Resumo: O trabalho apresentado tem o objetivo de analisar em que medida o controle de natalidade viola o princípio da dignidade humana. Fundamenta-se teoricamente em estudos doutrinários, históricos, políticos, opiniões de especialistas e legislação pertinente. Primeiramente, elabora-se uma análise da importância dos princípios no ordenamento jurídico e sua influência na atuação dos profissionais de Medicina no cuidado da vida e da saúde humana. Em seguida, expõem-se as dimensões que o princípio da dignidade humana apresenta, considerada por Ingo Sarlet como “limite e tarefa do Estado e da comunidade”, sendo ela um fator preponderante para a autodeterminação livre e consciente da pessoa. A partir daí, explica-se a fonte dos programas de controle demográfico, os argumentos sustentados por seus simpatizantes e o rompimento do mito da bomba demográfica. Finaliza-se com a exposição do controle de natalidade como forma de supressão dos direitos reprodutivos; e que historicamente, é superado pelo planejamento familiar, com o reconhecimento do dever do Estado em fornecer os recursos necessários à pessoa para a tomada de decisões nos assuntos relativos à sua reprodução.[1]
Palavras-chave: Biodireito. Reprodução. Dignidade Humana. Controle de Natalidade.
Riassunto: Il lavoro presentato ha come obiettivo analisare in chi misura il controllo della natalità viola il principio della dignità umana. Fondamentasi teoricamente un studi dottrinari, istorici, politici, opinioni di specialisti e legislazione pertinente. Innanzitutto, si elabora una analise dell’importanza dei principi nell’ordinamento giuridico e sua influenza nella attuazione dei professionali della medicina nella cura della vita e della salute umana. In seguito, si espone le dimensioni che il principio della dignità umana presenta, considerata da Ingo Sarlet come “limite e funzione dello Stato e comunità” essendo la stessa un fattore preponderante alla autodeterminazione libera e cosciente della persona. Daqui si spiega l’origine dei programmi di controllo demografico, gli argumenti sostenuti dai suoi simpatizzanti e la rottura del mito della bomba demografica. Concludesi con la esposizione del controllo della natalità come forma di soppresione dei diritti riprodutivi e che istoricamente è superato dalla pianificazione famigliare, con il riconoscimento del dovere dello Stato in fornire lê risorse necessarie allá persona, cosi che possa prendere le decisioni nei assunti relativi alla sua riproduzione.
Parole chiave: Biodiritto. Riproduzione. Dignità humana. Controllo della Natalità.
Sumário: 1. A dignidade humana como um princípio jurídico e bioético. 1.1. Princípios jurídicos: histórico, conceito e concepções teóricas. 1.2 Princípios bioéticos. 1.3. Dimensões da dignidade humana. 2. Princípio da paternidade responsável, planejamento familiar e sua distinção do controle de natalidade. 2.1. Controle de natalidade através da esterilização. 3. O planejamento familiar. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
A reprodução humana há muito tempo deixou de ser um ato meramente fruto do acaso ou do destino. O progresso da medicina tem proporcionado ao ser humano uma infinidade de meios de torná-lo um interventor desta atividade natural. Deste modo, sua reprodução restou como uma problemática das relações interpessoais, tornando-se objeto de ciências como o Direito e a Bioética.
O crescimento demográfico desordenado e a má distribuição de recursos têm suscitado, em todas as esferas sociais, indagações acerca da possibilidade de um “controle de natalidade”. Porém, esta intervenção, seja na modalidade coletiva ou individual, entra em conflito com uma outra conquista do progresso: o princípio da dignidade humana.
O objetivo deste trabalho é verificar em que medida a dignidade da pessoa humana é respeitada em sua integralidade (ou seja, em ambas as dimensões autonômica e assistencial) nas ações de planejamento familiar, no sentido de limitação da prole. Esta dignidade está associada a uma série de ações que possibilitam ao homem obter um status de respeito frente a outros, garantindo-lhe direitos e deveres, inerentes a uma característica única: a sua humanidade.
O trabalho é iniciado com uma abordagem dos princípios bioéticos e jurídicos. Neste momento, explicamos seu histórico e algumas concepções do que vem a ser “princípio” durante as transformações sofridas na ciência jurídica. Primeiramente como norma programática, oriundo da razão humana e integrante de um Direito Natural. E após, transmutados a princípios constitucionais, normatizados e informadores do Direito Positivo.
Na sequência, explicamos o advento da Bioética, restringindo sua atuação frente à vida humana, baseada numa ordem de valores denominada principialismo. Mais uma vez, os princípios são elevados a categoria de norteadores das atividades humanas.
Consolidado o entendimento da função dos princípios, abordamos a dignidade humana mediante sua hierarquização e dupla dimensão. Deste modo, explicamos a sua ligação com o princípio da autonomia nas ações de planejamento familiar.
No segundo momento do trabalho, tratamos do planejamento familiar, do princípio da paternidade responsável e do controle de natalidade. Iniciamos com uma abordagem sobre a esterilização, seus tipos, argumentos e sua problemática internacional até o reconhecimento dos direitos reprodutivos.
Posteriormente, analisamos como os direitos reprodutivos foram recepcionados no Brasil, através de políticas populacionais, Constituição Federal e dispositivos legais. Também faremos um panorama de como a paternidade responsável tem sido tratada por advogados, profissionais da saúde e políticos. Finalmente, explicaremos qual a ligação entre a paternidade responsável no exercício do planejamento familiar e o respeito da dignidade humana através da autonomia.
1. A DIGNIDADE HUMANA COMO UM PRINCÍPIO JURÍDICO E BIOÉTICO
Os princípios são a base dogmática de uma determinada ciência. Nascido do ideário cristão, o princípio da dignidade humana figura como uma conquista de uma novidade, disseminada pelo pensamento ocidental e absorvido pelo ordenamento jurídico, através de sua normatização em nossa Constituição Federal de 1988.
A dignidade humana trata-se de um princípio observado tanto nas questões relacionadas ao Direito e à Bioética. Em ambas as áreas do conhecimento, todas as ações devem ser pautadas observando-se o respeito à pessoa, oriundo de uma característica inerente ao ser humano: a sua humanidade.
1.1 PRINCÍPIOS JURÍDICOS: HISTÓRICO, CONCEITO E CONCEPÇÕES TEÓRICAS
Importante se faz iniciar este trabalho monográfico através de um desenvolvimento sobre os princípios. Há muito que juristas travam um confronto doutrinário a fim de esclarecer questões referentes a um elemento tão importante na história do Direito Romano-germânico.
Segundo o pensamento do jurista Picazo, os princípios são verdades objetivas. São normas jurídicas dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade e que, quase sempre, fazem parte do mundo do “dever-ser”. Afirma ainda que os princípios têm dupla serventia: a primeira, como critério de inspiração às leis ou normas concretas de um Direito Positivo”; a segunda, por serem normas obtidas “mediante um processo de generalização e decantação dessas leis”.[2]
Clemente, em meados de 1916, dizia que assim como quem nasce tem vida física, esteja ou não no Registro Civil, também os princípios “gozam de vida própria e valor substantivo pelo mero fato de serem princípios” estejam ou não nos Códigos. Nota-se claramente a posição anti-positivista do eminente jurista, que lembra a concepção de Scaevola, no sentido de conceituar o princípio como “uma verdade jurídica universal”. Por fim, Clemente chega à formulação de que “princípio de direito é o pensamento diretivo que domina e serve de base à formação das disposições singulares de Direito de uma instituição jurídica, de um Código ou de todo um Direito Positivo”.[3]
A Corte Constitucional Italiana formulou, por volta de 1956, um conceito de princípio ao proferir:
“Faz-se mister assinalar que se devem considerar como princípios do ordenamento jurídico aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico.”[4]
Em 1952, Crisafulli introduz a normatividade nos conceitos até então existentes. Conceitua princípios como
“toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.”[5]
A complexidade da matéria é claramente refletida quando Guastini expôs seis conceitos distintos de princípios.[6] É necessário ressaltar que todos eles estavam vinculados a disposições normativas. O autor ensina que os princípios são normas providas de um alto grau de generalidade ou são normas providas de um alto grau de indeterminação e que por isso requerem concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam susceptíveis de aplicação a casos concretos. Posteriormente, salienta que a palavra “princípio” pode ser interpretada como normas de caráter programático ou mesmo normas cuja posição elevada na hierarquia das fontes de Direito. E continua seu raciocínio afirmando que princípios são normas que desempenham uma função importante e fundamental no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num ou noutro sub-sistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, do Trabalho, das Obrigações). E para o autor os princípios também são normas dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos casos.
Importante ressaltar neste momento uma mudança na substância dos princípios. Durante a velha Hermenêutica constitucional, havia uma carência de normatividade nos princípios. Naquela os princípios eram consideradas normas programáticas. A Doutrina moderna inverteu esta situação, elevando os princípios gerais a princípios constitucionais. Este foi, definitivamente, um marco da evolução do constitucionalismo.
Segundo Martins-Costa, princípios e valores são o mesmo, contemplados em um caso sob um aspecto deontológico e sob um aspecto axiológico. Nos princípios, a dinamicidade da positivação é mais nítida, pois deve existir uma adesão moral da comunidade para que a finalidade dessa orientação seja efetivamente concretizada no meio social. Para tanto, através dos princípios, o Direito está se reaproximando da dimensão ética (afastada pelo formalismo legalista), apresentando-se como um sistema axiologicamente orientado. Substitui-se o modelo da incomunicabilidade entre o Direito e as demais instâncias sociais por um modelo de conexão, comunicabilidade e complementariedade.[7]
A Constituição Federal de 1988 é um exemplo do novo modelo axiologicamente orientado. As constituições anteriores se limitavam a definir as normas de organização e competência do Estado, enquanto que a atual é notadamente ”principiológica”, transformando em direito positivo, certos princípios, considerados até então, como pré-positivos. Nesta esteira seguiremos mais adiante quando tratarmos do princípio da dignidade humana, o qual ganhou evidente destaque como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito.
Segundo Paulo Bonavides, a juridicidade dos princípios passa por três fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista.
A fase jusnaturalista (a mais antiga e tradicional) é caracterizada pela abstração dos princípios e sua deficiência normativa. Esta era posição que divergia de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça.
Com o advento da Escola Histórica do Direito, o jusnaturalismo foi considerado uma variante da velha metafísica jurídica e cedeu lugar a um positivismo forte, dominante e imperial. Berger substituiu a expressão “princípio de Direito Natural” por “idéia de Direito”, manifestando-se que era de bom tom menosprezar a Filosofia do Direito e fazer do Direito Natural uma aberração. [8]
Por volta de 1880, Bobbio referiu-se a um artigo de Vitório Scialoja, que marcava o auge do positivismo. Este exprimiu sua desconfiança frente a eqüidade e uma total devoção às leis. [9]
Bobbio ainda escreve que:
“O prestígio da concepção positivista do Direito era tal que até alguns juristas austríacos, não obstantes o chamamento aos princípios de Direito Natural contido no art. 7° do seu Código Civil, interpretaram os princípios gerais como princípios de Direito Positivo.” [10]
Logo após, fixa a posição de Del Vecchio ao consumar a ruptura do domínio do positivismo tocante à teoria dos princípios, teoria cuja veracidade era posta em dúvida “ao colocar o problema nos termos desta alternativa: estão os princípios gerais do Direito dentro ou fora do sistema?”. E foi com semelhante indagação que, em 13 de dezembro de 1920, na sua aula inaugural de seu curso de Filosofia do Direito inicia uma reavaliação da problemática dos princípios debaixo da manifesta inspiração jusnaturalista. Sua intenção era um retorno por novas vias reflexivas para rebentar os cárceres do legalismo positivista.
Norberto Bobbio, ao referir-se a um artigo de 1921 da autoria de Del Vecchio, diz que o mesmo rompe a “cadeia das opiniões conformes” e sustenta que os Princípios Gerais do Direito evocados pelo art. 3° do Código Civil italiano de 1865 deveriam ser entendidos como princípios de Direito Natural.
No tocante a contribuição de Del Vecchio, Clemente escreveu: “Quão sugestivas são as considerações que o eminente professor italiano dedica aos sistemas jurídicos, à necessidade para o jurista e para o juiz de apropriar-se deles e dominá-los” [11].
Na Alemanha, o jusnaturalismo produziu reflexões que podem ser as causadoras do vínculo de diversos juristas à doutrina do “eterno retorno”. “Ninguém sabe nada de seguro acerca desse Direito Natural, mas todo mundo sente com segurança que ele existe”. Segundo Paulo Bonavides, tais palavras tornam explícito o apego à Velha Doutrina.
O jusnaturalismo concebe os princípios gerais de Direito em forma de “axiomas jurídicos” ou normas estabelecidas pela razão (por conseqüência normas universais do bem obrar). Segue ainda o jurista brasileiro asseverando que “são os princípios de justiça, constitutivos de um Direito Ideal. São, na esteira de Flórez-Valdés, “um conjunto de verdades objetivas derivadas da lei divina e humana”.
Para o jusnaturalismo, o ideal de justiça está indissociável dos princípios gerais do Direito. Porém, Enterría diz que “a formulação axiomática” de tais princípios “os arrastou ao descrédito”. Neste sentido, Paniagua entende que:
“Em conclusão e em resumo, podemos dizer que a diferença mais destacada entre a tendência histórica ou positivista e a jusnaturalista radica em que esta última afirma a insuficiência dos princípios extraídos do próprio ordenamento jurídico positivo, para preencher as lacunas da lei, e a necessidade conseqüente de recorrer aos do Direito Natural, enquanto que a corrente positivista entende que se pode manter dentro do ordenamento jurídico estatal, com os princípios que deste se podem obter por analogia. (…) Mas esta é, antes de tudo, uma questão de lógica: a suficiência ou insuficiência do ordenamento jurídico; e só depois de resolvida, sem agitar o fantasma do Direito Natural, dever-se-ia começar a determinar, caso a conclusão seja a da insuficiência, os métodos de suprir essas lacunas”. [12]
O juspositivismo consiste em uma concepção teórica do Direito distinta. Nele, os princípios, começam a ser inseridos nos códigos e sua força normativa ganha um contorno mais nítido. Corroborando a afirmação de Paulo Bonavides, eles atuam como fonte normativa subsidiária.
Cañas considerou a atuação dos princípios nos códigos como uma “válvula de segurança”. Esta atribuição não lhes conferia força normativa superior nem anterioridade à lei. Sua função se limitava a fazer entender sua eficácia de modo a evitar o vazio normativo. [13]
O declínio do Direito Natural clássico foi ratificado com o surgimento da “Escola Histórica do Direito” e a elaboração dos códigos. Desde então, o século XIX foi marcado pelo desenvolvimento do positivismo jurídico (que perdurou em expansão até a primeira metade do século XX).
O jurista espanhol Flórez-Valdés definiu que a concepção positivista (ou histórica) sustenta basicamente que os princípios gerais do Direito equivalem aos princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de fundamento. E continua:
Estes princípios se induzem por via de abstração ou de sucessivas generalizações, do próprio Direito Positivo, de suas regras particulares (…). Os princípios, com efeito, já estão dentro do Direito Positivo e, por ser este um sistema coerente, podem ser inferidos do mesmo. Seu valor lhes vem não de serem ditados pela razão ou por constituírem um Direito Natural ou ideal, senão por derivarem das próprias leis. [14]
Em alusão às palavras de Norberto Bobbio, Paulo Bonavides diz que o juspositivismo, ao fazer dos princípios na ordem constitucional meras pautas programáticas supralegais, tem assinalado, via de regra, a sua carência de normatividade, estabelecendo, portanto a sua irrelevância jurídica. [15]
Em Teoria dell’Ordinamento Giuridico, Bobbio expõe de maneira mais clara:
“Os princípios gerais são, ao meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas gerais. O nome de princípios induz em engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios são ou não normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devem ser normas também eles: se abstraio de espécies animais e obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas?” [16]
A última fase dos princípios no ordenamento jurídico é conhecida como o “pós-positivismo”. A partir da segunda metade do século passado, as constituições de diversos países foram absorvendo os princípios em seus textos. A Constituição Federal do Brasil de 1988 não se distanciou desta nova concepção, assumindo sua característica de constituição principiológica.
De acordo com Ávila, tanto o princípio quanto a regra são espécies normativas. A principal diferença entre elas é sua destinação no mundo material. As regras são normas descritivas (pretensão imediata) em que o ordenamento jurídico, na medida em que organiza uma escala axiológica (previamente aceita pela sociedade), “estabelecem obrigações, permissões ou proibições mediante a descrição de conduta a ser cumprida” (orienta o fazer ou o não-fazer). Os princípios são normas finalísticas (pretensão mediata) baseadas na obediência de condutas que materializam um valor. Têm a “qualidade de determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento”. [17]
A função dos princípios nos ordenamentos jurídicos atuais tem sido o principal tema dos debates entre juristas. Para os que ainda analisam os princípios sob uma ótica positivista, aqueles atuam de forma supletiva e subsidiária. No entanto, a vertente pós-positivista fala de uma concepção principial do direito, devido à transformação dos princípios em normas-valores nos textos de constituições contemporâneas. Tornam-se, enfim, fundamento de toda ordem jurídica e critérios de interpretação do próprio texto constitucional. [18]
Os princípios jurídicos tornaram-se normas-valores a partir de sua inserção nos textos constitucionais. São parâmetros que regulam todas as atividades de um determinado ordenamento jurídico (especificamente). Os princípios bioéticos tiveram origem em valores reconhecidos amplamente no estudo das áreas biomédicas. Estes são diferentes dos princípios jurídicos por não serem absolutos a priori. São considerados relativos (conseqüentemente respeitados de forma relativa) e carecem de um estudo de caso.
1.2 PRINCÍPIOS BIOÉTICOS
O neologismo “bioética” foi publicado pela primeira vez, na língua inglesa, no livro Bioethics: bridge to the future, publicado em 1971 e de autoria do oncologista e biólogo Van Rensselaer Potter. O termo “bioética” serviria como referência das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida. Seria uma ciência que garantiria a sobrevivência do homem face aos efeitos de sua atividade no planeta (uso indiscriminado dos recursos naturais, destruição da fauna e flora, o superaquecimento global, etc). [19]
Gradualmente, as questões referentes ao meio ambiente foram deslocadas para núcleos específicos. Porém, era inquestionável a preocupação da atividade humana sobre sua própria espécie. Assim, o termo bioética, de acordo com a Encyclopedia of Bioethic, passou a ser considerado o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais. [20]
Durante o século XX fomos testemunhas de uma Revolução Biotecnológica. Temas como clonagem, reprodução assistida, eutanásia, aborto, entre outros, saíram dos núcleos estritamente acadêmicos e começaram a fazer parte do cotidiano. Tornaram-se uma realidade palpável e de interesse do homem comum.
Com o fim do regime nazista houve a divulgação de diversas práticas biomédicas que ameaçavam valores internacionais (o respeito à vida, à pessoa e sua dignidade, por exemplo). O Governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. Foi estabelecido, como objetivo principal da Comissão, identificar os princípios éticos “básicos” que deveriam conduzir a experimentação em seres humanos, o que ficou conhecido como Belmont Report.
O Relatório Belmont, divulgado em 1978, apresenta os princípios éticos, considerados básicos, que deveriam nortear a pesquisa biomédica com seres humanos: o princípio do respeito às pessoas; da beneficência e da justiça.
Um ano depois Beuchamp e Childress escreveram o livro Principles of biomedical ethics. Esta obra foi um marco importante na Bioética na medida em que lhe apresentava uma linha de princípios conhecida como Principialismo. De acordo com a análise dos autores, os problemas nas áreas biomédicas devem ser analisados a partir de quatro princípios não-absolutos: respeito à autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça. [21]
Conforme Fernando Lolas, a autonomia é conceituada como a independência em relação a controles externos e capacidade para atuar segundo uma escolha própria. A autonomia só pode ser evidenciada quando há uma escolha, uma decisão. Porém, o seu exercício carece das informações pertinentes aos efeitos das opções que podem ser tomadas. Neste caso, a autonomia estaria viciada por uma falta de capacidade da pessoa. A falta de capacidade certamente não se limita à educação ou escolaridade. Estende-se a todo tipo de situação a qual é prejudicada: a intencionalidade dos atos; a compreensão que o agente tem deles e a ausência de coerções ou limitações.
Sua relação com o respeito à autoridade e a obediência social é tranqüila e não-contraditória. Ocorre que, podemos limitar o exercício de nossa autonomia. Neste sentido, a autonomia é limitada pela necessidade do convívio social, pela comunhão de uma crença, por outras pessoas, entre outros.
Na Bioética, é fundamental a autonomia das pessoas como agentes morais capazes de decisões informadas. De acordo com Clotet e Feijó, o respeito à autonomia aceita a autodeterminação da pessoa e sua capacidade em decidir o que ela entende ser o melhor para si [22].
São nas regras de conduta que os princípios são praticados. Estes são traduzidos em atitudes como “respeitar a privacidade dos outros”, “dizer a verdade”, “fornecer informação fidedigna”, “pedir permissão para intervir no corpo das pessoas”. [23]
A Autonomia da pessoa é gradativamente diminuída na medida em que esta, sendo inserida como pólo hipossuficiente de uma relação, tem sua autodeterminação debilitada. As causas dessa hipossuficiência podem ser de ordem psicológica, econômicas ou sociais. Charlesworth expõe claramente que
Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se autônomo se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública. Da mesma forma, a assistência à saúde básica é uma condição para o exercício da autonomia. [24]
A tradução mais clara desse princípio é “não causar danos intencionais”. É uma das premissas mais difundidas na ética médica e remete à idéia hipocrática de “primeiro, não causar danos”.
Sugere-se que a não-maleficência é um aspecto da beneficência, devido a uma aparente proximidade entre a atitude de “não causar danos” e “fazer o bem”. [25] Porém a diferenciação entre os princípios citados deve se basear no conceito apropriado de dano ou mal. A dificuldade desta cisão está na diversidade de pontos de vista das diversas doutrinas e crenças. Um exemplo desta diversidade reside na medicina grega, juridicidade de Roma e o contexto religioso. Para os gregos a maldade era tida como a contrariedade à ordem da natureza. Já os romanos, com suas tradições jurídicas, o mal era o contrariava a lei. E no contexto religioso, o mal é o que transgredia a ordem divina. Devido a esta imprecisão de conceito a não-maleficência deve ser especificada de acordo com o contexto a que se insere. Em algumas situações podem ser refletidas em atitudes de “não matar”, “não causar sofrimento” ou “não ofender”.[26]
A beneficência implica numa obrigação moral de agir em benefício dos outros. E esta idéia vai além. Deve ser analisada sob uma perspectiva de resultado, e não limitada às etapas ou procedimentos. Neste contexto devemos levar em conta a utilidade do resultado. Realizaremos um balanço sobre os efeitos positivos e negativos sobre a pessoa. A beneficência sempre será obedecida quando os efeitos positivos forem maiores que os negativos. [27]
Na prática, especificamente na área da saúde, a beneficência obriga os médicos a usar todas as habilidades e conhecimento técnicos a serviço do paciente, maximizando benefícios e minimizando riscos. [28]
As regras de conduta baseadas na beneficência são expressas em normas positivas, ou seja, textos que obrigam a realizar certos atos (diferente da não-maleficência, a qual somos proibidos de realizar outros).
Historicamente a beneficência se sobrepunha à autonomia nos casos de enfermidade. O “estar doente”, é caracterizada também como uma dependência e a necessidade de buscar ajuda competente. O enfermo se submete aos médicos e é liberado de seus compromissos sociais (esperando-se que faça o possível para curar-se). A prática da beneficência sem autonomia denomina-se paternalismo. Apesar desta palavra indicar uma ação (ex.: intervenção médica) existe uma forma de paternalismo passivo que consiste em não fazer o que deseja um enfermo para protegê-lo de si mesmo. Nestes casos, é flagrante um conflito entre os princípios da autonomia e da beneficência.
A justiça é um conjunto de ações que visa tratar os iguais de modo igual e os iguais de modo desigual. Formalmente utiliza-se da eqüidade, porém não determina sob que pressupostos deve ser aplicado o princípio. No plano material expõe indagações sobre “o quanto deve receber cada pessoa na medida de seu merecimento”. Normalmente a justiça é vista de forma distributiva, na medida em que ocorre uma “distribuição ponderada, equilibrada e apropriada dos bens e deveres sociais, baseada em normas que detalham o sentido e o fim da cooperação social”. [29]
A inquietação no plano material reside quanto à explicação de regras práticas como: “dar a cada um segundo sua necessidade”, “dar a cada um segundo seu mérito”, “tratar todos da mesma forma”. A delimitação sobre as necessidades, mérito e limitações de cada será tão variável quanto forem os partícipes de determinada relação.
Ao Direito, coube a tarefa de mediar as novas relações existentes (relação médico-paciente, exercício da autonomia e da paternidade, direitos de personalidade, etc). Por isso, a ciência jurídica deve se valer de uma interdisciplinariedade, utilizando-se de uma linguagem de ampla extensão semântica, capaz de canalizar as exigências axiológicas fundamentais da comunidade, tanto na Bioética quanto no Direito. [30]
Uma das tentações do discurso Bioético é enfrentar o legalismo a que constantemente se vê tentado. De uma maneira geral, no âmbito jurídico, quando existe uma lei ou norma legal que regulamenta algo, toda a reflexão sobre o tema é irrelevante. Este tipo de conduta afasta as reflexões ulteriores e extingue o caráter problemático do tema. [31]
Os princípios intermediários são evidenciados na medida em que servem como “língua franca”, permitindo assim, a comunicação entre membros de distintas comunidades morais.
1.3 DIMENSÕES DA DIGNIDADE HUMANA
A dignidade da pessoa humana é um princípio que é inerente ao ser humano, vinculando-o a direitos e deveres que deve ser respeitado por todos para que sejam garantidas as condições básicas para uma existência saudável. Conforme nos ensina Sarlet, a dignidade humana é
A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um plexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [32]
A dignidade da pessoa humana foi recepcionada na Constituição em seu art. 1°, inciso III, como forma de reconhecer o valor que cada ser humano possui a partir de sua existência.
Diante da importância do princípio da dignidade surgem reflexões sobre a hierarquização dos direitos fundamentais advindos dos princípios. A título de Direito Comparado, a Corte de Apelação de Paris reconheceu que o direito à moradia expressa de tal forma o princípio da dignidade, que este restringe o direito de proprietários de imóveis (sobre seus possuidores). O Tribunal Constitucional de Portugal (através do Acórdão n° 349/91) considerou inconstitucional a penhora da pensão em demanda executiva. No Brasil, O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul declarou como impenhoráveis os rendimentos oriundos de locativos, quando estes, à falta de outros rendimentos substanciais, assumem cunho alimentar. Em ambas as situações, os entendimentos dos magistrados são norteados por um juízo de valor entre os direitos envolvidos. E um fator relevante é a participação que cada bem jurídico possui na promoção ou proteção da dignidade da pessoa.
Nos casos citados, considerou-se que os direitos à moradia e alimentos estavam numa escala de valores superior aos direitos de propriedade e creditícios. Esta escala de valores sugere uma hierarquização dos princípios. Esta atitude não visa a destituição de diretos fundamentais “menos importantes”, e sim, salvaguardar direitos que são intimamente necessários à consecução de uma vida digna para a pessoa.
A Dignidade Humana possui características distintas frente ao Estado e à comunidade. De um lado, ela implica em uma garantia negativa (não-fazer), em que o Estado é obrigado a limitar suas atividades em respeito à dignidade pessoal. Do outro, origina uma garantia positiva (fazer), exigindo daquele a proteção, promoção e realização concreta de uma vida digna para todos.
Os órgãos, funções e atividades estatais estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa, que impõe a eles o dever de respeito e proteção, que se estende também a terceiros. Todos são obrigados a regular as suas atividades para que não ocorram ingerências à dignidade pessoal do particular. Assim, o princípio da dignidade humana impõe deveres tanto de abstenção, quanto de efetivação (garantias negativa e positiva respectivamente).
As entidades privadas e particulares também estão vinculadas ao princípio da dignidade. Apesar da responsabilidade pela construção de uma ordem jurídica (que atenda às exigências do princípio) ser do legislador e órgãos estatais, é necessário que a ordem comunitária também esteja atenta para questões que podem ferir a dignidade pessoal. Este princípio possui natureza igualitária e exprime uma idéia de solidariedade entre as pessoas que compõem uma comunidade, vinculando todos os seus integrantes.
O princípio da dignidade humana, de certo modo, pode ser considerado um “sobre-princípio”, pois dele decorrem vários outros princípios. [33] Atribuímos a ele um caráter irrenunciável, diante da premissa de que a vida digna é desejo de todo ser humano. Tão irrenunciável que se exige do Estado, atitudes intervencionistas sobre atentados da pessoa contra a própria dignidade.[34]
Um dos pontos de congruência entre a Bioética e o Direito diz respeito à dignidade da pessoa humana. Esta, por sua vez, assim como qualquer um dos outros dos princípios fundamentais elencados no art. 1° da Constituição Federal de 1988, deve ser respeitado na sua integralidade. E a observância desse dever visa afastar a possibilidade de relativização, que não é apenas uma possibilidade teórica, e sim, tema presente nas ações do Estado e no meio científico.
A integralidade da dignidade da pessoa humana é atendida quando o Estado assume um dever de zelar tanto na sua dimensão autonômica quanto na assistencial.
Diante da dimensão autonômica, a decisão sobre “ter ou não ter filhos” e “o número de filhos” é de competência exclusiva do casal. Este, protegido através de um Estado que tem o dever de que se faça respeitada (por ele e por terceiros) a autonomia da pessoa, decidirá sobre estas questões de forma livre e autônoma.
A autonomia a qual o ordenamento jurídico confere ao indivíduo é a expressão do direito fundamental de liberdade. Este direito teve origem nas revoluções liberais e tem como exclusivo titular, o indivíduo. Como todos os direitos fundamentais de primeira geração, sua característica mais marcante é a sua subjetividade, pois se traduzem nas faculdades ou atributos da pessoa. São direitos de resistência ou de oposição frente à atuação do Estado. E vão além: reforçam na ordem dos valores políticos a diferenciação entre Sociedade e Estado.
São por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, na linguagem jurídica mais usual. [35]
A dimensão assistencial (ou prestacional) também é fundamental para que a dignidade seja respeitada na sua integralidade. Nesta dimensão, o Estado tem o dever de fornecer todos os subsídios necessários para que a pessoa tenha condições de manter os efeitos de suas decisões. [36] O assistencialismo estatal é subsidiário frente a hipossuficiência da pessoa, que se encontra, em condições desfavoráveis à manutenção da dignidade própria e de sua família. Daí advêm ações do Estado como a Bolsa-Escola e Bolsa-Família.
A dimensão assistencial do princípio da dignidade humana requer uma reflexão que tange os direitos fundamentais de segunda geração. Diferente dos direitos de primeira geração os direitos de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Estão ligados ao princípio da igualdade, através de uma reflexão antiliberal deste século.
Os direitos de segunda geração foram proclamados pelas constituições marxistas e pela Constituição de Weimar, ganhando fortalecimento doutrinário após a Segunda Guerra Mundial. Porém sua aplicabilidade era instável devido à falta de instrumentos processuais equiparados aos direitos de primeira geração (por exemplo: a liberdade). Esta situação se inverteu com a sua inserção nas cartas constitucionais, como por exemplo, a brasileira.
O art. 226 da Constituição Federal, em seu § 7° nos ensina que:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
A leitura do dispositivo citado reflete as duas dimensões. A dimensão autonômica quando reconhece a “livre decisão do casal” nos assuntos referentes ao planejamento de sua família e sobre o exercício de sua paternidade. E a dimensão assistencial na medida em que ao Estado compete “propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito”. A proteção de ambas as dimensões é explícita quando o dispositivo afasta qualquer “forma coercitiva” de instituições de qualquer natureza, no sentido de interferir na autonomia do casal.
A autonomia é um dos princípios bioéticos já sedimentados e, no que diz respeito às ações do Estado, este deve respeitá-la como integrante fundamental da dignidade da pessoa humana. A pessoa, na busca ou manutenção de sua dignidade, necessita ter a sua autonomia respeitada. É através dela que será assumido o controle sobre sua vida, ou mais precisamente, sobre os atos que serão escolhidos para dirimir questões provenientes de sua existência. Uma destas questões é a reprodução e, consequentemente, sua limitação.
2. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL, PLANEJAMENTO FAMILIAR E SUA DISTINÇÃO DO CONTROLE DE NATALIDADE
Muito se tem falado sobre planejamento familiar utilizando-se de uma linguagem repressora às atividades reprodutivas. Isto pois, a reprodução vem sendo tratada como uma ameaça sócio-econômica e, há quem atribui ao controle de natalidade, a característica de principal solução para deter o avanço demográfico.
A diferença entre ambas se deve à sua finalidade última. Enquanto o controle de natalidade visa uma ação puramente controladora sobre o crescimento demográfico, o planejamento familiar alia-se à autonomia da pessoa, na medida em que esta detém subsídios para o exercício pleno de seus direitos reprodutivos, através de uma paternidade responsável.
2.1 CONTROLE DE NATALIDADE ATRAVÉS DA ESTERILIZAÇÃO
A esterilização é uma intervenção cirúrgica que elimina a capacidade de reprodução [37]. No presente trabalho há de se limitar a extensão do conceito entre as atividades reprodutivas humanas.
Nos seres humanos, a esterilização consiste no ato de empregar técnicas especiais, cirúrgicas ou não, no homem e na mulher, para impedir a fecundação. A esterilização se classifica em eugênica, cosmetológica, terapêutica e por motivo econômico-social. [38]
A esterilização eugênica tem por finalidade impedir a transmissão de doenças hereditárias indesejáveis. É um tipo de conduta rechaçada pelo ordenamento jurídico. Nos termos do Constituição Federal em seu art. 3°:
“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:(…)
IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
A esterilização cosmetológica destina-se apenas a evitar a gravidez, tendo em vista que não é precedida de nenhuma indicação médica relacionada com a saúde. É o tipo de esterilização que somente leva em conta a estética, que é um valor de segunda ordem no que diz respeito à dignidade da pessoa humana.
A esterilização terapêutica está ligada à idéia de estado de necessidade ou de legítima defesa. Deste modo, um médico deve expressar através de diagnóstico o risco ao qual estaria submetido a gestante ou o futuro concepto. No Brasil, a esterilização terapêutica é aceita, mas deve ser precedida de relatório escrito e assinado por dois médicos, conforme preconiza a Lei n. 9.263/96 e a Portaria n. 144/97 da Secretaria de Assistência à Saúde. Nas palavras de Lilie:
“Até mesmo nas clínicas liberais irlandesas a esterilização somente é possível se existe risco grave para a saúde física ou psíquica da mãe, ou se há previsão de danos para o filho.” [39]
Por fim, a esterilização por motivo econômico-social visa restringir a prole das famílias, devido a condições sócio-econômicas de um dado país. É definida também como “limitação de natalidade” e necessita de uma “indicação social”. Esta é última existe quando outro filho pode produzir uma situação familiar difícil em uma família já numerosa, ou colocar em uma situação de excessiva tensão a pessoa encarregada de sua educação. [40]
A China é um dos poucos países que concebeu esta modalidade de esterilização com a finalidade de preservar o equilíbrio sócio-econômico do país, frente ao crescimento populacional exagerado. Assim, adotou a campanha "um casal – um filho". Nossa Constituição Federal veda expressamente qualquer forma coercitiva de esterilização tanto por parte de instituições oficiais como privadas. Tanto é assim que o § único do art. 2º da Lei n. 9.263/96 é enfático:
É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico [41]
A população mundial alcançou seu 1° bilhão em 1850. Em 1930 atingiu seu 2° bilhão. Ou seja, foram necessários milhares de anos para atingir o 1° bilhão, e em apenas 80 anos para duplicarmos em quantitativo populacional. No intuito de analisarmos os efeitos e soluções deste crescimento populacional, ocorreram três conferências mundiais sobre população e desenvolvimento: Bucareste (1974), México (1984) e Cairo (1994). Na primeira conferência os dados foram alarmantes e estudiosos se referiam a uma “bomba demográfica”. Na segunda, foi a primeira constatação que, se de um lado, haviam países com um crescimento populacional desordenado (principalmente os subdesenvolvidos), de outro, haviam aqueles que sofriam de um déficit populacional (desenvolvidos). [42]
A Conferência do Cairo foi marcada por um consenso internacional em questões relacionadas aos direitos reprodutivos, planejamento familiar e controle de natalidade. Dentre os pontos mais importantes há de se destacar o reconhecimento da existência de um direito humano sobre o planejamento da natalidade; a decisão de que o planejamento de natalidade não pode ser realizado por intermédio do aborto e esterilização; a urgência no tocante à superação da pobreza estrutural no mundo e a mudança no comportamento de consumo dos países do Hemisfério Norte; a necessidade de prover melhor formação básica à mulher e melhorar sua posição em todos os aspectos; a urgência de planos especiais de ação com o escopo de proporcionar o planejamento de natalidade; e finalmente, uma preocupação mútua no tocante à “saúde da reprodução”. Esta última, de acordo com o plano de ação do Cairo significa
“Direito à informação e acesso a métodos seguros, baratos e inofensivos para a regulação da fertilidade, bem como o direito a serviços adequados de saúde que proporcionem à mulher uma gravidez e parto seguros e ajudem os pais a ter um filho saudável.” [43]
Também fazem parte deste conceito toda questão referente a reprodução humana tais como educação sobre a sexualidade, doenças venéreas, gravidez, etc.
A problemática acerca do crescimento populacional foi estudada pelo economista e demógrafo inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834). O cientista inglês criou a teoria de contenção demográfica (conhecida com malthusianismo). De acordo com Pessini e Paul de Barchifontaine, a tese é a de que
“É impossível alcançar o bem-estar geral sem contenção demográfica, pois o crescimento demográfico é sempre maior que a produção de bens: a produção de bens cresce em proporção aritmética e a população, em proporção geométrica.”
As teses malthusianas se limitavam apenas a demonstrar a desproporcionalidade entre o crescimento demográfico versus disponibilização de alimentos [44]. Os autores contrapõem esta teoria, pois, contrariamente do que havia sido previsto por Malthus, a humanidade nunca dispôs de tantos bens materiais. E a principal causa da carência de recursos básicos se deve à má distribuição destes.
“Pessini e Paul de Barchifontaine afirmam que apesar das crises populacionais, a chamada “bomba demográfica” é um mito baseado em uma ideologia do “imperialismo contraceptivo” que em sustenta a concepção de que “uma população menos numerosa permite realizar uma melhor economia”. Porém a densidade populacional não é necessariamente a causa original da fome e da pobreza quando se leva em conta o potencial existente na produção alimentar e os o desenvolvimento dos recursos. Na esteira dos autores: “o imperialismo contraceptivo impôs aos novos povos e às culturas toda forma de contracepção, esterilização ou aborto julgado “eficaz”, sem nenhum respeito pelas tradições familiares, étnicas ou religiosas de uma determinada população ou cultura.””[45]
E vão além. Afirmam que o choque negativo do imperialismo contraceptivo poderia ser superado com a aceitação de que crescimento populacional não é o fator determinante dos problemas econômicos, e sim, a falta de justiça econômica, fruto de um desenvolvimento centralizado. Um comparativo entre a França e o Brasil, os autores revelam que não há relação direta entre o crescimento demográfico e os problemas econômicos. Enquanto que, em 1990, a densidade demográfica na França era de 103 hab./km², o Brasil estava na marca dos 17 hab./km².
Os autores concluem que a fertilidade deve ser encarada como um sinal de saúde e não de doença. Por isso a importância do desenvolvimento de um planejamento familiar pautado na medicina sanitária (com a finalidade de diminuir a taxa de mortalidade relacionadas à reprodução), paralelamente ao fornecimento de informações por parte dos profissionais médicos e do Estado. Somente desta maneira haverá a comunhão entre os direitos reprodutivos, autonomia e a conseqüente paternidade responsável.
No Brasil, o tema vem sido discutido principalmente no que tange às condições subjetivas para a esterilização.
O Projeto de Lei n° 7020/2002, de autoria do então deputado federal Wigberto Tartuce (PPB/DF), dispunha sobre a permissão da “esterilização voluntária”. O projeto tinha como finalidade proporcionar o acesso aos meios eficazes de esterilização às mulheres de baixa renda. Para tanto, exigia-se apenas a capacidade civil e a manifestação de vontade em documento escrito. [46]
Podemos citar também o Projeto de Lei n° 207/2003, da deputada Almerinda de Carvalho (PMDB/RJ), que visa a redução da idade mínima exigida para esterilização, de vinte e cinco anos (nos termos do inciso I, art. 10 da Lei 9.263/96) para vinte e um anos. [47]
Analisando os projetos abordados, identificamos que há um imediatismo no que tange às políticas populacionais. Os autores de projetos e (ou) dos discursos análogos buscam a melhoria das condições sócio-econômicas do público de baixa renda mediante o processo de esterilização e relegam a um segundo plano a dimensão prestacional do Estado no sentido de prover os recursos básicos para que a pessoa exerça sua autonomia.
Conclui-se que, ao evitar a discussão acerca da disponibilização de meios para o exercício da autonomia, teriam uma finalidade de controle populacional, na premissa de que a falta de recursos por parte das famílias de baixa renda é a causa primária do aumento de problemas sociais. E esta visão distorcida e limitada da realidade social faz com que os adeptos desta corrente assumam um posicionamento contra legis em relação ao disposto no parágrafo único do art. 2° da Lei n°9.263/96:
É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico.
E ainda o art. 12:
“É vedada a indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica”
Conforme análise do art. 4° convém lembrar que o Estado se responsabiliza quanto a implementação de ações de ordem preventivas e educativas para a regulação da fecundidade. Essas ações visam o fornecimento de todas as informações necessárias para que o controle da prole seja uma opção da pessoa, respeitando sua autonomia [48].
Na esteira da promoção da autonomia, o art. 5° segue:
“É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar.” (grifo nosso)
Diante dos dispositivos citados, é explícito a relevância da autonomia da pessoa no tocante à autodeterminação na interrupção de sua capacidade reprodutiva. Porém a autonomia da pessoa somente é realizada quando a esta é assegurada condições de uma relação equânime com os médicos e o Estado. E a problemática se acentua quando a ideia de “Controle Demográfico” tem como público-alvo pessoas que se viram privadas de educação. [49]
Oportunamente, informamos que a hipossuficiência da pessoa não deve ser medida exclusivamente devido à sua fragilidade econômica ou social. Deve ser entendida também como qualquer debilidade psicológica, emocional, física, etc.
As famílias de baixa renda são sistematicamente colocadas como objeto de uma ciência (ou, “falta de ciência”, tecnicamente falando) propagadora do imediatismo de um pensamento tipicamente neoliberal. Assim, confere-se aos excluídos o ônus de sua exclusão, ao invés de proporcionar-lhes os recursos necessários ao exercício livre de seus atos e a capacidade de se autodeterminar.
Comentando a prática da esterilização de 129 mulheres realizada por cinco cirurgiões em 1996, ano das eleições municipais (porém alegando ser antes da promulgação da Lei de Planejamento Familiar), o Conselheiro do CFM, o sr. Pedro Magalhães Chacel, emitiu parecer no qual considerava-se que “as lesões corporais sem perda de função não seriam consideradas atos criminosos”. Estimava-se que antes da regulamentação desta prática por parte do poder legislativo, havia cerca de 15 milhões de mulheres esterilizadas. Àquela época, o único instrumento para regularização desta prática era o Código de Ética para os profissionais de medicina. Assim, a prática era consentida pela sociedade, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. [50]
Em resposta ao parecer, o advogado Roberto Lauro Lana, contrapôs as razões do parecerista. Disse que as eleições daquele ano ocorreram em setembro, quando a Lei de Planejamento Familiar já tinha sido promulgada. Na premissa de que “a ninguém é lícito escusar-se de cumprir a lei por alegar desconhecê-la” o crime foi efetivamente praticado e previsto criminalmente sob o inciso III, § 2° art. 129, o Código Penal (lesões corporais grave por perda ou inutilização de membro, sentido ou função).
Apesar da importância que é conferida ao tema, o Estado tem sistematicamente recuado de suas obrigações (definidas pela Constituição) como provedor de assistência à saúde dos brasileiros. Contribuem ainda para o agravamento e a consolidação do estado atual, aspectos da cultura médica marcados por um exagerado intervencionismo sobre o corpo da mulher, os quais, aliados à desinformação destas mulheres, comprometem de forma definitiva o princípio da autonomia nas escolhas de cada pessoa. Desta forma, não há planejamento familiar.
3. O PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO EXERCÍCIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL:
O planejamento familiar é tema cotidiano, haja vista a freqüente abordagem da imprensa acerca de temas tais como mortalidade infantil e materna, aborto, esterilização, reprodução assistida ou outros relacionados à procriação. Além da imprensa, o Estado também reconhece a importância da matéria, que é tratada em dispositivos constitucionais e infra-constitucionais. Um exemplo deste reconhecimento foi a Lei n° 9.263 de 12/01/96, que regulamenta o art. 226, § 7° da Constituição Federal e trata do planejamento familiar à luz do respeito da dignidade da pessoa humana em sua integralidade.
Conforme art. 2° da Lei 9.263, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole da mulher, pelo homem ou pelo casal.
Uma problemática emergente na aplicação desta lei, objeto central desta pesquisa, é em que medida a integralidade da dignidade da pessoa humana é respeitada em sua integralidade frente às ações de planejamento familiar, quanto à diminuição da prole.
Como vimos no capítulo anterior, o Estado deve respeitar a dignidade da pessoa humana. Para tanto, este princípio foi incluído (normatizado) na Constituição Federal de 1988. Dentre as aplicações deste direito fundamental, podemos afirmar que a constituição e manutenção do núcleo familiar são atividades humanas intrínsecas e que, por isto, a esta ação natural deve ser estendida à dignidade da pessoa humana.
Frente à explosão demográfica e a consequente situação sócio-econômica desfavorável a qual se encontram as famílias de baixa renda, surgem indagações acerca da possibilidade de desenvolvimento de programas de esterilização. Tais programas teriam a finalidade de proporcionar o bem-estar das famílias através de melhorias na saúde das mulheres e das crianças e a plena vivência da sexualidade.
Os defensores da implantação destes programas elencam uma série de argumentos [51] que justificariam a aceitabilidade de um controle de natalidade. Dentre os quais podemos destacar a falta de alimentos, a pobreza e a escassez de recursos.
Sobre a falta de alimentos, uma pesquisa realizada pela FAO [52] demonstrou que, se a terra cultivável dos países em desenvolvimento fosse aproveitada de maneira plena, haveria alimentos para 18 bilhões de pessoas, o equivalente ao triplo da população mundial;
Já em relação à pobreza, pode-se verificar que não é fator determinante, pois os países mais desenvolvidos são os mais populosos. Bons exemplos são o Japão, com 840 hab./km², e as nações européias, com 213 hab./km². Já a média populacional dos países em desenvolvimento é de 55 a 80 hab./km², para América Latina e a África, respectivamente.
Sobre o argumento da escassez de recursos só deve ser levado em conta quando se trata dos recursos básicos de subsistência. Não há de se dar relevância quando é considerada “falta de recurso” a oportunidade de fornecer qualquer outro bem que não seja efetivamente essencial para que se exerça uma paternidade responsável e concorra para a formação de cidadão.
O crescimento populacional desordenado contribuiu para o agravamento dos problemas relacionados à alimentação, habitação, saúde, qualidade de vida, educação, transporte, segurança, entre outros. Deste fenômeno social emergiu a idéia de controle de natalidade.
O controle de natalidade visa “reduzir o crescimento demográfico como meio de diminuir a pobreza”. O planejamento familiar, em tese, reflete um diferencial fundamental do simples controle de natalidade: a idéia de fertilidade regulada e do controle da vida reprodutiva e sexual, através do provimento de informações sobre as opções a serem tomadas para a satisfação das necessidades sexuais. Deste modo, o controle de fertilidade não tem a finalidade de extinguir a pobreza, mas sim, suscitar no cidadão o exercício consciente de suas atividades reprodutivas, frente às suas capacidades e limitações.[53]
Em 1968, foi realizado em Teerã, um encontro da Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, onde foi reconhecido o direito humano básico de controlar a gravidez. Esse direito visa resguardar aos pais a decisão livre e com responsabilidade quanto ao número de filhos e ao espaçamento das gestações e o direito à adequada educação e informação a esse respeito.
No Brasil, em 1965, foi criada a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM), que visava a formação de profissionais de saúde para a prática de planejamento familiar. Esta sociedade era financiada pela International Planned Parenthood Federation (IPPF), criada em 1952, em Londres, e visava um controle demográfico, portanto restritivo às liberdades procriativas das mulheres ou dos casais. Por isso, o BEMFAM desenvolvia profissionais para que exercessem uma ação negativa, no sentido de limitar a reprodução e prestar assistência direta nas práticas de intervenções contraceptivas. [54]
Ainda de maneira favorável à limitação reprodutiva, o governo criou o Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC). Esta instituição consolidou uma ideologia intervencionista no meio médico, devido aos seus financiamentos no sentido de fomentar a atuação de profissionais da saúde nas práticas de laparoscopia e distribuindo material contraceptivo (os quais eram importados com isenção de impostos fundamentando-se na utilidade pública). [55]
O Ministério da Saúde, durante a década de 70, implementou o Programa de Saúde Materno-Infantil, no qual o planejamento familiar figurava discretamente com o nome de paternidade responsável. Em 1977, havia o Programa de Prevenção de Gravidez de Alto Risco, com o objetivo de controlar o nascimento de pobres e negros. Este foi arquivado devido às reações da imprensa, partidos políticos, igreja e formadores de opiniões em geral. Em 1983, foi instituído o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (onde se incluía a fase reprodutiva).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1986 divulgou dados provenientes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) em que atestavam que 27% das mulheres em união, que usavam algum método de controle de fecundidade, estavam esterilizadas cirurgicamente. Uma diferença espaçosa do percentual de países como a França (6%), Inglaterra (7%) e Itália (4%). [56]
O planejamento familiar foi consagrado através do art. 226, § 7° da Constituição Federal de 1988. Através do dispositivo foi reconhecido o direito à autonomia e a paternidade responsável, em que ao Estado cabe a tarefa de fornecer condições para que o casal tenha condições de decidir todas as questões relativas à procriação.
O planejamento familiar não se volta ao problema da eugenia, ao controle demográfico
para evitar ameaças econômicas e políticas, ao fato de a mulher estar no mercado de trabalho, mas está fundado no direito à saúde e à liberdade e autonomia do casal na definição do tamanho de sua prole e na escolha da oportunidade que entender mais apropriada para ter filhos. A responsabilidade pela paternidade é do casal e não do Estado (CC, art. 1.565, parágrafo 2°).[57]
A primeira vez em que houve uma clara formulação da idéia de direitos reprodutivos e sexuais foi na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, organizada pela ONU e sediada no Cairo, em 1994. Um ano depois, na Conferência de Beijing foi confirmada a seguinte formulação:
Os direitos reprodutivos incluem certos direitos humanos que já estão reconhecidos nas leis nacionais, nos documentos pertinentes das Nações unidas aprovados por consenso. Esses direitos firmam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número de filhos, o espaçamento dos nascimentos e o intervalo entre eles, e a dispor da informação e dos meios para tanto e o direito a alcançar o nível mais elevado de saúde sexual e reprodutiva (…) A promoção do exercício responsável destes direitos de todos deve ser a base principal das políticas e programas estatais e comunitários na esfera da saúde reprodutiva, incluindo o planejamento familiar[58] (grifo nosso)
Esse documento trouxe algumas assertivas que fortaleceriam o estudo sobre o exercício da autonomia e a paternidade responsável: reconhece a influência da sexualidade e a relação entre homens e mulheres sobre a saúde a aos direitos da mulher; outorga ao homem a responsabilidade sobre seu comportamento sexual, fecundidade, contágio de doenças sexualmente transmissíveis, além do bem-estar de suas companheiras e a paternidade de todos os seus filhos; assegura a prestação de serviços médicos em condições de higiene e segurança nos casos de abortos legais.
Oportunamente esclarecemos que quando falamos de paternidade responsável, estamos nos referimos à adoção de medidas para que o direito à concepção e descendência seja exercido pelo casal de maneira autônoma e livre, sem a interferência do qualquer outro ente. [59] E este direito não é absoluto, pois, frente à escolha sobre questões de ordem reprodutivas, há de se reconhecer os direitos da prole e os deveres para com os interesses da comunidade. O reconhecimento destes limites harmonizará o direito à vida e o direito à liberdade do casal de planejar a família.
O planejamento familiar responsável é um direito reprodutivo, ou melhor, um direito humano básico reconhecido pela ONU, na Resolução de 1968, e pela Constituição, em seu art. 226, parágrafo 7°, sendo, com base nos princípios do respeito à dignidade humana e da paternidade responsável, um paradigma da política populacional [60]
O planejamento familiar possui um campo de abrangência mais completo que o controle de natalidade. Este tem se concretizado como políticas de simples regulação da prole e baseadas em argumentos controversos. Já o planejamento familiar se estende ao exercício integral dos direitos reprodutivos, garantindo ao cidadão a proteção do exercício de sua autonomia sobre as questões acerca do aumento ou diminuição da prole.
CONCLUSÕES
Verificou-se que os princípios, tanto bioéticos quanto jurídicos, são importantes fontes de Direito na atualidade. Através deles existe uma exteriorização de valores comuns em uma sociedade os quais devem ser respeitados por serem fundamentos que norteiam todas as atividades humanas e suas relações consigo mesmo, com o outro e com a coletividade. O respeito a essas normas axiológicas é fundamental do ponto de vista do Direito e da Bioética.
Constatamos que o princípio da dignidade humana é uma conquista dogmática que emerge com força normativa a partir do reconhecimento de que a pessoa humana possui uma característica intrínseca: a humanidade. E, em respeito a essa característica comum a todas as pessoas humanas, lhes são garantidos tanto propiciar e promover uma participação ativa e corresponsável da sua vida, quanto, proteger contra qualquer ato que retire suas condições existenciais mínimas.
Garantir a autonomia da pessoa humana é fundamental para a realização de sua dignidade. Através daquela é que concretiza a independência da pessoa frente a controles externos ou alheios à sua vontade, e, consequentemente, uma dignidade. Por isso, é dever do Estado fornecer todos os recursos necessários para que a pessoa tenha conhecimento e discernimento acerca das questões relativas à sua fertilidade e procriação.
Há uma preocupação acerca do crescimento demográfico. Esta afirmativa é verificada a partir do estudo sobre políticas populacionais em vários países, que implementaram programas de controle de natalidade através da disseminação das práticas esterilizadoras. Contudo, essas políticas se limitavam a uma atuação controladora da prole, que afinal, era o principal enfoque no seu campo de atuação.
É demonstrado que, apesar das teorias suscitadas sobre a influência do crescimento demográfico no agravamento das condições sócio-econômicas dos países, estas variantes não são absolutas. Deste modo, relacionam-se com outros aspectos como, por exemplo, a falta de uma política que garanta uma melhor distribuição de recursos. O crescimento demográfico foi desmistificado e reconheceu-se o direito reprodutivo.
Tomamos conhecimento de que a paternidade responsável deve atuar como critério diretivo sobre os direitos reprodutivos. Por esta razão, a paternidade responsável se tornou o meio pelo qual a pessoa exerce sua autonomia frente aos direitos reprodutivos que lhe são garantidos. E, neste caso, a autonomia somente é concretizada mediante ações que forneçam à pessoa as informações básicas para a uma decisão consciente e livre dos assuntos referentes à sua atividade reprodutiva, a saber: ter ou não filhos, o espaçamento entre uma gestação ou outra e a adoção de meios contraceptivos ou esterilizações. Esse é o diferencial que o planejamento familiar propõe.
Conclui-se que o controle de natalidade, por ser limitador e não prestar a assistência necessária para o exercício da autonomia, enseja na violação da dignidade humana, na medida em que nega à pessoa os subsídios para o exercício de sua autonomia e seus direitos reprodutivos.
Informações Sobre o Autor
Marcio Muniz Nascimento
Especializando em Direito Penal e Direito Processual pela Faculdades IDC. Graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisador sobre Direito Penal e Bioética. Advogado Criminal