Resumo: Aborda a prática de restrições supralegais do acesso aos Juizados Especiais Cíveis, que configura dificuldade inconstitucional ao acesso à Jurisdição. Demonstra que o instituto tem natureza constitucional e representa relevante passo rumo à realização da garantia fundamental do acesso à Jurisdição, o que corrobora a imensa impropriedade de se interpretar restritivamente a determinação legal de seu alcance. Apresenta contornos jurídicos do problema à luz da Constituição Federal e, especialmente, dos direitos e garantias fundamentais, ao tempo em que defende a possibilidade de processamento de todas as demandas não expressamente excluídas pela Lei 9.099/95 e reclama a revisitação do tema sob pontos de vista mais ampliados, com o fito de se perseguir a contínua concretização dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Concretização; Juizados Especiais; Perícia; Procedimentos Especiais.
Abstract: Addresses the practical constraints of access to supralegais Special Civil Courts, which configures unconstitutional difficulty for the acess to Jurisdiction. It shows that the institute has constitutional and represents significant step towards the realization of the fundamental guarantee of access to jurisdiction, which confirms the great impropriety to interpret narrowly the legal determination of their reach. Presents contours of the legal problem in light of the Federal Constitution, and especially the fundamental rights and guarantees, the time that defends the possibility of processing all claims not expressly excluded by Law 9099/95 and calls for revisitation the topic from points more expanded view, with the aim of pursuing the ongoing implementation of fundamental rights.
Keywords: Fundamental Rights; Implementation; Special Courts; Expertise; Special Procedure.
Sumário: 1. Introdução. 2. Natureza constitucional dos Juizados Especiais. 3. A Lei 9.099/95. 4. Interpretação dos Direitos Fundamentais. 5. Formas mais comuns de exclusão supralegal da competência dos Juizados Especiais Cíveis. 6. Impossibilidade de redução supralegal das causas sujeitas aos Juizados Especiais cíveis à luz do art. 5º, XXXV, da constituição federal. 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A garantia fundamental do acesso à Jurisdição possui exponencial importância, uma vez que serve de instrumento para afiançar o cumprimento dos direitos infraconstitucionais, constitucionais e fundamentais de qualquer natureza.
Relevante passo para a realização do que prevê o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal é a criação dos Juizados Especiais Cíveis, cujos maiores contornos são oriundos do mesmo texto constitucional e foram esmiuçados por norma infraconstitucional.
A Lei 9.099/95 representa grande avanço na concretização do Direito Fundamental ao acesso à Jurisdição, pois permite ao jurisdicionado a apresentação de sua demanda diretamente ao Poder Judiciário, em regra, independentemente de advogado e do recolhimento de custas processuais.
Contudo, não obstante a origem constitucional do microssistema (seja em sentido amplo, pela inafastabilidade da jurisdição, seja em sentido estrito, pela sua previsão no art. 98, I) e a definição legal das causas de menor complexidade, tal instrumento tem sido obstado pela estória de que procedimentos especiais e a produção de prova pericial seriam incompatíveis com a Lei dos Juizados.
Então, o presente visa a instigar a discussão acerca do assunto, atentando para o caráter eminentemente constitucional do direito de ação, o qual é diretamente relacionado ao tema em apreço, cuja atenção merecida não tem sido dispensada pelo meio jurídico.
2. NATUREZA CONSTITUCIONAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS
Os Juizados Especiais são ritos processuais com previsão constitucional e disposições procedimentais regradas na Lei 9.099/95.
A Constituição da República Federativa do Brasil possui forte tendência liberal e, ao mesmo tempo, intrincadas disposições de natureza social. Agrega num só corpo textual direitos e garantias inerentes à livre iniciativa e à proteção aos trabalhadores, por exemplo, o que demonstra sua preocupação com a amplitude e a universalização das liberdades nela dogmatizadas.
A própria colocação seqüencial de seu texto já possui simbologia que revela importante característica da norma, pois apresenta os direitos e garantias fundamentais antes mesmo de regular a organização do Estado.
Por sua acepção fortemente ligada às liberdades públicas, inclusive, o texto constitucional vigente ficou conhecido como Constituição Cidadã.
Nesse ínterim, somente no artigo quinto encontram-se setenta e oito incisos e quatro parágrafos dispondo sobre tais direitos, inclusive com a previsão expressa de reconhecimento de direitos fundamentais fora do texto constitucional[1].
A propósito, esses direitos, por expressa determinação da própria Lei Máxima – consoante parágrafo primeiro do artigo supra –, possuem aplicabilidade imediata, o que está intrinsecamente relacionado ao clássico reclame de Konrad Hesse, ao tratar da força normativa da Constituição.
Uma das garantias de direitos fundamentais mais relevantes é o acesso à Justiça, também conhecido como Inafastabilidade da Jurisdição ou do Controle Jurisdicional, com previsão expressa no inciso XXXV do art. 5º da Norma Máxima, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Tal garantia é fundamental a qualquer país que se pretenda classificar como Estado de Direito, pois inócua é qualquer norma se não houver os meios necessários à asseguração de sua obediência, afirmação corroborada pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com o julgado seguinte:
“…O legislador constituinte, ao consagrar o postulado assegurador do ingresso em juízo, fez uma clara opção de natureza política, pois teve a percepção – fundamental sob todos os aspectos – de que onde inexiste a possibilidade do amparo judicial, há, sempre, a realidade opressiva e intolerável do arbítrio do Estado ou, até mesmo, dos excessos de particulares, quando transgridem, injustamente, os direitos de qualquer pessoa. É por essa razão que a norma constitucional garantidora do direito ao processo tem sido definida por eminentes autores como o parágrafo régio do Estado Democrático de Direito, pois, sem o reconhecimento dessa essencial prerrogativa de caráter político-jurídico, restarão descaracterizados os aspectos que tipificam as organizações estatais fundadas no princípio da liberdade.” (RE 422.642. Rel. Min. Celso de Mello. Destacado)
O postulado do livre acesso à Justiça, portanto, é de indiscutível importância, a ponto de a Constituição Federal ter proibido ao legislativo[2] – e até mesmo ao Poder Reformador[3] – qualquer medida que lhe restrinja.
Nesse passo, além da vedação à atuação legislativa de modo limitativo ao acesso à Justiça em sentido amplo, o Constituinte incrementou tal garantia com o estabelecimento de que se deveriam criar:
“Juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”. (CRFB/88, art. 98, I)
Tal artigo, contudo, é norma constitucional de eficácia limitada, segundo a clássica classificação doutrinária, pois a Constituição Federal tratou de instituto cuja realização somente seria possível a partir da atuação legislativa, à qual foi delegada a tarefa de criar os Juizados Especiais Cíveis para o julgamento das causas de menor complexidade, papel esse desenvolvido pelo Poder Legislativo com a edição da lei 9.099/95.
3. A LEI 9.099/95
A Lei 9.099/95, de 26 de setembro de 1995, revogou a lei dos antigos Juizados de Pequenas Causas e determinou a criação dos Juizados Especiais Cíveis, no prazo de seis meses.
Em seu artigo terceiro, a aludida lei repete a expressão constitucional “causas cíveis de menor complexidade”, mas não se atém a isso, pois demarca tal conceito quando explica que as causas de menor complexidade são “assim consideradas”, seguindo-se um rol de situações que devem ser submetidas à jurisdição ali tratada.
Mais à frente, no parágrafo segundo, a Lei é ainda mais clara quanto ao seu alcance, pois estabelece taxativamente que:
“Ficam excluídas da competência do Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial.”
O artigo oitavo[4] estabeleceu restrições subjetivas à utilização do procedimento[5]:
“Art. 8º Não poderão ser partes, no processo instituído por esta Lei, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil.
§ 1º Somente serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial:
I – as pessoas físicas capazes, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas;
II – as microempresas, assim definidas pela Lei no 9.841, de 5 de outubro de 1999;
III – as pessoas jurídicas qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, nos termos da Lei no 9.790, de 23 de março de 1999;
IV – as sociedades de crédito ao microempreendedor, nos termos do art. 1o da Lei no 10.194, de 14 de fevereiro de 2001.”
A Lei 9.099/95, portanto, cumpriu seu dever constitucional de prever as hipóteses de aplicação do rito processual dos Juizados, ao tempo em que fulminou qualquer dúvida legítima sobre a taxatividade de suas disposições, pois enumerou de forma clara e precisa os casos de sua competência e, inclusive, aqueles que não lhe estão sujeitos.
Afora isso, a Lei 9.099/95 possui outras relevantíssimas contribuições a preceitos constitucionais, a exemplo da gratuidade, como regra, de seus atos, da facultatividade da representação por advogado, salvo nos casos expressos na lei, (que se coadunam com a universalização do acesso à Justiça) e da celeridade – posteriormente corroborada pela Emenda Constitucional 45, que instituiu a razoável duração do processo entre os direitos fundamentais.
De tal sorte, a criação dos Juizados Especiais Cíveis não é somente mais um procedimento a ser considerado, mas importa relevante contribuição à realização da garantia fundamental do acesso à jurisdição, pois permite a postulação ao Poder Judiciário de forma direta, simples, módica e célere.
4. INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A interpretação do direito constitucional não é tão simples, pois não se reduz a meras regras práticas comumente estudadas na hermenêutica jurídica geral. Ao contrário, possui características particulares que deprecam um trabalho exegético diferenciado, dada sua natureza superior ao restante do ordenamento jurídico, grande abrangência, linguagem, principiologia e, principalmente, contínua necessidade de atualização prática de suas concepções, as quais – pelo decurso do tempo e das condições político-sociais – reclamam incessante modernização interpretativa, com o fito de manter sua práxis de acordo com a vontade constitucional.
Além de não poder ser interpretada por um simplório processo mecanicamente regrado, a busca pela compreensão da Constituição também exige a captação e o respeito a dois postulados máximos, quais sejam: a unidade e a máxima efetividade da Constituição.
O Princípio da Unidade da Constituição é aquele segundo o qual toda interpretação empregada deve considerar o texto constitucional como um todo, sem limitar-se a pinçar partes isoladas, desconsiderando outras e permitindo contradições entre diferentes componentes da norma, mas, ao contrário, harmonizando seu conteúdo, de modo a preservá-lo como o todo que, de fato, é.
A Máxima Eficácia Constitucional, por seu turno, é a noção de que, quando houver mais de uma maneira de se executar qualquer interpretação, deve ser privilegiada aquela que empregue maior preservação da vontade da Constituição Federal, de modo a otimizar sua efetividade.
Nesse ponto, o Princípio da Máxima Eficácia Constitucional encontra intrínseca relação com outro conhecido postulado do Direito Constitucional, qual seja, a afirmação de Konrad Hesse de que a Constituição possui força normativa, não somente condicionada pela realidade, mas também condicionante dela, uma vez que a Constituição estabelece um “dever ser” para a coletividade, que é por ela regrada e, ao mesmo tempo, sua criadora.
Quando se trata de interpretação de Direitos Fundamentais, entretanto, a atividade hermenêutica não se legitima se não for realizada de modo que lhes obedeça de modo mais concreto possível, pois os Direitos Fundamentais gozam de reconhecida primazia, a ponto de a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamar que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (art. 16).
Deste modo, interpretar Direitos Fundamentais reclama uma atividade concretizadora, reconhecendo-se sempre o maior alcance às liberdades públicas e às garantias a elas inerentes.
“Mais de vinte anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, são incontestes os avanços conseguidos. Porém, mais importantes do que todas as conquistas, hoje, é a efetivação dos direitos já assegurados pela norma legal. Não é mais necessário justificar, mas sim concretizar.” (SELONK, 2011)
Mais que isso, os Direitos Fundamentais, além de ser interpretados sempre extensivamente, devem servir de balizas para toda e qualquer interpretação do ordenamento jurídico, por se revestirem de sua própria finalidade. É o que se conhece doutrinariamente como Efeito Irradiante dos Direitos Fundamentais, o que pode ser compreendido na leitura de Ingo Sarlet, segundo quem:
“Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada – ainda que com restrições – como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição”. (SARLET, 2006)
Portanto, o caminho para o reconhecimento da prevalência da interpretação favorável à maior abrangência dos direitos fundamentais não pode ser desprezado, pois qualquer interpretação que represente restrição (direta ou indireta) aos direitos fundamentais somente será legítima quando se der por meio da necessidade de harmonização das liberdades públicas, utilizando-se a regra da concordância prática.
Nada obstante, somente será necessária (e possível) a concordância prática quando houver no caso concreto o conflito aparente entre normas de igual estatura constitucional, o que significa, no caso, se fosse verificado choque entre direitos fundamentais, pois “uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular” (CANOTILHO, 1999).
Caso contrário, estar-se-ia tentando dar aos direitos fundamentais contornos restritivos delineados pela lei ou mesmo pela jurisprudência, o que significa incorrer no primário erro de se interpretar a norma maior sob os cânones da menor; seja pela posição que a Constituição ocupa em sua relação de verticalidade com as leis, seja pela função atualizadora e concretizadora (jamais restritiva de liberdades) a que deve prestar-se o fenômeno da mutação constitucional.
5. FORMAS MAIS COMUNS DE EXCLUSÃO SUPRALEGAL DA COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CIVEIS
Uma das razões por que comumente se subtraem dos Juizados causas que lhe competem é que, de acordo com o Enunciado cível número 8 do FONAJE, “as ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não são admissíveis nos Juizados Especiais”.
A suposta fundamentação de quem adere a tal tese reside na questão procedimental, pois se defende a incompatibilidade entre os procedimentos especiais e a Lei 9.099/95, o que não se apresenta adequado, segundo os fundamentos que serão apresentados oportunamente.
A forma mais corriqueira de extinção de processos sob o procedimento sumaríssimo sem autorização legal é, indubitavelmente, a declaração judicial de “complexidade da causa” em função da necessidade (ou do mero pedido) de perícia técnica.
A propósito, o Fórum Nacional dos Juizados Especiais editou o Enunciado cível número 54, segundo o qual a menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material.
Tal Enunciado, contudo, não parece consentâneo com o sistema jurídico a que se subordina, pois não corresponde à regra legal e, tampouco, à constitucional, conforme será demonstrado adiante, e, inclusive, encontra-se em evidente contradição com o Enunciado cível número 30 do mesmo Fórum, o qual reconhece a cristalina taxatividade do rol apresentado no art. 3º da Lei 9.099/95.
6. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO SUPRALEGAL DAS CAUSAS SUJEITAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS À LUZ DO ART. 5º, XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
As considerações até então incluídas na presente produção, apesar de encontrarem-se bastante distantes do esgotamento do tema, pois pressupõem seu prévio conhecimento pelo leitor, servem de referencial básico suficiente para o início da reflexão que o trabalho pretende instigar.
Embora a Lei 9.099/95 possua rito próprio, percebe-se que o legislador não quis excluir de sua abrangência os demais procedimentos, os quais podem, em sua imensa maioria, conformar-se aos postulados dos Juizados Especiais Cíveis, até porque a lei permitiu ao Juiz dirigir “o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica” (art. 5º).
Não bastasse o artigo supramencionado, é também sobejamente reconhecido o Princípio da Instrumentalidade do Processo, segundo o qual o processo é mero meio para se atingir o “bem da vida”, podendo ocorrer de modo diverso, desde que não haja prejuízo às partes, o que permite com tranquilidade ao Magistrado a adaptação de qualquer procedimento ao rito dos Juizados Especiais Cíveis, utilizando os critérios “da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade”, ínsitos no art. 2º.
Para reforçar, não restam dúvidas de que a Lei 9.099/95 não permite a figuração de incapazes, bem como a discussão sobre direitos indisponíveis, donde se conclui que a previsão da intervenção do Ministério Público contida no artigo 11 somente pode significar a intenção legal de verem-se processadas demandas antes sujeitas a procedimentos especiais, dada a máxima de que na lei não presumem disposições inúteis[6]:
“Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas previsões, nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma”. (MAXIMILIANO, 1996)
Esse mesmo último fundamento – no que concerne à impropriedade de tornarem-se inúteis comando legais – serve para demonstrar a inexatidão do reconhecimento da suposta “complexidade” das causas em que se repute necessária a realização de perícia e do afastamento dos procedimentos especiais da competência dos Juizados.
É que a Lei 9.099/95, legitimada pela Constituição Federal para definir as causas de menor complexidade, o fez de forma completa, dada a redação do seu artigo terceiro, que atesta que “o Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas” e transcreve o rol.
Não é difícil inteligir, tanto por questão semântica quanto teleológica, que, se o legislador pretendesse apenas exemplificar situações ou deixá-las abertas ao bel-prazer do intérprete, não teria determinado como se devem considerar as causas de menor complexidade.
Ou seja, quando o legislador pretende apenas estabelecer vetor interpretativo para o que decretou, ele o faz de forma clara, consignando a possibilidade de circunstâncias outras, não inseridas no rol[7], diferentemente da expressão “assim consideradas”, que não permite margem criativa para o intérprete.
Ademais, ainda que houvesse liberdade para divagações do intérprete sobre alterações do rol do art. 3º (incisos e parágrafo 2º), ou mesmo das vedações do art. 8º, tal trabalho exegético deveria ocorrer para ampliar o alcance dos Juizados Especiais, otimizando o art. 98, I, da Constituição Federal, e o art. 5º, XXXV, da mesma, dada a consideração de que:
“com base no conteúdo das normas de direitos fundamentais é possível se extrair conseqüências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também para uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais, de modo a se evitarem os riscos de uma redução do significado do conteúdo material deles. Neste contexto, há que considerar a íntima vinculação entre direitos fundamentais, organização e procedimento, no sentido de que os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento (no mínimo, sofrem uma influência da parte destes), mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e as estruturas organizacionais”. (SARLET, 2006)
De mais a mais, como já assentado no presente e é possível extrair do aresto supra, a restrição à facilidade de acesso à Justiça por meio Juizados Especiais não ofende somente aos arts. 98, I, e 5º, XXXV, da Constituição Federal, mas a toda ela e à própria lógica existencial de um ordenamento jurídico (e consequentemente d’um Estado de Direito), pois “o respeito à lei e a possibilidade de acesso à jurisdição do Estado (até mesmo para contestar a validade jurídica da própria lei) constituem valores essenciais e necessários à preservação da ordem democrática” (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno. ADI 2213).
Acrescentem-se a isso questões de ordem prática.
A primeira delas é que os Juízes dos Juizados Especiais são tão Magistrados quanto os demais[8] e, portanto, possuem a mesma capacidade intelectual, preparação acadêmica e Jurisdição para a condução de procedimentos especiais e para a solução das malsinadas causas ditas “complexas” por construção pretensamente interpretativa.
Outro ponto a se registrar é que a própria lei admite a realização de perícias no âmbito dos Juizados, estabelecendo, inclusive, um procedimento simples, célere e oral para tais atos, consoante art. 35 da Lei 9.099/95.
Ou seja, a lei não proíbe a realização de perícias, mas determina que elas obedeçam a procedimento mais simplificado, sem o rigor previsto, como regra, no Código de Processo Civil. Ademais, ainda que a perícia, por si só, fosse sinônimo de complexidade insuperável pelo Magistrado dos Juizados Especiais, não se deveria esquecer, jamais, que ela não é realizada pelo Juiz, o qual se valerá de experts de sua confiança e de pareceres técnicos eventualmente apresentados pelas partes.
Assim, a produção de prova pericial representa tão-somente a necessidade de o Magistrado ouvir o técnico e ler os pareceres (se apresentados pelas partes) – pois sequer há exigência de laudo formal –, o que evidentemente não significa qualquer procedimento complexo, mas, ao contrário, demonstra o atendimento pelo legislador da necessidade de celeridade processual, que depois viria a ser alçada a direito fundamental pela Emenda Constitucional 45[9].
Outrossim, esse mesmo reclame é atendido por outra faceta, pois os Juizados contribuem também com a razoável duração do processo fora de sua competência, uma vez que, quanto mais demandas forem resolvidas nos Juizados Especiais, menos numéricos serão os processos distribuídos às instâncias ordinárias, otimizando seu trabalho e contribuindo com a redução da morosidade dos já muitos julgamentos.
Em que pese a cristalina plausibilidade de todos os argumentos, com natureza eminentemente constitucional, o Supremo Tribunal Federal houve por bem enfrentar a questão sob a ótima meramente semântica do art. 98 da constituição, ocasião em que afastou toda a sua jurisprudência consolidada – que sempre reconheceu ser matéria infraconstitucional e afeta a questões fáticas a definição da maior ou menor complexidade[10] – deu provimento a Recurso Extraordinário[11] para desconstituir Acórdão que condenou uma grande empresa tabagista à indenização de cliente.
É importante evitar conclusões afoitas acerca disso, pois o próprio Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência firme quanto ao não conhecimento de Recursos idênticos, o que, saiba-se, foi ressalvado pelo Ministro Joaquim Barbosa na discussão do julgado. Também, não se pode dar tanta ênfase ao decisum isolado, pois se trata de processo julgado ante os limites subjetivos da lide, sem qualquer efeito vinculante e sem a necessária ampliação do debate sob outros aspectos, conforme seria necessário para o estabelecimento de uma interpretação conforme a Constituição.
Por hora, resta consignar ter sido essa uma decisão sui generis, a qual foi de encontro a toda a jurisprudência do próprio Supremo, Tribunal esse que, a propósito, depois do julgado citado decidiu outros dois processos em conformidade com a orientação jurisprudencial tradicional, segundo a qual a análise da complexidade da prova envolve a análise do direito infraconstitucional, o que não cabe ao Supremo Tribunal Federal[12].
Finalmente, o maior indicativo da particularidade do Recurso Extraordinário 537.427 é que, não obstante o tenha provido contra toda a jurisprudência do Tribunal (que voltaria a ser mantida nos casos posteriores), chegou-se ao estranho entendimento de que a questão não possui repercussão geral, pois trata de questão infraconstitucional (ARE 640.671), em data não distante do outro julgado.
A partir da premissa de que o tema agora carece de repercussão geral, conclui-se que a busca da definição do tema, nesse momento, deságua no Superior Tribunal de Justiça, que sinaliza com recente e emblemático acórdão, relatado pela boa técnica da Ministra Nancy Andrighi:
“PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. COMPLEXIDADE DA CAUSA. NECESSIDADE DE PERÍCIA. CONDENAÇÃO SUPERIOR A 40 SALÁRIOS MÍNIMOS. CONTROLE DE COMPETÊNCIA. TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DOS ESTADOS. POSSIBILIDADE. MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. CABIMENTO. 1. Na Lei 9.099/95 não há dispositivo que permita inferir que a complexidade da causa – e, por conseguinte, a competência do Juizado Especial Cível – esteja relacionada à necessidade ou não de realização de perícia. (…) O art. 3º da Lei 9.099/95 adota dois critérios distintos – quantitativo (valor econômico da pretensão) e qualitativo (matéria envolvida) – para definir o que são “causas cíveis de menor complexidade”. Exige-se a presença de apenas um desses requisitos e não a sua cumulação, salvo na hipótese do art. 3º, IV, da Lei 9.099/95. Assim, em regra, o limite de 40 salários mínimos não se aplica quando a competência dos Juizados Especiais Cíveis é fixada com base na matéria. 4. Admite-se a impetração de mandado de segurança frente aos Tribunais de Justiça dos Estados para o exercício do controle da competência dos Juizados Especiais, ainda que a decisão a ser anulada já tenha transitado em julgado. 5. Recurso ordinário não provido”. (RMS 30170/SC)
No mesmo Acórdão, o Superior Tribunal de Justiça asseverou que “a autonomia dos Juizados Especiais não prevalece em relação às decisões acerca de sua própria competência para conhecer das causas que lhe são submetidas”[13], o que afasta a possibilidade da supressão da competência via Enunciados ou construção jurisprudencial no âmbito dos Juizados Especiais, que são uma criação legal destinada à facilitação do concreto acesso à justiça.
Inclusive, é importante reafirmar a ideia ora trabalhada, que é a de que:
“não se poderá interpretar o direito processual de modo excessivamente rigoroso, a ponto de inviabilizar, por motivos menores, a intervenção efetiva do Judiciário na solução de um litígio. As regras processuais devem ser entendidas como orientadas para proporcionar uma solução segura e justa dos conflitos, não podendo ser compreendidas de modo caprichoso, com o fito de dificultar desnecessariamente a prestação jurisdicional”. (MENDES, 2009. P. 293. Destacado.)
A despeito da postura do Supremo Tribunal Federal e em conformidade com o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, reitera-se o desiderato da presente produção, qual seja, firmar que se espera do intérprete de direitos fundamentais a interpretação que reconheça maior eficácia a eles, pois “o Estado não pode se omitir em dar a maior eficácia possível a uma garantia tão importante ao Estado de Direito como a do acesso efetivo à prestação jurisdicional” (Supremo Tribunal Federal, RE 207732/MS).
Sem embargo de todo o exposto, também não se afigura crível desprezar que não há sequer como relativizar a incidência direta (e não reflexa, como quis fazer crer o Supremo Tribunal Federal quando lhe pareceu correto, mudando de ideia e, posteriormente, recuando à posição inicial) do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, pois, na questão debatida, este não se encontra em conflito com qualquer outra disposição de igual estatura, uma vez que o conceito inicialmente indeterminado constante no inciso I do art. 98 da Constituição foi regulado pela lei infraconstitucional e esta, ainda que se encontrasse incompatível com o postulado do acesso à jurisdição (e não está), deveria ceder a ele ou ser interpretada em sua conformidade, dada a existência de subordinação no plano normativo vertical.
7. CONCLUSÃO
Segundo o que fora aqui explorado, entende-se que o direito ao acesso à Jurisdição – inegavelmente incrementado pelos Juizados Especiais – não deve ser restringido pelas razões estudadas, principalmente porque não se encontra em contradição com qualquer outro direito fundamental, única hipótese em que a redução de sua incidência seria justificável.
Qualquer dificuldade de ordem prática porventura alegada pode ser superada, se considerada a grande contribuição prestada pelos Juizados Especiais à economia processual e à celeridade (seja pelo seu rito, seja pela redução de processos nos Juízos ordinários), e deve ceder lugar aos direitos fundamentais, em vez de se fazer o contrário, conforme hodiernamente acontece no cenário em comento.
De mais a mais, em que pese a existência das vias ordinárias para a solução das demandas excluídas da competência dos Juizados, é imperioso reconhecer que o procedimento comum é mais dispendioso e moroso para o jurisdicionado, o que, embora não represente a fulminação do inciso XXXV do art. 5º da Constituição, já é um meio de redução de seu alcance, prática essa repudiada pela mesma Lei Máxima, que veda qualquer medida “tendente a abolir” direitos e garantias fundamentais, o que é vedado ao Legislador e, obviamente, ao intérprete, dado o efeito irradiante dos direitos dessa natureza.
Todavia, conquanto o assunto tenha contornos tão relevantes, sua discussão não assumiu circunferência correspondente, pois a dificuldade de acesso ao Poder Judiciário afeta com ascendente crueldade, tradicionalmente, os indivíduos de menor poder aquisitivo, sem grande influência social e, portanto, com muito pouca capacidade de movimentar provocar debates sócio-jurídicos com resultados efetivos em seu socorro.
Justamente por isso, não se espera o fácil reconhecimento da posição ora sustentada, mas se roga veementemente pelo aperfeiçoamento do debate à luz dos postulados fundamentais da norma constitucional, de modo a moldar a atuação jurisdicional à vontade daquela em vez de tentar distorcê-la para validar os interesses do intérprete.
bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes, pós-graduando em Direito Público pela mesma Instituição, servidor do Poder Judiciário do Estado de Sergipe.
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