Introdução
Não se duvida que os contratos apresentam-se como fontes de obrigações jurídicas em sentido estrito. Contudo, na atualidade, podemos dizer que o fundamento da obrigatoriedade dos contratos encontra-se apenas na vontade autônoma dos contratantes?
A doutrina jurídica contemporânea, bem como outras ciências, como a psicanálise, parecem sugerir que a tão propalada vontade, fundamento elementar da obrigatoriedade dos contratos, já não pode mais ser compreendida como se autônoma ela fosse. Ao revés, o que se tem criado e reconhecido, hoje, é que a vontade sofre a imposição de uma série de limitações.
Restrições jurídicas apresentam-se várias, as quais incitam a revisão das funções e dos objetivos contratuais. Ao lado delas, também se apresentam as denominadas conformações psíquicas, as quais – quiçá antes mesmo das restrições jurídicas, por terem dimensão interna – definiriam a própria criação do desejo humano.
Destarte, a proposta do presente trabalho é exatamente suscitar, a partir do questionamento inicialmente posto, um resgate da contratualidade, por meio dos novos elementos indicados pelas ciências jurídica e psíquica, na contemporaneidade.
Um breve escorço histórico do contrato
A solução da presente questão não pode prescindir de uma breve análise do processo evolutivo do conceito de contrato. Acredita-se que conhecer um pouco a história do referido instituto jurídico, ainda que em grandes linhas, possibilita uma melhor compreensão de sua situação atual. Afinal, os alicerces do presente sempre são projetados e construídos no passado.
Nosso ponto de partida será o direito romano. As razões são óbvias. Além da dificuldade de se retrair a pesquisa a épocas mais remotas, o direito romano é a mais importante fonte histórica dos sistemas jurídicos ocidentais, e, ainda, a maioria dos institutos e princípios do direito civil nos foi legada pelo gênio jurídico dos romanos.
Contrato romano. Os juristas romanos não conceberam o contrato como categoria geral e abstrata.[1] Limitaram-se a reconhecer alguns tipos de contratos, com regimes legais autônomos, que se constituíam pela observância estrita de uma série de formalidades, sendo aptos somente para criar obrigações, não servindo para modificá-las ou extingui-las.[2]
A prática contratual era cercada de simbolismo. Em regra, o simples acordo de vontade entre duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto não era suficiente para constituição do contrato. Somente após a execução de solenidades específicas criava-se a obligatio entre os contratantes e a atribuía-se actio ao credor, que o permitia exigir, em juízo, a realização da prestação pelo devedor recalcitrante.[3]
Assim, o contrato romano retratava a situação do indivíduo que contraía uma obrigação, ora por meio da proclamação de palavras sacramentais ou realização de gestos rituais, ora por meio da entrega real ou simbólica de coisas, ora por meio da inscrição da convenção em registro privado.[4] Precisamente na forma, mais do que no acordo de vontades, encontrava-se a gênese dos efeitos jurídicos do contrato.[5] A propósito, adverte Ricardo Luis Lorenzetti:
Durante mucho tiempo, el solo consentimiento no fue considerado apto para causar una obligación, porque era un medio inseguro que debía ser complementado por modos exteriores mediante los cuales se revelara: actos materiales como pesar metales que se entregaban, el uso de palabras solemnes, a inscripción en registros. Las hipótesis en que se consideraba que había obligación requerían que hubiera el cumplimiento de una forma determinada.[6]
O simples acordo de vontade celebrado sem a observância dos rituais era considerado mero pacto, criando apenas uma obligatio naturalis entre os pactuantes. O devedor não podia ser coagido ao cumprimento da prestação convencionada, mas se a cumprisse espontaneamente, o credor poderia reter o pagamento.[7]
Oportuno ressaltar que o formalismo sempre representou algo muito importante para o povo romano, não apenas no direito, como na religião, na política, nas festas.[8] Enzo Roppo assinala que “as prescrições de forma tinham conotações simbólicas, de tipo mágico e religioso, e reflectiam um estado de evolução jurídica, em que as normas da lei não se distinguiam nitidamente dos preceitos divinos e das praxes rituais”. E continua, o autor: “constituíam praticamente o meio mais elementar para distinguir os vínculos jurídicos, daqueles a que não devia reconhecer-se valor vinculante no plano geral”.[9]
Contudo, não se pode deixar de registrar que a sacramentalidade da prática contratual romana sofreu atenuações ao longo dos tempos, especialmente pela atribuição da actio a quatro pactos de utilização freqüente – venda, locação, mandato, sociedade –, surgindo a categoria dos contratos que se celebravam solo consensu, isto é, pelo acordo de vontades. Somente existiam esses quatro contratos consensuais. Em todos os outros, as partes tinham que observar as formalidades previstas. Nas palavras de Eugène Petit:
[…] la regla antigua, que domina aún en la época clásica, y que subsiste aún en tiempos de Justiniano, es que el acuerdo de las voluntades, el simple pacto, no basta para crear una obligación civil. El derecho civil no reconoce este efecto más que a convenciones acompañadas de ciertas formalidades, cuya ventaja es dar más fuerza y más certidumbre al consentimiento de las partes, y disminuir los pleitos encerrando en límites precisos la manifestación de voluntad. Consistían, bien en palabras solemnes que debían emplear las partes para formular su acuerdo, bien en menciones escritas; bien, por último, en la remisión de una cosa, hecha por una de las partes a la otra. Estas formalidades llevadas a cabo, venían a ser la causa por la que el derecho civil sancionaba una o varias obligaciones (Ulpiano, L. 7, § 4, D., de pactis, II, 14). Sin embargo, se derogó esta regla a favor de ciertas convenciones de uso frecuente y de importancia práctica considerable. Fueron aceptadas por el derecho civil, tales como el derecho de gentes las admitía, es decir, válidas por el solo consentimiento de las partes, sin ninguna solemnidad. Cada una de las convenciones así sancionadas por el derecho civil formaba un contrato y estaba designado por un nombre especial. Los contratos en derecho romano son, pues: unas convenciones que están destinadas a producir obligaciones y que han sido sancionadas y nombradas por el derecho civil. Desde fines de la República, se ha determinado el número de los contratos, y se distinguen cuatro clases de ellos, según las formalidades que deben acompañar a la convención. – 1. Los contratos verbis se forman con la ayuda de palabras solemnes. No citaremos aquí más que el principal: la estipulación. – 2. El contrato litteris exige menciones escritas. – 3. Los contratos re no son perfectos sino por la entrega de una cosa al que viene a hecerse deudor. Son el mutuum o préstamo de consumo, el comodato o préstamo de uso, el depósito y la prenda. – 4. Por último, los contratos formados solo consensu, por el solo acuerdo de las partes, son: la venta, el arrendamiento, la sociedad y el mandato. – Toda convención que no figura en esta enumeración no es un contrato; es un simple pacto que no produce en principio obligación civil.[10]
Pelo exposto, percebe-se que a formação da obrigação contratual, em regra, não exigia apenas o acordo de vontade entre os contratantes sobre um determinado objeto, era imprescindível a observância da forma consagrada. Em suma, o fundamento da obrigatoriedade do contrato, neste contexto, era o próprio sacramento constitutivo.
Contrato medieval. A exigência do cumprimento das solenidades advindas do direito romano alcançou o direito intermediário, mas a noção de contrato sofreu significativas transformações em virtude do incremento do mercantilismo e da emergência da doutrina canonista.
Tornou-se corrente a prática dos escribas de fazer constar no instrumento escrito das convenções, a pedido dos contratantes, que todas as formalidades tinham sido cumpridas, ainda quando não o tivessem sido, exigência da ampliação progressiva da atuação dos mercadores. Era a abolição indireta da sacramentalidade, pois a simples menção da observância da forma tinha maior importância que seu cumprimento.[11]
Além disso, os canonistas defendiam a validade e a força obrigatória dos acordos de vontade, reconhecendo o dever jurídico e moral de fidelidade à palavra empenhada. Era considerado pecado, equiparado à mentira, assim atraindo penas eternas, o descumprimento de promessa assumida de maneira livre e consciente.[12] A respeito, assinala Orlando Gomes:
A contribuição dos canonistas consistiu basicamente na relevância que atribuíram, de um lado, ao consenso, e, de outro, à fé jurada. Em valorizando o consentimento, preconizaram que a vontade é a fonte da obrigação, abrindo caminho para a formulação dos princípios da autonomia da vontade e do consensualismo. A estimação do consenso leva à idéia de que a obrigação deve nascer fundamentalmente de um ato de vontade e que, para criá-lo, é suficiente a sua declaração. O respeito à palavra dada e o dever de veracidade justificam, de outra parte, a necessidade de cumprir as obrigações pactuadas, fosse qual fosse a forma do pacto, tornando necessária a adoção de regras jurídicas que assegurassem a força obrigatória dos contratos, mesmos os nascidos do simples consentimento dos contratantes.[13]
Em síntese, o contrato começa a se estabelecer como instrumento abstrato, pois se confere força obrigatória às manifestações de vontade, sem os formalismos exagerados outrora exigidos.
Contrato moderno. O triunfo do consensualismo é presenciado pela modernidade, uma forma de organização social, que se consolida no ambiente ocidental europeu entre os séculos XVII e XIX, a partir dos reflexos do movimento iluminista, tendo como traço característico a exaltação da razão.[14]
A concepção de razão era essencialmente instrumental, designando uma força intelectual comum a todo ser humano, que poderia levá-lo à compreensão dos fenômenos naturais e sociais de maneira clara e precisa, desde que observado um rigoroso método, projetado a partir de procedimentos de tipo matemático.[15] Pretendia-se superar a convicção medieval de que os únicos meios seguros para informar o agir e o conhecimento humano encontravam-se na teologia e na tradição.
A razão foi considerada uma verdadeira ferramenta de ruptura, na medida em que acabou por determinar a secularização das experiências, dos conhecimentos e das ações humanas, possibilitando a emergência do sujeito como agente ativo do envolvimento social, apoiando-se exclusivamente na sua consciência. Essa época se caracterizou pelo individualismo como posição ideológica, que fez depender do consenso entre as vontades individuais o estabelecimento da ordem política, da ordem econômica, da ordem social e, em conseqüência, também da ordem jurídica.[16]
A valorização da razão determinou então a consagração da vontade como elemento principal do contrato, que passou a fundamentar não só a sua gênese, mas também a legitimação do seu poder vinculante, o que pode facilmente ser percebido nas principais codificações da época.[17]
O Código Civil francês, em seu art. 1.101, determinou que “le contrat est une convention par laqualle une ou plusieurs personnes s´obligent, envers une ou plusieurs autres, à donner, à faire, ou à ne pás faire quelque chose”. E, no seu art. 1.134, complementou que “les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites”. O Código Civil italiano, de 1865, no seu art. 1.098, estabeleceu que “il contratto è l´accordo di due o più persone per costituire, regolare o scioglere un vincolo giuridico”. O Código Civil português, de 1867, em seu art. 641, enunciou que “o contrato é o acordo, por que duas ou mais pessoas transferem entre si algum direito, ou se sujeitam a alguma obrigação”. E, no seu art. 702, estabeleceu que “os contratos legalmente celebrados devem ser pontualmente cumpridos; nem podem ser revogados ou alterados, senão por mútuo consentimento dos contraentes, salvo as excepções especificadas em lei”. O Código Civil espanhol, de 1889, em seu art. 1.254, dispôs que “el contrato existe desde que una o varias personas consienten en obligarse, respecto de otra ou otras, a dar alguma cosa o prestar algún servicio”. E, no seu art. 1.091, assinalou que “las obligaciones que nacen de los contratos tienen fuerza de ley entre las partes contratantes, y deden cumplirse al tenor de los mismos”. O Código Civil argentino, de 1869, no seu art. 1.137, por inspiração das lições de Teixeira de Freitas, determinou que apenas “hay contrato cuando varias personas se ponen de acuerdo sobre una declaración de voluntad común, destinada a reglar sus derechos”. E, no art. 1.197, consignou que “las convenciones hechas en los contratos forman para las partes una regla a la cual deben someterse como a la ley misma”. O Código Civil brasileiro, de 1916, não definiu o contrato, todavia, não se duvida que seguiu as orientações da época.[18]
Tendo em vista o papel decisivo da vontade, adverte Cláudia Lima Marques, o sistema jurídico concentrou seus esforços no problema da realização dessa vontade.[19] A função da legislação, da doutrina e da jurisprudência era proteger a vontade criadora dos contratos e assegurar os efeitos pretendidos pelos contratantes.
O modo pelo qual se opera a formação do contrato não mais se sujeita ao cumprimento estrito de solenidades, bastando o simples consentimento entre os interessados. Em regra, a celebração do contrato depende apenas da harmonização das vontades declaradas pelos contratantes, expressas por quaisquer meios inteligíveis e idôneos, seguindo o esquema da proposta e da aceitação. É então o enlace psicológico de duas declarações de vontade de pessoas distintas que determina a gênese do contrato moderno.
Os indivíduos recebem poderes suficientes para, sem qualquer influência externa imperativa, seguindo apenas os impulsos de sua razão, escolher contratar ou se abster de contratar, selecionar o seu parceiro contratual, fixar o conteúdo e os limites das obrigações assumidas por meio do contrato. Compete-lhes dimensionar os efeitos que serão produzidos pelo contrato a ser celebrado, discutindo amplamente os seus termos e suas condições. Permite-se, inclusive, a derrogação casuística das disposições legais peculiares a cada contrato, desde que não ocorra a violação dos bons costumes e da ordem pública, assim atendendo as conveniências particulares dos envolvidos.
Em matéria contratual, o sistema legal passa a ter um caráter essencialmente residual. A ele cabe apenas zelar pela palavra empenhada, pelo acordo firmado como o fora. Não lhe era permitido cogitar acerca, principalmente, do conteúdo do contrato. Quando muito, teria emprego supletivo, incidindo em caso de silêncio dos contratantes.[20]
Em síntese, assinala Enzo Roppo:
[…] afirmava-se que a conclusão dos contratos, de qualquer contrato, devia ser uma operação absolutamente livre para os contratantes interessados: deviam ser estes, na sua soberania individual de juízo e de escolha, a decidir se estipular ou não estipular um certo contrato, a estabelecer se concluí-lo com esta ou com aquela contraparte, a determinar com plena autonomia o seu conteúdo, inserindo-lhe estas ou aquelas cláusulas, convencionando este ou aquele preço. Os limites a uma tal liberdade eram concebidos como exclusivamente negativos, como puras e simples proibições; estas deviam apenas assinalar, por assim dizer, do exterior, as fronteiras, dentro das quais a liberdade contratual dos indivíduos podia expandir-se em estorvos e sem controles. Inversamente, não se admitia, por princípio, que a liberdade contratual fosse submetida a vínculos positivos, a prescrições tais que impusessem aos sujeitos, contra a sua vontade, a estipulação de um certo contrato, ou a estipulação com um sujeito determinado, ou por um preço ou em certas condições: os poderes públicos – legislador e tribunais – deviam abster-se de interferir, a que título fosse, na livre escolha dos contraentes privados. [21]
Oportuno destacar que o enaltecimento jurídico da vontade acabou pressupondo uma igualdade formal entre os contratantes, uma vez que todos os indivíduos deviam ser considerados, do mesmo modo, capazes de, por si só, zelar pelos seus interesses e o contrato, por conseqüência, representava verdadeira harmonização das pretensões, sendo vantajoso reciprocamente. Diversidade de opiniões não significava mais que diversos modos de guiar a razão.
Necessário era apenas garantir, pois, que a vontade, formadora do contrato, fosse real, isto é, que não fosse influenciada. Daí a criação da teoria dos vícios de consentimento. Inquinada de erro, dolo ou coação a volitiva, não há como invocar o comprometimento do contratante. Somente obriga o indivíduo uma deliberação eminentemente própria, desprovida de quaisquer condicionamentos externos.
Uma vez firmado o contrato, ele há de ser cumprido, impreterivelmente, pelas partes contratantes. Não importa o que, nem como tenha sido estipulado. O acordo deve ser satisfeito. Se era justamente por meio do acordo de vontades que os interessados se obrigavam, era em função dele que haveriam de respeitar e realizar o prometido. Nesse sentido, assinala Enzo Roppo:
À liberdade, como se viu, tendencialmente ilimitada, de contratar ou de não contratar, de contatar nestas ou naquelas condições, no sistema, por outro lado, correspondia, como necessário contraponto desta, uma tendencialmente ilimitada responsabilidade pelos compromissos assim assumidos, configurados como um vínculo tão forte e inderrogável que poderia equiparar-se à lei. […] Cada um é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda. Um princípio que, além de indiscutível sustância ética, apresenta também um relevante significado económico: o respeito rigoroso pelos compromissos assumidos é, de facto, condição para que as trocas e as outras operações de circulação de riqueza se desenvolvam de modo correcto e eficiente segundo a lógica que lhes é próprio, para que se não frustrem as previsões e os cálculos dos operadores; condição necessária, assim, para a realização do proveito individual de cada operador e igualmente para o funcionamento do sistema no seu conjunto.[22]
O conteúdo do contrato é intangível. Uma vez determinado, quando das negociações, não admite qualquer alteração. Aos contratantes não é dado o direito de requerer modificação do pactuado. O acordo é, verdadeiramente, irreversível, irretratável. Imperioso honrarem as partes com a palavra empenhada.
Como destaca Caio Mário da Silva Pereira, “a elas [as partes contratantes] não cabe reclamar, e ao juiz não é dado preocupar-se com a severidade das cláusulas aceitas, que não podem ser atacadas sob a invocação de eqüidade”.[23] A regra, portanto, é da impossibilidade tanto de revogação unilateral do acordo quanto de sua revisão judicial. Do vínculo ao qual se filiaram, espontaneamente, os contratantes não podem se desligar, sobretudo, por meio de alegações acerca da injustiça do pactuado ou de sua grande onerosidade.
O que se admite, quando muito, é o distrato. Às partes é permitido aniquilar a estipulação pretérita – o que parece, até mesmo, coerente. Da mesma forma que tiveram autonomia suficiente para formular determinado ajuste, têm para invalidá-lo; para torná-lo, a partir de então, inexeqüível. Fora esta alternativa, apenas dois outros aspectos amenizam a obrigatoriedade do pacto, quais sejam o caso fortuito e a força maior. Apenas quando acontecimentos futuros, imprevisíveis ou previsíveis – mas que independam do contratante – tornem impossível, absoluta e objetivamente, o cumprimento contratual é que se permitirá retirar-lhe a imperiosidade, por intervenção judicial.
Neste contexto, em suma, o contrato foi concebido como fruto exclusivo da vontade, tanto na sua formatação interna como na externa, influenciado que foi pelos postulados do racionalismo iluminista.
Não se pode também esquecer que o modelo contratual moderno pretendeu atender as exigências do sistema capitalista nascente. Assim, foi concebido para permitir o funcionamento de um sistema econômico individualista, pouco dinâmico e dominado pelo setor primário, no qual as operações econômicas, no geral, eram bem ponderadas e conservavam certo caráter pessoal.[24] Defendia-se que a lei da oferta e da procura, na sua expressão mais pura, atendia aos interesses da coletividade.[25] E assegurando a ampla liberdade individual, imaginava-se restar garantida a justiça contratual.[26]
Contrato contemporâneo. As diversas transformações sócio-econômicas que atingiram as sociedades ocidentais no último século evidenciaram a necessidade de uma reformulação da noção de contrato e de sua disciplina legal.[27]
A liberdade contratual mostrou-se um poderoso instrumento de opressão e de exploração do contratante em situação de inferioridade econômica. Na medida em que as pessoas que contratam são economicamente diferentes e possuem necessidades diferentes, é esperável que o acordo, se deixado apenas à autonomia da vontade delas, seja desproporcional. Grosso modo, se de um lado existe alguém que necessita contratar – não tendo outra opção – indubitável estar disposto a se submeter à situação que não lhe seja muito vantajosa – pra não dizer prejudicial. Ônus apenas para uma parte e lucro exagerado para a outra. Assim, a escassez dos postos de trabalho fez o empregado ceder aos penosos desígnios do empregador; o déficit habitacional dos centros urbanos fez o locatário sucumbir aos devaneios gananciosos do locador, a essencialidade, real ou ilusória, dos produtos e serviços lançados no mercado fez o consumidor se submeter aos parâmetros abusivos impostos pelo fornecedor.
A revolução tecnológica contribuiu para a despersonalização do contrato. O diálogo perde espaço para o silêncio, pois os contratantes não mais se conhecem, nem se identificam ou se encontram. Imagine aquela freqüente situação na qual a oferta é constituída pela presença de uma máquina distribuidora de bens de consumo, enquanto a aceitação é manifestada pela simples inserção de moedas em orifício adequado. Lembre ainda aquela corriqueira situação na qual a oferta é constituída por uma série de imagens e informações alocadas em ambiente virtual, enquanto a aceitação se realiza pela simples digitação em teclado de computador.
O aperfeiçoamento da produção industrial em larga escala projetou a estandardização dos contratos, especialmente por meio do emprego de cláusulas contratuais gerais. O diálogo perde espaço para o monólogo, pois apenas um dos contratantes cuida da regulamentação do conteúdo e dos efeitos do contrato, restando ao outro a possibilidade da simples adesão mecânica ao esquema formulado. Segundo Paulo Luiz Neto Lôbo, as cláusulas contratuais gerais “constituem regulação contratual predisposta unilateralmente e destinada a se integrar de modo uniforme, compulsório e inalterável a cada contrato de adesão que vier a ser concluído entre o predisponente e o respectivo aderente”.[28] Para Almeno Sá, as cláusulas contratuais são identificadas como “estipulações predispostas em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceitas em bloco, sem negociação individualizada ou possibilidade de alterações singulares”.[29]
Pelo exposto, observa-se que a nossa sociedade pós-industrial, caracterizada pelo extraordinário incremento quantitativo das operações econômicas, verificado a partir da produção e consumo em massa, exigiu que os expedientes contratuais fossem mais simples, ágeis e seguros, determinando a redução da importância do elemento volitivo. A respeito, Enzo Roppo:
as transformações que descrevemos caracterizam-se por um elemento comum, que constitui a sua razão unificante. Todas elas são funcionalizadas à exigência de garantir ao máximo a estabilidade e a continuidade das relações contratuais económicas, e, por esta via, de assegurar-lhes aquele dinamismo que é postulado pelos modos de funcionamento das modernas economias de massa. Para que tal objectivo seja conseguido, o contrato não pode mais configurar-se como o reino da vontade individual, a expressão directa da personalidade do seu autor, exposto, por isso, a sofrer, de forma imediata, os reflexos de tudo quanto pertence à esfera daquela personalidade e daquela vontade; para servir o sistema de produção e da distribuição de massa, o contrato deve, antes, tornar-se, tanto quanto possível, autônomo da esfera psicológica e subjectiva em geral do seu autor, insensível ao que nesta manifesta no ambiente social, nas condições objectivas de mercado: o contrato deve transforma-se em instrumento objectivo e impessoal, para adequar-se à objectividade e impessoalidade do moderno sistemas de relações econômicas.[30]
O traço característico do contrato contemporâneo parece-nos ser então a sua progressiva objetivação. Em síntese, o contrato passa a ser percebido como um encontro de “comportamentos sociais valorados de modo típico, por aquilo que eles socialmente exprimem, abstraindo-se das atitudes psíquicas concreta dos seus autores”.[31]
Interessante perceber que o processo de objetivação do contrato é acompanhado por uma crescente intervenção estatal na sua disciplina legal, notadamente pelo fato de as técnicas contratuais contemporâneas abrirem uma margem bastante significativa para que os agentes em situação de superioridade econômica estabeleçam condições contratuais amplamente favoráveis aos seus próprios interesses, desconsiderando as legítimas expectativas daqueles com quem contratam, o que pode evidenciar tremenda abusividade.[32] É comum, por exemplo, encontrarmos, nas cláusulas contratuais gerais, a exoneração da responsabilidade civil em favor do predisponente, a limitação de direitos do aderente, a variação unilateral do preço pelo predisponente, a inversão do ônus da prova em prejuízo do aderente, a imposição de cláusula penal com valor excessivamente elevado, a possibilidade de o predisponente investigar a vida privada do aderente, o acesso dos dados cadastrais do aderente pelos parceiros do predisponente, a fixação do foro contratual distante do domicílio do aderente, entre outros.
Não mais vinga o raciocínio segundo o qual todos os homens possuem condições para, por si só, zelarem pelos seus direitos. Não mais vinga a idéia de que o poder de barganha de todos os contratantes é o mesmo e que, por isso, qualquer avença lhes seja vantajosa. O legislador então se propõe a restringir e regular, por meio de normas imperativas, o espaço antes reservado ao livre jogo dos contratantes, instituindo como diretrizes para a nova imagem do contrato a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual.[33]
A boa-fé objetiva designa padrão de conduta que deve ser observada pelos contratantes independentemente de adesão voluntária, caracterizado por parâmetros socialmente reconhecíveis de lealdade e de cooperação. Segundo Cláudia Lima Marques, a boa-fé objetiva significa “uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes”.[34]
O equilíbrio contratual designa modelo de distribuição proporcional das vantagens e dos encargos obrigacionais entre os contratantes, tendo em vista suas legítimas expectativas e suas posições socioeconômicas, aferidas também de acordo com parâmetros socialmente reconhecíveis. Assim, veda-se que as prestações contratuais expressem um desequilíbrio real entre as posições individuais dos contratantes, independentemente da assunção voluntária de obrigações excessivamente onerosas.
Em suma, parece-nos que, hoje, o contrato deve ser percebido como ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica, que cria, modifica ou extingue relações dinâmicas de caráter patrimonial, formado pelo encontro de comportamentos típicos socialmente reconhecíveis, levados por duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender suas necessidades e seus desejos, orientados pela preocupação fundamental de promoção da dignidade humana.
Uma análise psicanalítica do contrato: entre desejo e necessidade
O duvidoso esclarecimento racional de algumas ocorrências que afligem os homens pode ser citado como o impulso fundamental para estruturação da psicanálise. Freud, como principal mentor dessa proposta, estruturou-a voltada ao alcance de explicações para nossos atos através da compreensão do funcionamento da nossa psique.[35] Segundo Georges Philippe Brabant, “a psicanálise pode ser concebida como uma tentativa de dar um sentido, ou de procurá-lo exatamente onde não se supunha que ele pudesse estar”.[36]
Rompe-se, assim, com a tradição científica de tentar apresentar, como recurso de explicação, a racionalidade humana plenamente controlável e perfeitamente aferível, consubstanciada no conceito de vontade. Ao invés da relação de causalidade, da lógica pressuposto-efeito, o escopo psicanalítico é o de tentar desvendar as motivações que, efetivamente, fundamentam as ações dos sujeitos, sobretudo quanto àqueles atos para os quais já não havia uma perfeita explicação causalista, como os sonhos ou os atos falhos. Em suma:
postular que existe um sentido onde inicialmente parecia não haver, é afirmar que existe uma intenção lá onde ninguém ousaria suspeitar que existisse; é ao mesmo tempo negar que existam condutas humanas – motoras, verbais, imaginárias – que não sejam motivadas por uma intenção, em outras palavras, por um desejo.[37]
A peculiar característica da psicanálise é afirmar que as atividades humanas são regidas, em verdade, pelo inconsciente, isto é, pela esfera do sistema psíquico na qual, precisamente, a racionalidade não se impõe; é dizer, espaço no qual a vontade não reina. Para tornar essa informação mais inteligível, imperioso esclarecer como se estrutura e funciona a psique.
Todo o aparelho psíquico pode ser explicado através de um sistema estruturado por dois pólos em constante tensão, quais sejam o sensitivo e o motor. Trata-se do esquema chamado de arco reflexo,[38] que funciona a partir de um estímulo sensitivo a ser harmonizado através de uma descarga motora. Isso se deve ao fato de que a excitação potencial é incômoda, sendo, por outro lado, sua descarga concreta plenamente satisfatória.[39]
O referido estado de excitação é permanente, por resultar de estímulos orgânicos e ambientais que recebemos, incessantes em si mesmos. Dito de outra forma, as permanentes experiências fisiológicas e sociais pelas quais passamos, é que nos oferecem impulsos de ação, os quais adquirem qualidade psíquica ao criar os denominados representantes ideativos ou marcas na psique. A partir disso, inicia-se o processo dinâmico idealmente direcionado à descarga, em virtude do desprazer provocado pelo estado de excitação psíquica.
Neste contexto, destaca-se uma das principais chaves da psicanálise freudiana: a idéia de pulsão. Freud indicou-a como o conceito-limite da articulação entre o psíquico e o somático.[40]
A pulsão compreenderia, assim, o processo dinâmico através do qual se busca alcançar o objeto apto à realização da meta criada pelo impulso. Melhor explicando, aqueles estímulos endógenos ou externos (impulso) apreendidos pelo sistema psíquico – criadores dos representantes ideativos – tendem a uma descarga motora (meta) que, para ser obtida, depende da eleição e alcance de certo objeto. Todo esse entrelaçamento seria a pulsão, cujos elementos se dividem por natureza: os dois primeiros têm cunho somático; o último, inevitavelmente psíquico.
É claro que a fonte da pulsão está toda no lado somático; a meta também, pelo menos à medida que essa meta consiste na redução da tensão ao nível da fonte somática. Em compensação, a procura do objeto apto a reduzir esta tensão implica uma participação necessária da atividade psíquica.[41]
Esta relação entre o somático e o psíquico, isto é, a pulsão, explica-se através de uma metáfora usada por Freud: a do elo entre o mandante e o mandatário. Em resumo, isto quer significar que os representantes ideativos já citados são a representação, no plano psíquico, dos estímulos somáticos pulsionais. “Estes [os representantes ideativos], como acabamos de ver, são os intermediários indispensáveis entre a excitação e a realização da meta pulsional”.[42]
Note-se, porém, que a representação aqui não pode ser entendida como transcrição fiel do substrato dos estímulos somáticos à psique. A simples transposição destes para um plano de outra qualidade impõe a necessidade da adequação do substrato aos específicos códigos psíquicos.
Esse procedimento adaptativo – que retira da representação o sentido de transcrição – gera, por sua vez, um relevante efeito: estímulos somáticos idênticos podem gerar apreensões psíquicas diversas, proporcionalmente à forma como são encarados pelo sujeito que os recepciona. Uma mesma incitação pode importar uma vivência prazerosa para um e um tormento para outro. Proporcionalmente, então, à significação que ganham os estímulos somáticos no plano psíquico, eles imporão a cada pessoa uma peculiar eleição de objetos para que sejam satisfeitos – buscando-se o prazer em detrimento do desprazer.
Essa variedade funda-se no fato de que do primeiro procedimento pulsional de um sujeito resulta o traço mnésico.[43] Este seria uma imagem proveniente da experiência de satisfação que pode ser reavivada caso a mesma excitação psíquica, oriunda do estímulo somático, novamente se apresente. Essa experiência pode tanto ter sido passada pelo sujeito que pretenda revivê-la, como por um outro que este pretenda copiar.[44] Se permanentemente excitado está o sistema psíquico, incessante se apresenta esta tendência de reviver as experiências próprias ou as alheias, presenciadas. Daí porque nossas ações serem retrospectivas, mas também e principalmente, prospectivas.
Reviver tais referenciais representativos – os traços mnésicos – através da mera lembrança não basta para trazer a satisfação plena. Esta somente ocorre, efetivamente, a partir da perseguição do objeto real que realize a meta pulsional. Com isso, novo dinamismo psíquico se estrutura e, com ele, o problema do alcance do prazer absoluto.
Obter a plena satisfação através do objeto real sugerido pelos estímulos somáticos, é algo auto-destrutivo, razão pela qual se faz imprescindível proceder a uma filtragem da pulsão. Eis, pois, a grande função do recalcamento.
Recalcamento é um obstáculo, presente no sistema psíquico, que se impõe para que não haja a satisfação completa do estado de excitação, a fim de que seja mantido o equilíbrio da psique. Isto porque o prazer integral é naturalmente excessivo, descomedido, qualificando-se, pois, como arrasador. Desta forma, recalques ou filtros são estruturados para impedir que o próprio indivíduo se elimine através da descarga integral de seus estímulos sensitivos.
Fundado neste escopo, o recalcamento separa os vários representantes ideativos que compõem o aparelho psíquico em dois grupos principais.
O primeiro, e majoritário, seria composto por representantes que não respeitam as coações da razão ou os limites da realidade social, voltando-se, assim, à descarga da tensão havida de maneira plena e imediata. Este é o grupo do inconsciente. Rege-se pelo Princípio do desprazer-prazer que, sem restrições, impõe cessar o incômodo provocado pela excitação psíquica.
O segundo grupo, minoritário, abrange os representantes que, embora também se voltem para a descarga da tensão, pautam-se em fazê-lo lentamente e na medida do possível, considerando as várias restrições que lhe são apresentadas. Denomina-se grupo do pré-consciente-consciente e é disciplinado pelo Princípio da realidade.
Muito diferente do inconsciente, este último grupo se estrutura através da racionalidade conformada pela linguagem – atributo ínsito à qualidade social dos homens – pela inserção cultural do sujeito. Trata-se de uma esfera psíquica na qual as pulsões têm limitada sua imatura pretensão de satisfação completa, somente podendo se fazer cumprir em conformidade às permissões sócio-racionais.
Perceba-se, pois, que o recalcamento, sendo a barreira que separa esses dois grupos, pretende obstar que o conteúdo do inconsciente passe, intacto, para o grupo do pré-consciente-consciente. E isso porque, se os representantes ideativos do inconsciente não se submetem às limitações da realidade – lembre-se que o princípio que os disciplinam é o do prazer-desprazer – caso transformados em respostas motoras proporcionais, podem trazer a própria eliminação do sujeito. Imprescindível se faz tolerar os desprazeres que a vida social traz consigo e, sendo assim, não se pode deixar espaço para o cumprimento integral das pretensões psíquicas inconscientes.
Destarte, fica fácil perceber que o recalcamento exerce papel elementar: ao separar os planos inconsciente e pré-consciente-consciente serve a resguardar que as descargas motoras dos estímulos sensitivos, cuja satisfação prévia – própria ou alheia – instaurou o tranço mnésico, ocorram em atenção à sociabilidade humana.
Esse procedimento complexo serve para todos os estímulos apreendidos pelo sistema psíquico. Vale insistir que a realização da meta oriunda de um impulso depende necessariamente do instrumental representante ideativo, ou seja, o sistema psíquico apresenta-se mesmo determinante em todos os atos do agente.
O impulso sensitivo recebido soma-se ao traço mnésico (representação da meta) e, assim, tem a capacidade de gerar apenas uma vivência imaginária (resposta apenas parcialmente satisfatória) ou, além dessa vivência, uma descarga motora, através do objeto real.
Este recurso de satisfação pulsional pode, por sua vez, ter sido conscientemente eleito ou fantasiado. No primeiro caso, submeteu-se à racionalidade do agente que teve a faculdade de, assim, optar dentre as alternativas socialmente possíveis, aquela que lhe pareceu mais viável – proporcionalmente ao representante ideativo que pretendia experimentar novamente. No último caso, trata-se de produto do recalcado ou fruto de escape do inconsciente ao obstáculo do recalcamento, provocador de uma resposta motora que, embora fantasiadamente compatível com o representante ideativo a realizar, não foi racionalmente escolhida pelo agente, fugindo ao princípio da realidade.
Seja num caso, seja noutro, o ponto destacante parece ser, exatamente, a conformação do ato proporcionalmente à tentativa de reviver os traços mnésicos, as experiências próprias ou alheias devidamente marcadas em nossa psique. É o desejo que se faz presente.
O desejo pode ser definido como um movimento que, partindo de uma excitação pulsional, visa a revivescência de uma imagem mnésica que pode ser a imagem de uma experiência pessoal anterior, ou a imagem da experiência de outrem com quem queremos parecer ou a quem queremos substituir.[45]
É o próprio Freud quem definiu que “o ser humano é um ser de desejo e pulsão”.[46] Esta como o processo dinâmico de busca da descarga dos impulsos a todo o tempo recebidos; aquele como o parâmetro a reger o processo pulsional, composto pelas marcas já estampadas na psique que representam as experiências às quais o agente já se submeteu ou presenciou e pretende novamente realizar.
Disto tudo, é possível concluir que a psicanálise não parece fazer diferenciações entre necessidade e desejo. Afinal, ainda que o estímulo sensitivo seja de ordem fisiológica, elementar à própria manutenção física do agente, ele sujeitar-se-á a todo o procedimento pulsional que traz, ínsito, o desejo.
Isso se reforça ainda mais quando se releva o fato, já anteriormente indicado, de que as apreensões psíquicas dos impulsos são peculiares ao sujeito, em função dos traços mnésicos que lhe são próprios. Assim sendo, nem mesmo a partir de um idêntico estímulo é possível garantir uma única resposta. A satisfação de uma necessidade vital, mesmo que ela seja comum a todos nós, não ocorrerá sempre da mesma maneira, haja vista que as experiências que pretendemos reviver – representante ideativo determinante – são diversas entre si.
A única diferenciação permitida atine à forma de satisfação do impulso sensitivo. Caso este se funde em necessidades subsistenciais, sua realização apenas ocorre a partir da fruição do objeto real. “A necessidade é a falta real que brota em vários níveis do ser humano e pede reparação ou compensação”.[47] A contrario sensu, não se consegue satisfazer uma necessidade através da mera lembrança do traço mnésico ou através de sua transfiguração em um objeto fantasiado, como pode acontecer com outros impulsos sensitivos. A necessidade tão-somente se concretiza num alvo verdadeiro.
A necessidade é a exigência de um órgão cuja satisfação se dá, realmente, com um objeto concreto (o alimento, por exemplo), e não com uma fantasia.[48]
Não se imagine, porém, que, nessas circunstâncias, a pulsão não se apresenta. Muito diferente disso, ela talvez aqui seja ainda mais elementar: as necessidades vitais hão de ser, com muito mais ênfase, sujeitas ao recalcamento porque expõe os sujeitos a conflitos maiores e mais freqüentes.
Resumindo, no domínio das necessidades ligadas à conservação da vida, a instauração do princípio da realidade é uma necessidade e não dá lugar nem ao recalque [aqui entendido como o resultado da tensão entre as pulsões e as forças de defesa que a elas se apresentam] nem à substituição durável de satisfações reais por satisfações imaginárias.[49]
Por fim, é preciso sublinhar que, diante do que ficou exposto, efetivamente, para a psicanálise as condutas humanas advêm de motivações não aferíveis e controláveis racionalmente. A vontade não é fator decisivo. Afinal, de fato, nem sempre finalizamos o processo pulsional racionalmente, através da escolha do objeto real. E mesmo quando há esta determinação pelo consciente, ela a isso se resume, não abrangendo o elemento principal: a representação da meta, que se emoldura nos moldes das marcas de nossa psique. Repise-se, pois, que o desejo é alheio ao nosso controle racional e, sobretudo, é o que origina todas as nossas ações, dentre as quais se encontram, inclusive, aquelas voltadas para a satisfação das necessidades vitais.
Em busca das funções do contrato
Para além de nossa satisfação, os contratos são importantes para a conformação da própria sociedade. Contudo, a preocupação com a utilidade dos institutos jurídicos é uma característica relevante apenas da dogmática contemporânea. O jurista atual não se contenta mais com a simples delimitação dos elementos estruturais dos diversos expedientes jurídicos, dentre os quais se destaca o contrato, passando a preocupar-se também com as funções que podem ser desempenhas no ambiente social.
Além de coibir comportamentos socialmente indesejados por meio de uma atuação essencialmente repressiva, percebe-se que os institutos jurídicos servem também para estimular os indivíduos a realizarem atividades reputadas socialmente úteis. Cada vez mais, nota-se uma preocupação em favorecer ações vantajosas e não apenas desfavorecer ações nocivas.
A propósito, assinala Francisco Amaral:
A funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o direito em particular e a sociedade em geral começam a interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a costumeira função repressiva tradicionalmente atribuída ao direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do direito com a economia. Surge, assim, o conceito de função no direito, ou melhor, dos institutos jurídicos, inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato.[50]
Celebramos contratos a todo instante, desde o momento em que nos levantamos até irmos dormir. Se o fenômeno contratual deixasse de existir, também o deixaria nossa sociedade. Nesse contexto, parece-nos que os contratos podem desempenhar três funções.
Função econômica. Desde suas origens, o contrato auxilia a circulação de riqueza, favorecendo a transferência da propriedade entre os contratantes, conforme ditames de segurança jurídica, assim permitindo o acesso dos indivíduos aos bens necessários para sua manutenção e aos bens desejados para o seu mero deleite, como os gêneros alimentícios, as peças de vestuário, os meios de transporte, os cuidados de saúde, os aparelhos eletrônicos, os computadores, a energia elétrica, a moradia e tantos outros. Após o amadurecimento do capitalismo e o advento da revolução tecnológica, com o aparecimento da empresa, o contrato passou também a subsidiar a criação da riqueza, na medida em que a organização eficiente dos fatores de produção – capital, matéria-prima, mão de obra e tecnologia – dependia de uma série de transações jurídicas materializadas por ele.
A propósito, leciona Orlando Gomes:
Na fase do capitalismo adolescente, a propriedade era, no processo econômico, a única verdadeira fonte de produção e fruição dos bens corpóreos, enquanto o contrato desempenhava apenas o papel complementar de simples meio para a transferência desses bens, de um proprietário para outro.[51]
Por sua vez, adverte Enzo Roppo:
Com o progredir do modo de produção capitalista, com o multiplicar-se e complicar-se das relações econômicas, abre-se uma processo, que poderemos definir como de mobilização e desmaterialização da riqueza, a qual tende a subtrair ao direito de propriedade (como poder de gozar e dispor, numa perspectiva estática, das coisas materiais e especialmente dos bens imóveis) a sua supremacia entre os instrumentos de controle e gestão da riqueza. Num sistema capitalista desenvolvido, a riqueza de facto não se identifica apenas com as coisas materiais e com o direito de usá-las; ela consiste também, e sobretudo, em bens imateriais, em relações, em promessas alheias e no correspondente direito ao comportamento de outrem, ou seja, a pretender de outrem algo que não consiste necessariamente numa res a possuir em propriedade.[52]
E enfatiza o autor:
[…] o contrato é, pois, instrumento necessário para a definição dos vários aspectos da organização interna da empresa: as relações entre os empresários e os trabalhadores subordinados, isto para nos limitarmos ao exemplo mais significativo, são relações contratuais; o mesmo vale para as relações externas que a empresa estabelece com o fim de obter os bens e os serviços necessários ao desenvolvimento de suas actividades produtivas (por exemplo: contratos de aquisição das matérias primas ou dos produtos semi-transformados, contratos de leasing para utilização das maquinarias, contratos de distribuição de energia eléctrica para o seu funcionamento) ou para difusão dos seus produtos no mercado (contratos de transporte, contratos de agência, contratos de publicidade, contratos de fornecimento aos operadores da rede distributiva, contratos de venda ao público dos consumidores).[53]
Em síntese, a utilidade primordial do contrato é possibilitar a circulação e a geração de riqueza, por meio da jurisdicização das operações econômicas perseguidas pelos contratantes.[54] Cabe ao contrato apresentar um arranjo racional e não arbitrário ao complexo destas operações, assim estabelecendo, previamente, os direitos e as obrigações que são assumidos pelos seus agentes, bem como promovendo a alocação eficiente dos riscos inerentes aos negócios.
Função pedagógica. O contrato serve também como meio de civilização, de educação do povo para a vida em sociedade.[55] Aproxima as pessoas, abate suas diferenças. Remedia a desconfiança natural existente entre os homens. As cláusulas contratuais dão aos contratantes noções de respeito ao outro e a si mesmos. Por meio dos contratos, as pessoas adquirem noção do direito como um todo, pois, em última instância, um contrato nada mais é do que miniatura do ordenamento jurídico, em que as partes estipulam deveres e direitos, através de cláusulas, que passam a vigorar entre elas.
Função social. Para Antônio Junqueira de Azevedo, o contrato não pode ser percebido como “um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais”, reconhecendo que “o contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade”.[56] Para Miguel Reale, o contrato apresenta-se como “um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida”.[57]
“A função social do contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam”.[58] Não mais basta que apenas movimente a riqueza, além de útil o contrato deve ser justo. Nesse sentido, assinala Arnoldo Wald:
O contrato continua, pois, sendo um instrumento de liberdade individual e de eficiência econômica. Mas a liberdade é qualificada, inspirando-se na lealdade e na confiança, que devem existir entre as partes, e a eficiência consiste na adaptação às necessidades do mercado. A função social abrange, pois, a manutenção do equilíbrio entre as partes e o bom funcionamento do mercado, sem prejuízo da obediência aos princípios éticos, pois a função do direito consiste em conciliar a economia com a moral, garantindo, assim, a segurança jurídica sem a qual nenhum país pode progredir.[59]
Consagra-se a idéia de que o contrato designa um importante instrumento para promoção da dignidade da pessoa humana e para melhoria do meio ambiente social. Espera-se que na consecução de sua primordial finalidade econômica o contrato não prejudique a coletividade, por exemplo, evitando a degradação ambiental e a dominação de mercados, assim como não permita a exploração do ser humano, repudiando discriminações de qualquer espécie e proliferação da pobreza e da desigualdade material. Ao contrário, espera-se que o contrato contribua para busca do pleno emprego, melhoria da distribuição de renda, facilitação do acesso aos bens essenciais, promoção da livre concorrência, preservação do equilíbrio ecológico, proteção do patrimônio histórico e artístico, divulgação da cultura, desenvolvimento da nação entre outros. O contrato passa a ser visualizado como ponto de encontro de direitos fundamentais.[60]
Assim, podemos afirmar que a função social do contrato opera em duas dimensões. Internamente, designa a necessidade dos contratantes observarem padrões de lealdade e cooperação na consecução das operações materializadas pelo próprio contrato, repelindo o abuso do direito.[61] Externamente, designa a necessidade de harmonização dos interesses dos contratantes com os interesses da coletividade, assim os contratantes não podem criar situações que violem direitos de terceiros, nem podem os terceiros agir de modo a prejudicar os direitos subjetivos dos contratantes.[62]
Parece-nos que a exaltação da função social do contrato apresenta-se também como reflexo do processo de despatrimonialização do direito civil, caracterizado pela maior sensibilidade deste setor do fenômeno jurídico às situações que dizem respeito a interesses existenciais dos sujeitos de direito, que recolhem dados não confináveis nos esquemas normativos de índole puramente econômica.[63] Não se projeta, contudo, a expulsão ou a redução quantitativa do conteúdo patrimonial do sistema jurídico civilístico, mas se reconhece que os bens e os interesses patrimoniais não constituem fins em si mesmos, devendo ser tratados como meios para a realização da pessoa humana, ou melhor, como justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.[64]
Entre nós, a exigência do reconhecimento da função social do contrato parece decorrer do princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, inciso III). Contudo, não se pode deixar de advertir que a função social do contrato não deve, nem pode, afastar o seu conteúdo econômico, mesmo a pretexto de cumprir uma atividade assistencial.[65] “Contrato sem função econômica simplesmente não é contrato”.[66] Necessário, pois, repita-se, compatibilizar os interesses econômicos dos contratantes com os anseios sociais de bem estar da coletividade e de proteção da dignidade humana.
O enaltecimento hodierno da função social do contrato provoca então uma alteração bastante significativa na percepção tradicional deste instituto jurídico, insurgindo-se contra o individualismo egoístico de outrora.[67] Assim, também contribui para a superação do postulado tradicional que concebeu o contrato como fruto exclusivo do encontro de vontades livres.
Doutor em Direito pela UFMG.
Professor titular na Universidade FUMEC.
Professor Adjunto de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da PUCMG e da UFMG. Professor colaborador na Universidade de Itaúna.
Advogado militante.
Mestre em Direito Civil pela UERJ, doutoranda em Direito Privado pela PUCMG, professora assistente de Direito Civil da FACHI-FUNCESI.
Doutorando em Direito Privado pela PUCMG. Investigador Visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Bolsista da CAPES/PDEE
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