entender as demandas de um movimento como os do moradores sem teto das grandes cidades abstraindo-se a realidade de uma sociedade marcada pela exclusão econômica, pelo desenvolvimento desordenado das grandes cidades, pelas políticas públicas de marginalização da periferia etc. Também não é possível entender o movimento feminista sem levar-se em conta a estrutura patriarcal e a herança profundamente machista da sociedade brasileira. Nesse sentido, o movimento feminista do Brasil não pode ser entendido “no ar”, ou tomando-se o modelo do movimento feminista americano, por exemplo. Proceder dessa forma é praticar um tipo de generalização indeterminada, que, no limite, desfigura os movimentos e descola-se da realidade.

Podemos tomar um exemplo concreto, para ilustrar a exposição do parágrafo anterior: o formalismo jurídico, muito influenciado pela ideologia liberal, adotou como um de seus postulados mais importantes a noção de que a ninguém é dado desculpar-se pelo cometimento de um ilícito alegando o descumprimento da lei. Esse postulado foi expressamente adotado pelo direito brasileiro, no art. 3º do Decreto Lei nº 4657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Mas é o caso de se perguntar: como sustentar esse postulado em circunstâncias (como a brasileira) marcadas por (a) uma proliferação exagerada de leis, portarias e decretos, editados pelos mais diferentes tipos de autoridade, com os mais diferentes interesses; e (b) uma população marcada pela exclusão social, baixos níveis de renda e, principalmente, altos índices de analfabetismo e semi-analfabetismo? Cria-se um claro hiato entre a realidade social e a estrutura formal do direito, entre as abstrações do mundo jurídico e a realidade do mundo concreto.

Esse ponto, é bom ressaltar, mostra o que vem sendo apontado por alguns como um erro crucial de filosofias e ideologias liberais: não levar em conta que as pessoas não são “seres autônomos” e atomizados “jogados” num contexto social que lhes é exterior. O contexto social constitui essas pessoas. Seus sentimentos, seu raciocínio, a forma como enxergam o mundo depende das circunstâncias sociais, do meio em que vivem: não de uma maneira behaviorista, como se o meio lhes desse inputs decisivos que moldassem suas condutas; mas de uma maneira “comunitária”, com a sociedade constituindo as pessoas, tornado-as aquilo que elas de fato são (TAYLOR, 1985). Os movimentos sociais explicitam, de forma extrema, a importância das circunstâncias sociais para a formação da vida dos indivíduos. Não é possível entender uma mulher numa sociedade machista ou um pobre numa sociedade desigual sob a categoria abstrata dos “sujeitos de direito”. O sonho formalista é que as estruturas abstratas do direito (leis, códigos etc.) pudessem dar soluções (neutras e seguras) para todos os problemas. Nesse sonho, se duas sociedades, com circunstâncias sociais distintas (uma profundamente desigual, outra moderadamente igualitária) tivessem (formalmente) as mesmas instituições jurídicas, dariam respostas iguais para problemas (aparentemente) iguais. Os movimentos sociais desafiam esse sonho. Tentam mostrar que ele não é real e – pior – aproxima-se mais de um pesadelo.

Mas há mais: os movimentos sociais não protestam – primariamente – esperando “indenizações”, “reparações monetárias”. Meio ambiente sustentável, igualdade de gênero, fim da discriminação: são demandas não se enquadram bem nos padrões utilitaristas. Uma indenização não atende às reivindicações, não põe fim ao conflito nem restaura as partes ao status quo ante. Os movimentos sociais não querem restaurar o status quo ante: eles protestam justamente contra esse status quo. Quando vão aos tribunais exigindo a efetivação de direitos, não acham que a sua não efetivação possa ser compensada com uma indenização a ser paga pelo Estado. Isso é uma mudança significativa nos tipos de pedido que são levados ao judiciário, e, nessa linha,

"se as demandas mudam de sentido, deixando de ser pedido de proteção da propriedade para ser pedido de acesso à propriedade, a cultura jurídica tradicional tem dificuldades crescentes para aplicar aos casos as soluções tradicionais, ou seja, a condenação a uma devolução daquilo que foi ilicitamente retirado do poder alheio" (LOPES, 2010).

Há ainda o fato de que os movimentos sociais, muitas vezes, utilizam o Judiciário de maneira estratégica, mobilizando suas estruturas em nome de seus objetivos e pautas políticas. Valem-se da suposição de que “tribunais não apenas solucionam pequenas disputas sobre o significado dos direitos, mas também previnem, incitam, estruturam, deslocam e transformam conflitos por toda a sociedade rotineiramente” (MCCANN, 2010, p. 183). Essa “mobilização política” do aparato Judiciário é impercepetível sobre as lentes tradicionais do formalismo e do positivismo, que tende a colocar o magistrado num mundo de fatos e indivíduos abstratos, sem levar em conta que, muitas vezes, está sento “usado” de maneira estratégica como parte de um embate eminentemente político. Essa posição estratégica ocupada pelo judiciário no embate político (e, por que não dizer, econômico e moral) faz parte das “circunstâncias concretas” de sua existência e da posição dos seus magistrados. A cultura jurídica tradicional, no entanto, faz de tudo para que os operadores jurídicos fechem os olhos para isso, e permaneçam “passivos” (FARIA, 1992) diante dos usos políticos que são feitos de suas estruturas. “O que se constata, a partir daí”, conclui o professor Faria, “é um crescente hiato entre uma matriz jurídico-institucional que encontra sua pedra de toque numa Justiça concebida como um poder funcionalmente capaz de decidir problemas (…) e as novas práticas sociais de natureza confrontacional” (FARIA, 2012).

Outro ponto interessante é que muitas das demandas dos movimentos sociais são por direitos que já existem, mas que, por falta de regulamentação, não são ainda devidamente reconhecidos. É um paradoxo: um direito, simultaneamente, reconhecido e não reconhecido. Antes do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001), por exemplo, o direito à cidade e à sua função social já era reconhecido pela Constituição e os movimentos sociais já o utilizavam como fundamento para a vocalização de suas demandas. Como tratar dessa questão (a garantia constitucional à cidade e a ausência de regulamentação, junto a movimentos sociais que protestam por um direito ao mesmo tempo reconhecido e não reconhecido pela ordem jurídica) utilizando o formalismo típico da cultura jurídica tradicional? A resposta: não é possível.

Nesse quadro, os direitos sociais consagrados na Constituição de 1988, e o próprio texto constitucional, tendem a tornar-se mais instrumentos ideológicos do que garantidores de uma justiça material. A respeito dessa caráter ideológico, afirma o professor Faria (2012, p. 98):

"Nas sociedades não tipicamente tradicionais e fracamente integradas, sujeitas a fortes discriminações sócio-econômicas e político-culturais, como a brasileira, muitas declarações programáticas em favor dos direitos humanos e sociais, nos textos constitucionais, acabam tendo apenas uma função tópica, retórica e ideológica. Seu objetivo, na verdade, não é depurar juridicamente as concepções de equidade e justiça, nem garantir formalmente a correção dos desequilíbrios seteoriais, das disparidades sociais e das diferenças regionais, mas apenas forjar condições simbólicas necessárias para uma assimilação acrítica da ordem jurídica".

O formalismo tende, então, a valer-se dos instrumentos criados pela Constituição, notadamente os direitos sociais, como simples técnicas de legitimação. Valem-se de estratégias sutis, em especial o recurso a “inexistência de regulamentação específica” para, simultaneamente, afirmar e negar direitos: afirmam sua validade formal enquanto negam sua eficácia material.

Ocorre que os movimentos sociais não esperam por respostas desse tipo, o que cria um hiato entre a racionalidade formal típica da cultura jurídica tradicional e as exigências dos movimentos de protesto diante da Constituição. O que os movimentos sociais reividicam é, justamente, que se deixe lado esse caráter ideológico das diretrizes constitucionais. Eles mobilizam as parcelas excluídas da população não por uma decisão que legitime ou justifique as decisões do Estado, mas que faça valer (num sentido forte) seus direitos. Nesse sentido, os movimentos sociais põem em xeque a racionalidade formalista e burocrática de parcelas dominantes do sistema jurídico. Também põem em xeque as operações próprias desse sistema, ao exigir, em nome da própria Constituição, que o Judiciário vá além do caráter meramente instrumental do seu mister. Ainda segundo o professor Faria, os movimentos sociais buscam “politizar os argumentos jurídicos, provocar decisões baseadas em critérios de racionalidade material e bloquear sentenças ditadas exclusivamente com base em critérios lógico-formais” (FARIA, 1992, P. 102). Nesse sentido, não seria incorreto dizer que os movimentos sociais protestam contra o próprio funcionamento do sistema jurídico. No entanto, utilizam o próprio sistema jurídico para fazer essa demanda: vão ao Judiciário para reclamar contra o Judiciário. Se entendermos esse paradoxo a partir das lentes do professor Faria, podemos compreender que os movimentos sociais utilizam a Constituição para reivindicar por uma “mudança” na racionalidade dominante no sistema jurídico, procurando, na medida do possível, subverter a lógica formal-burocrática dominante no Judiciário brasileiro. Mas fazem isso não em nome de um fator externo ao Direito, mas interno: em nome dos direitos e garantias que lhes foram assegurados pela Constituição, e em nome das finalidades e propósitos que essa mesma Constituição estabeleceu de forma vinculante para o Estado Brasileiro.

Esse ponto nos mostra como os movimentos sociais colocam desafios à forma tradicional de raciocinar dos juristas e de proceder do Judiciário. Sobre a questão, podemos concluir segundo o professor Faria (2010, p. 52):

"Desde que grupos tradicionalmente alijados do acesso à Justiça descobriram os caminhos dos tribunais, orientando-se por expectativas dificilmente amoldáveis às rotinas judiciais, utilizando de modo inventivo os recursos processuais e explorando todas as possibilidades hermenêuticas propiciadas por normas de “textura aberta”, como as normas-objetivo, as normas programáticas e as normas que se caracterizam por conceitos indeterminados, o Judiciário se viu obrigado a dar respostas para demandas para as quais não tem nem experiência acumulada nem jurisprudência firmada".

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Por tudo isso, percebemos um descompasso entre a cultura jurídica tradicional e a nova realidade social, marcada por uma Constituição detalhista, extensa, garantista e que enumera diversos direitos sociais, junto a movimentos sociais que protestam não em nome individual, mas coletivo, dirigindo suas demandas contra a própria sociedade e o funcionamento de seus sistemas, mobilizando o judiciário de forma estratégica, politizando os argumentos jurídicos e levando a realidade social para o centro do tribunais. Esse descompasso nos permite afirmar que os movimentos sociais apontam para uma crise do Judiciário, que pode bem ser chamada de “crise ideológica”. Também permite afirmar que os movimentos sociais demandam não só por prestações do Estado, pelo reconhecimento de direitos, mas também por uma mudança de racionalidade e mentalidade entre os membros do Poder Judiciário. Colocam em xeque, portanto, as estruturas e operações tradicionais do sistema jurídico, tudo em nome de princípios, valores e disposições consagradas na Constituição e de uma maior sintonia entre as abstrações jurídicas e a concretude da realidade social.

CONCLUSÃO

De tudo que expus, vê-se que há um descompasso inegável entre as categorias da cultura jurídica tradicional e as novas categorias (novos conflitos, novos atores e novas estratégias) colocadas pelos movimentos sociais e pela atual Constituição de 1988.

Poderíamos resumir a exposição afirmando que do final da década de 1980 até os dias atuais, no Brasil, houve uma evolução dos conflitos jurídico-políticos: (a) de conflitos inter-individuais para conflitos coletivos; (b) de conflitos unidimensionais para conflitos pluridimensionais; (c) de conflitos com temporalidade linear para conflitos sem essa temporalidade; (d) de conflitos baseados na unidade de conhecimento do direito para conflitos nos quais subjazem esquemas cognitivos, lógicos e racionalidades distintas, conforme a posição social das partes (FARIA, 1992, p. 68).

A permanência desse descompasso tende a minar os critérios de legitimidade do Direito e da própria profissão jurídica, na medida em que ainda se baseiam num modelo liberal-positivista que não mais se aplica à nova realidade concreta. Seguindo-se o descompasso, a tendência – creio eu – é a perda de efetividade e legitimidade das instituições jurídicas.

Mas queremos concluir esse trabalho não apontando soluções, mas indicando um paradoxo, ou, ao menos, um problema crítico para o direito e a formação jurídica: conforme afirmei, os movimentos sociais tentam, em parte, politizar o judiciário, e a nova realidade social aponta para novas responsabilidades políticas do próprio sistema jurídico (que desafiam o modelo liberal clássico). No entanto, devemos nos perguntar: o Judiciário deve ceder à politização? A saída para os novos atores e para os novos problemas, é admitir e aceitar que juízes façam, aberta e deliberadamente, política? Esse é um ponto crucial sobre o qual todos devem se debruçar.

Se por um lado o formalismo da cultura jurídica tradicional mostra-se defasado, se a ideologia da neutralidade e da segurança se mostra utópica e distante, e se o “mundo dos autos” é cada vez mais inundado pelo “mundo dos fatos”, por outro não é certo se a saída para isso seja a completa politização das instituições e agentes jurídicos. Conforme afirma o professor Campilongo, “não cabe ao sistema jurídico suprir as deficiências dos partidos, das eleições e do parlamento, pois isso é atribuição dos sistema político”. O direito tem limites e “pretender mais do que sua função autoriza é o primeiro passo para desvirtuar e enfraquecer o sistema jurídico” (CAMPILONGO, 2011, p. 86). “Se a função do sistema jurídico fosse a confirmação da decisão política ou de reexame do mérito da 'questão política'”, afirma em outro ponto o professor Campilongo, “os tribunais perderiam a razão de ser” (CAMPILONGO, 2011b, p. 177).

A questão é crítica, mas acreditamos que devemos resolvê-la, ou ao menos enfrentá-la seriamente: o fato de os movimentos sociais tentarem politizar o judiciário não significa que o sistema jurídico deva tornar-se uma instância do sistema político. O que é necessário é uma maior flexibilização e uma superação dos rigores do formalismo para que o sistema jurídico esteja mais “aberto” à sociedade ao seu redor de maneira a poder harmonizar-se com a realidade social e, assim, não ver corroída sua estrutura e legitimidade. De maneira tentativa, poderíamos afirmar que isso passa por (a) incentivo a uma nova cultura jurídica, mais crítica do que formal, que possa formar juristas mais atentos à posição concreta que ocupam na sociedade, às funções do Judiciário e suas responsabilidades sociais; (b) a criação de mecanismos de “abertura cognitiva” do sistema jurídico que o tornem mais sensível às novas demandas e aos novos atores sociais (um bom exemplo disso são as audiências públicas, que permitem a participação mais ou menos direta dos movimentos sociais na formação do convencimento dos magistrados); (c) o uso instrumental das ferramentas processuais, que deveriam, tanto quanto possível, ter margens de flexibilização e critérios mais maleáveis de aplicação, dando aos magistrados mais possibilidades de harmonizar normas e fatos (um bom exemplo seria o recurso processual de “inversão do ônus da prova” nos casos em que a situação social concreta de uma das partes contrasta com o modelo de igualdade formal das posições processuais). Isso permitiria uma maior sintonia entre as formas rígidas e abstratas do direito e a situação concreta das partes. É claro: isso apenas um esboço inicial de resposta. Há muito mais para ser proposto, revisto e debatido.

DeixAMOS em aberto como conciliar, concretamente, a mobilização do Judiciário, as novas demandas dos movimentos sociais, as novas responsabilidades sociais dos juízes em face da Constituição de 1988, e a preservação da diferenciação funcional do sistema jurídico. É controverso se a diferenciação deve sobrepor-se (e manter-se) mesmo em contextos marcados por grandes desigualdades sociais, marginalização e exclusão. Mas entendemos que é desejável que o Direito preserve sua autonomia funcional, sob pena de perdermos um instrumento de proteção de garantias individuais e de restrição do poder. O meio termo aqui, talvez, seja a melhor opção. Onde localizá-lo, no entanto, é o problema – problema que não podemos enfrentar nesse breve trabalho, mas que acreditamos deva ser enfrEntado por todos aqueles preocupados tanto com o direito quanto com a sociedade.

 

Referências
BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra, 1988.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
______. O Direito na Sociedade Complexa. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
______. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
FARIA, José Eduardo. “As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais”. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2010.
______. Direito e Economia na Democratização Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013.
______. Justiça e Conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
______. O Brasil Pós-Constituinte. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
______. “O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma avaliação da Justiça brasileira”. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2010.
______. “Prefácio”. In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2010.
LOPES, José Reinaldo de Lima. “Crise da Norma Jurídica e a Reforma do Judiciário”. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2010.
MCCANN, Michael C. "Poder judiciário e mobilização do direito : uma perspectiva dos 'usuários'". In: Revista da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região – dez. 2010
NOBRE, Marcos. “Indeterminação e Estabilidade: os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas da pesquisa em direito”. Novos Estudos, São Paulo, ed. 82, 2008.
TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical Papers 1. New York: Cambridge University Press, 1985.

Informações Sobre os Autores

Horácio Lopes Mousinho Neiva

Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí; Professor do Centro Universitário UNINOVAFAPI; Pesquisador do Grupo de Pesquisa do República vinculado à UFPI. Advogado.

Hillana Martina Lopes Mousinho Neiva Dourado

bacharela em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Advogada


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