Sumário: 1. Introdução. 2. Crime Hediondo e Cumprimento da Pena em Regime Inicialmente Fechado. 3. Crime Hediondo e Possibilidade de Progressão de Regime Prisional: o Retorno ao Tempo Penal Anterior a 1990. 3.1 O Caminho da Doutrina: Condenação à Norma de Absoluta Proibição à Progressão de Regime Prisional. 3.2 O Tortuoso Caminho da Jurisprudência até o Reconhecimento do Direito à Progressão de Regime. 3.3 Progressão de Regime e Sistema Penitenciário Progressivo. 3.4 Progressão e Princípio da Individualização da Pena. 3.5 Epílogo do Longo Embate entre Doutrina e Jurisprudência: A Adequação da LCH ao Princípio da Individualização da Pena e à Jurisprudência do STF. 4. Requisitos para a Progressão de Regime Prisional por Crime Hediondo. 4.1 Requisito Subjetivo: Bom Comportamento Carcerário. 4.2 Cumprimento de 2/5 da Pena e um Novo Conceito de Condenado Primário. 4.3. Reincidência Genérica ou Específica? 5. Crime de Tráfico Ilícito de Drogas e Progressão com Maior Rigor. 6. Nova Assimetria no Sistema Penal: O Enorme Hiato Temporal entre Progressão e Livramento Condicional. 7. Retroatividade das Normas Contidas na Lei 11.464/07: Uma Hermenêutica Conforme a Decisão do STF. 7.1 Divergências da Doutrina quanto à Retroatividade da Nova Lei. 7.2 Irretroatividade da Nova Lei Aparentemente mais Benéfica. 8. A Nova Situação JurídicoPenal em Face da Política Criminal e dos Princípios Constitucionais Penais. 9. Considerações Finais. 10. Bibliografia.
Resumo – A Lei 8.072/90 – LCH havia proibido, de forma absoluta, a progressão de regime prisional aos condenados por crime hediondo. Desde o primeiito momento, a doutrina considerou esta severa proibição juridicamente inconstitucional. A jurisprudência, no entanto, manteve a constitucionalidade da norma proibitiva até que, em fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal modificou o entendimento hermenêutico da matéria e decretou a inconstitucionalidade da proibição contida no art. 2º, § 1º, da LCH. Em resposta a essa decisão da Suprema Corte, o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.464/2007, que modificou o texto do referido dispositivo e, em conseqüência, passou a admitir o direito à progressão de regime prisional aos condenados por crime hediondo. Este é o objeto do presente estudo.
Palavras-Chave: Crime Hediondo; Progressão de Regime Prisional; Execução Penal; Política Criminal; Sistema Penitenciário; Regime Penitenciário; Pena Privativa de Liberdade; Princípio da Individualização da Pena; Princípio da Humanidade da Pena.
1. Introdução: O Gradativo Desmonte do Subsistema de Maior Severidade da Lei dos Crimes Hediondos
Não há dúvida de que a tão polêmica quanto criticada Lei Nº 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos – LCH, está morrendo aos poucos. Ao menos, sofreu diversos golpes jurisprudenciais de rejeição a algumas de suas normas de proibição absoluta. Na verdade, desde os primeiros momentos de sua vigência, inúmeras têm sido as decisões dos tribunais estaduais e federais, afastando a incidência absolutamente obrigatória de algumas de suas normas que proíbem a concessão de liberdade provisória, o direito de apelar em liberdade ou, até mesmo, a concessão de fiança.
O golpe de maior intensidade foi desferido pelo STF, no julgamento do HC 82.959/SP, ocorrido em 23.02.2006. O plenário da suprema corte, por maioria de votos, decidiu que a imposição de regime integralmente fechado e a conseqüente proibição de progressão de regime prisional, prevista no art. 2º, § 1º, da LCH, é inconstitucional por conflitar “com a garantia da individualização da pena”, consagrada no art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.[1]
Com a referida decisão da Corte Suprema, a LCH ficou reduzida a um quase que vazio normativo. Restaram poucas normas de caráter repressivo com validade e eficácia reconhecidas sem restrição pela doutrina e pela jurisprudência. Sobraram apenas normas de caráter classificatório ou programático, como o seu art. 1º, que seleciona quais os tipos penais considerados hediondos e o art. 3º, que prevê a construção e manutenção de estabelecimentos penais de segurança máxima, pelo poder público federal.
Na realidade, é preciso não esquecer que algumas normas inseridas no sistema pela LCH foram incorporadas ao Código Penal. Por isso, sua vigência não transcorre mais no texto da lei especial, mas no espaço normativo codificado e de aplicação geral. É o caso das normas que aumentaram as penas mínimas de alguns crimes hediondos e da exigência de maior tempo de pena cumprida para obtenção do livramento condicional. Estas normas foram promulgadas por meio da LCH, que apenas serviu de instrumento para inseri-las no sistema codificado vigente, do qual são agora partes integrantes e de onde somente serão modificadas ou revogadas por uma nova lei que a elas se reporte expressamente.
Mas, os golpes ao seu texto de maior severidade não foram aplicados apenas pela práxis judiciária. As leis de nº 9.455/1997 – que define os crimes de tortura – e a de nº 11.343/2006 – que define os crimes de tráfico ilícito e as modalidades típicas que lhe são equiparadas ou associadas – também alteraram, restringiram ou revogaram a incidência de algumas das normas de maior severidade da LCH.
A Lei contra a Tortura, contrariamente ao que dispunha a LCH, passou a admitir a progressão de regime prisional. O condenado pelo crime de tortura, embora deva iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, pode progredir para o regime semiaberto e, posteriormente, para o aberto, antes de obter o livramento condicional.[2]
Já a nova Lei Antidrogas, a nosso ver, disciplina a matéria relacionada aos crimes de tráfico e de porte para consumo pessoal de droga de forma própria, seja em termos penais ou processuais penais. Muitas de suas normas reiteram e outras divergem das normas contidas na LCH. Em conseqüência, cremos que o crime de tráfico e os que lhe são equiparados ou associados, por terem recebido tratamento jurídicopenal próprio, já não gravitam mais no espaço normativo da LCH.[3]
Recentemente, a LCH foi objeto de mais uma modificação substancial em seu texto normativo de maior severidade penal. Trata-se da nova Lei Nº 11.464/2007, que dispõe sobre o regime prisional a ser aplicado aos condenados por crimes considerados hediondos.
O presente artigo tem por objeto o estudo deste novo texto legal e o exame crítico da principal mudança introduzida no subsistema punitivo da LCH: direito à progressão de regime prisional e das conseqüências jurídicopenais daí decorrentes.
2. Continua a Proibição de Concessão de Anistia, Graça ou Indulto
Em seu preâmbulo, a Lei 11.464/07 justifica a razão de sua aprovação: dar “nova redação ao art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição Federal”. Em seu art. 1º, a nova lei modificadora dispõe que o referido art. 2º, da LCH, passa a vigorar com nova redação. Sem repetir a redação original do caput e, utilizando-se de reticências, omite o texto original do inciso I e transcreve somente o inciso II, empregando apenas o termo fiança.
Em seguida, a nova lei dá nova redação aos parágrafos 1º, 2º e 3º, do art. 2º, da LCH.
Á primeira vista, parece que, com a alteração, o novo texto legal teria revogado o inciso I, do art. 2º, da LCH. Apesar de se poder conduzir o processo interpretativo neste sentido jurídicopenal, não foi esta a vontade do legislador. Tanto que, do texto oficial remanescente e agora em vigor, consta expressamente a proibição de concessão de anistia, graça e indulto aos condenados por crime hediondo, proibição esta que consta do texto original desde a promulgação da LCH.
De qualquer forma, é preciso ressaltar que o legislador não foi feliz ao manter esta prescrição proibitiva, de forma absoluta. Não se deu conta o legislador de que a anistia, a graça e o indulto são institutos penais benéficos, cuja competência é, constitucionalmente, acometida ao Poder Legislativo, na primeira hipótese e ao Chefe do Poder Executivo, nas duas outras hipóteses. Por isso, a referida norma padece de eficácia normativa, pois não é admissível que uma lei ordinária, como é o caso da LCH, tenha o poder de extinguir competência políticojurídica estabelecida pela Lei Maior.[4]
Apesar de continuar a proibição expressa de concessão destes três institutos penais benéficos e humanizadores do Direito Penal, a verdade é que, anualmente, têm sido concedido indulto para condenado por crime hediondo acometido de grave e irreversível quadro de doença terminal. Quanto à anistia, por sua natureza e fins essencialmente políticos, não teria mesmo como ser aplicada para beneficiar o autor de um crime hediondo. Já a graça, há muito caiu em desgraça ou no desuso.
Isto demonstra que a proibição contida do inciso I, do art. 2º, da LCH revela-se inócua. Por isso, melhor seria que o legislador tivesse aproveitado a oportunidade para revogar uma norma que não apresenta aderência constitucional, por contrastar com normas ali positivadas.
3. Condenado por Crime Hediondo e Progressão de Regime Prisional
3.1. Mudança Significativa: Regime Inicialmente Fechado
Com a alteração promovida pela nova lei, o texto do § 1º, do art. 2º, da LCH, tem agora a seguinte redação: “a pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”. Os crimes previstos no caput do artigo são os considerados hediondos, referidos ou selecionados no art. 1º, da LCH, além da prática de tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e do terrorismo. Este último, cabe frisar, constitui uma espécie de ilícito penal sem a devida marca legal da tipicidade, por falta de norma positiva definidora dos contornos típicos desta conduta tão polêmica quanto geradora de divergências no plano éticopolítico e jurídicopenal.[5]
Ao manter a expressão tráfico ilícito de entorpecentes, o legislador esqueceu de atualizar a nomenclatura jurídicopenal do texto alterado. É que a nova Lei Antidrogas abandonou o termo entorpecente, por considerá-lo inadequado para denominar o objeto material do crime agora definido no art. 33, da Lei 11.343/2006.
A verdade é que o termo drogas é de uso corrente no discurso acadêmicocientífico. É, também, a nomenclatura preferencial da Organização Mundial de Saúde – OMS, que há muito abandonou o uso dos termos ou das expressões “narcóticos”, “substâncias entorpecentes” e “tóxicos”.[6]
Pelo novo texto legal, o condenado por crime hediondo continua obrigado a iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado. Não importa a quantidade de pena aplicada na sentença. Mas, não está mais condenado a permanecer neste regime mais rigoroso até alcançar o livramento condicional (quando for o caso!) ou a extinção da pena. Agora, poderá progredir para o regime semiaberto e o aberto.
Quanto ao cumprimento da pena inicialmente em regime fechado, cabe ressaltar que as Leis nº 9.455/97 (Lei contra a Tortura) e nº 11.343/07 (Lei Antidrogas), já adotam a mesma disposição em termos de regime de execução penal.
Duas são as condições legais para a progressão: cumprimento de parte da pena e mérito prisional. Este último requisito, é previsto no art. 112, da Lei de Execução Penal – LEP.
É o que veremos a seguir.
3.2 O Caminho da Doutrina: Condenação à Norma de Absoluta Proibição à Progressão de Regime Prisional
A mudança agora operada no texto original do art. 2º, § 1º, foi defendida por boa parte da doutrina,[7] desde o primeiro momento de vigência da LCH. Em síntese, os penalistas entenderam que esta norma – de absoluta proibição a priori – contrariava os princípios constitucionais e de maior grau de hierarquia normativa da individualização e da humanidade da pena, além dos princípios do devido processo legal e da igualdade.
Antônio Lopes Monteiro escreveu que a exclusão da forma progressiva na execução da pena aplicada aos condenados por ”crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo é um grave castigo para os condenados por estes crimes e foi uma obsessão no projeto da lei”.[8] Para Francisco de Assis Toledo, a aprovação do dispositivo em exame foi fruto “da mais completa ignorância a respeito do sistema progressivo de execução da pena adotado pela reforma penal brasileira de 1984”.[9]
Márcio Bártoli também condenou a opção legal, com o argumento de que o cumprimento de longas penas em regime integralmente fechado torna praticamente impossível a reabilitação do condenado: “Pena longa e regime fechado são elementos contraditórios à idéia de reinserção social e inúteis para tornar possível ao autor do crime uma vida futura em liberdade”.[10]
Por último, Alberto Silva Franco critica o dispositivo legal em referência por considerá-lo “um desestímulo ao processo ressocializador do condenado.” Para ele, “a opção feita pelo legislador no sentido de agravar a execução da pena foi, no mínimo, desarrazoada, infeliz”.[11]
Posteriormente, a aprovação da Lei contra a Tortura trouxe um novo e forte argumento em favor da doutrina que sustentava a derrogação do § 1º, do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos. Como o § 7º, do art. 1º, da Lei contra a Tortura, determina que o condenado deve iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, ficou claro – tanto para a doutrina como para a jurisprudência – que poderia ser concedida a progressão para o regime semi-aberto ao condenado por essa espécie de crime hediondo, pois o que a lei exige é que o processo de execução da pena seja iniciado em regime fechado.
Não havendo proibição expressa em contrário, a interpretação correta do dispositivo em tela é a de que a progressão de regime prisional pode ser concedida ao condenado pelo crime de tortura.
A divergência surgiu, quando se pretendeu estender o direito à progressão de regime prisional aos demais condenados por crime hediondo. O argumento era de que a proibição de progressão prevista na LCH havia sido revogada pelo disposto no § 7º, do art. 1º, da Lei 9.455/97. Na doutrina, a maioria dos autores sustentou a tese da derrogação do § 1º, do art. 2º, da LCH.[12]
No entanto, posição do STF e dos demais tribunais, conforme veremos abaixo, fixou-se no sentido de que esse dispositivo benéfico previsto na Lei contra a Tortura não se aplicava aos demais autores de crime hediondo.
3.3 Os Caminhos da Jurisprudência
No tocante à matéria sob exame, verifica-se que a jurisprudência percorreu outro caminho diverso daquele trilhado pela doutrina. Foi um caminho longo e tortuoso, até a votação do supramencionado HC 82.959/SP.
Cabe lembrar, no entanto, que em sua primeira decisão sobre a matéria, o STF havia rejeitado a tese de inconstitucionalidade do dispositivo penal em exame, sob o fundamento de que a CFRB conferiu ao legislador ordinário a prerrogativa de fixar, para os crimes hediondos, o cumprimento da pena em regime fechado. Ao analisar a obrigatoriedade de cumprimento da pena em regime integralmente fechado, a súmula do acórdão do Tribunal Pleno, que teve como relator o então ministro Paulo Brossard, ficou assim redigida:
“À Lei Ordinária compete fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador poderia efetivar ou a concreção ou a individualização da pena. Se o legislador ordinário dispôs, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional, que nos crimes hediondos o cumprimento da pena será no regime fechado, significa que não quis ele deixar, em relação aos crimes dessa natureza, qualquer discricionariedade ao juiz na fixação do regime prisional. Ordem conhecida, mas indeferida.” [13]
O entendimento da Suprema Corte foi adotado pelo STJ, que acabou consolidando a posição de que o condenado por crime hediondo não tem direito à progressão no regime prisional, mesmo que, na sentença condenatória,, não tenha sido utilizada a expressão “integralmente fechado”.[14]
Assim sendo, com apenas algumas decisões isoladas e marginais em contrário de tribunais estaduais ou federais, a jurisprudência manteve o entendimento em favor da constitucionalidade do § 1º, do art. 2º, da LCH, até a decisão do STF, exarada no referido HC 82.959-SP.
3.4 Progressão de Regime e Sistema Penitenciário Progressivo
Na verdade, nossa Constituição Federal e, especialmente, nosso Código e Leis de Execução Penal, seguindo a tradição brasileira e o próprio pensamento punitivo emergente das idéias político-filosóficas e jurídicas que prevaleceram a partir do início do século XIX, consagraram o sistema penitenciário progressivo. Estabelece o Código, em seu art. 33, § 2º, que as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados certos critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso.
Indiscutivelmente, o sistema de execução da pena privativa de liberdade em sua forma progressiva, permitindo que o condenado possa avançar do regime fechado para o semi-aberto e deste ao aberto, tem evitado que o rigor do penitenciarismo se torne ainda maiores. O direito à progressão constitui, sem dúvida, um forte estímulo para que o condenado se adapte e se comporte de acordo com a disciplina prisional. O prêmio virá ao final de certo período de tempo, proporcional à quantidade da pena em execução (art. 112, caput, da LEP), quando então o presidiário terá o direito de ser transferido para regime menos rigoroso.
Esta perspectiva jurídica de progressão, esta esperança de passar para o lado dos “bons”, tem contribuído seguramente para manter um mínimo de entendimento e de coexistência pacífica entre encarcerados esperançosos e o pessoal da administração penitenciária. Tem sido um fator de convivência tolerada entre os principais atores do processo executório penal – condenados e pessoal da Administração Penitenciária – e de uma cínica, silenciosa e angustiada paz prisional.
Apesar dos males inerentes ao penitenciarismo, que aqui não cabe analisar, é preciso reconhecer que o direito à progressão tem contribuído para evitar um número ainda maior de rebeliões, motins, fugas e suas tentativas, de maldades e perversidades, de psicoses e atos de violência os mais insensatos e cruéis, que marcam o cotidiano do sistema penitenciário brasileiro.
Enfim, pode-se dizer que o direito à progressão tem funcionado como uma verdadeira válvula de segurança, a impedir a implosão desta sinistra caldeira de maldade em que se transformou nosso combalido sistema penitenciário.
3.5 Progressão e Princípio da Individualização da Pena
Na verdade, ao aprovar a LCH, o legislador de 1990 ignorou o princípio da individualização da pena, previsto no art. 59 do CP e consagrado no art. 5º, inc. XLVI, da CFRB. Segundo este princípio, cada condenado deve receber a reprimenda certa e determinada para a prevenção e repressão do seu crime. O processo executório deve ficar, também, sujeito às regras do princípio individualizador, para que a expectativa de reinserção social do condenado (uma das funções da pena privativa de liberdade) não fique completamente frustrada de antemão.
Não percebeu o legislador que a execução de longas penas privativas de liberdade – em regime unicamente fechado – representa um castigo insuportável, que desmotiva o preso, para quem desaparece qualquer perspectiva, qualquer esperança de retorno à liberdade antecipada pelo seu próprio mérito prisional. Rigorosamente submetido ao cumprimento de uma longa pena neste regime, o preso se transformará num rebelde, num amotinado e num desesperançado sem dignidade e sem razão de viver.
3.6 Epílogo do Longo Embate entre Doutrina e Jurisprudência: A Adequação da LCH ao Princípio da Individualização da Pena e à Jurisprudência do STF
Após dezesseis anos de controvérsia, o STF mudou o seu entendimento sobre a matéria, ao votar o já referido HC 82.959-SP, em sua sessão plenária ocorrida em 23.02.2006. Conforme veremos abaixo, embora declarada de forma incidental, a decisão passou a ser interpretada como declaratória de inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes da norma proibidora do direito à progressão de regime prisional.
Com a mudança de entendimento do STF, tornou-se imperiosa a revogação ou, no mínimo, a alteração do mais rigoroso dispositivo (art. 2º e seus incisos e parágrafos), da LCH. A opção do legislador – mais uma vez conduzido pelo calor da emoção e do sensacionalismo, decorrente da exaustiva exposição midiática de um crime[15] que chocou a opinião pública brasileira – foi pela segunda alternativa políticojurídica.
Com a aprovação da Lei 11.464/2007, já não haverá mais qualquer divergência doutrinária ou jurisprudencial. O condenado por crime hediondo inicia, obrigatoriamente, o cumprimento da pena em regime fechado, mas encontra-se adequadamente inserido no espaço políticojurídico do sistema penitenciário progressivo. Pode, portanto, progredir se tiver, é claro, bom comportamento carcerário e cumprido parte de sua pena. O que o diferencia dos demais condenados, conforme veremos abaixo, é a obrigação de cumprimento de um tempo maior da pena para obter o direito à progressão.
Assim, pode-se dizer que a Lei 11.464/07 reflete o novo entendimento jurisprudencial do STF e dos demais tribunais, além de perfilhar dispositivos das duas leis penais que tratam de crimes hediondos: a Lei contra a Tortura e a Lei Antidrogas. Está de acordo, também, com o pensamento da doutrina penal, que sempre defendeu a tese da progressão de regime prisional. Neste tocante, cabe reconhecer que a nova lei contribui para tornar o sistema penal mais simétrico e homogêneo.
4. Requisitos para a Progressão de Regime Prisional por Crime Hediondo
4.1 Requisito Subjetivo: Bom Comportamento Carcerário
Com a nova redação, que lhe foi dada pela Lei 11.464/07, o texto original do § 2º, art. 2º, da LCH, que se referia ao direito de apelar em liberdade, foi deslocado para constituir um terceiro parágrafo. O novo texto do § 2º, dispõe sobre a progressão de regime e está assim redigido:
A progressão de regime, no caso de condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-à após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
O dispositivo em exame, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 11.464/07, prescreve que a progressão de regime “dar-se-à após o cumprimento de” (…), sem estabelecer qualquer outro requisito legal para a obtenção deste benefício penal. Cabe, portanto, indagar se, além deste requisito de ordem temporal, deve ser exigido outro, como o bom comportamento carcerário, previsto no art. 112, da Lei de Execução Penal – LEP, requisito, aliás, exigível dos demais apenados por crime não-hediondo.
Pode-se argumentar que a LCH criou um subsistema punitivo especial e autônomo, em relação ao sistema penal codificado. É, portanto, um subsistema integrado por um conjunto próprio e autônomo de normas penais criadas para o controle, a repressão e a execução penal desta categoria criminal de maior gravidade. Em decorrência, e com base na regra da interpretação restritiva da lei penal, não seria possível exigir-se outra condição legal para a progressão de regime além desta prevista expressamente no texto do § 2º, do art. 2º, da LCH.
Cremos, no entanto, que não é este o sentido do direito contido no parágrafo em exame. Aqui, o raciocínio interpretativo deve ultrapassar os limites de um processo hermenêutico puramente literal para buscar o sentido do direito com base no procedimento lógico-sistêmico. Se o Direito constitui um sistema ordenado de normas, que se completam e interagem entre si, fica evidente que estas devem ser interpretadas – para o fim de aplicação ao caso concreto – de forma sistêmica, ou seja, levando-se sempre em consideração o ordenamento jurídico como um todo.
Daí porque, mesmo que constituída por normas penais especiais, a LCH não deixa de integrar e de se subordinar ao sistema penal como um todo.
É preciso interpretar e aplicar o comando normativo contido em seu § 1º, do art. 2º, da LCH, em consonância com o disposto no art. 112, da LEP, que foi objeto de derrogação apenas em sua a parte relativa ao tempo de cumprimento da pena como requisito para a progressão de regime dos apenados por crime hediondo. No tocante ao mérito prisional, a LEP é taxativa. Estabelece que a progressão fica sujeita ao “bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”.
Assim sendo, o comando contido nessa norma executória penal somente conhecerá a validade e eficácia desejável se as autoridades penitenciárias informarem, com a necessária eficiência, sobre a vida carcerária de seus presidiários e, por outro lado, se as autoridades judiciárias dispensarem às informações da administração penitenciária uma análise que leve em consideração o direito individual do condenado à liberdade em face do princípio constitucional da segurança coletiva..
Parece-nos certo que o juiz, no entanto, não está obrigatoriamente vinculado ao atestado de bom comportamento carcerário. Poderá acatá-lo ou rejeitá-lo, se entender que as informações prestadas pelo diretor do estabelecimento prisional não se conformam com o fim maior do princípio da individualização da pena. Por isso, em casos de especial gravidade ou complexidade, cremos que o juiz deverá determinar, ainda, que o condenado seja submetido ao exame criminológico, previsto no caput do art. 34, do CP e 8º, parágrafo único, da LEP, para fundamentar a sua decisão de conceder ou não o direito à progressão.
Quanto a este polêmico exame, é preciso frisar que o STF já decidiu pela sua validade, sempre o juiz da execução fundamentar a sua necessidade, em face da gravidade e complexidade do caso. Para a Suprema Corte, se a obrigatoriedade do exame criminológico, para fins de progressão de regime, foi abolido pela Lei 10.792/03, “nada impede que, facultativamente, seja requerido o exame pelo juiz da execução.”[16] Desta forma, não obstante a imperatividade do comando normativo, o exame criminológico deve entendido como facultativo.
A comprovação do bom comportamento prisional, portanto, continua sendo requisito indispensável para a progressão de regime prisional.
4.2 Cumprimento de 2/5 da Pena e um Novo Conceito de Condenado Primário
Além do requisito do bom comportamento prisional, o condenado por crime hediondo precisa, também, cumprir parte de sua pena em regime inicialmente fechado, para alcançar o direito à progressão.
No caso de condenado primário, exige a lei o cumprimento de dois quintos da pena. Por exemplo, o condenado a dez anos de reclusão, pelo crime de homicídio qualificado, se primário, deverá cumprir mais de quatro anos em regime inicialmente fechado. Se comprovar, também, bom comportamento carcerário terá direito a progredir para o regime semiaberto.
A nosso ver, o conceito de primariedade não é o mesmo aplicável aos condenados pelos demais crimes não hediondos. Cremos que, para o fim de aplicação desta norma penal especial mais rigorosa, primário será todo aquele que ainda não tenha sido condenado por crime hediondo, no momento da prática do crime hediondo posterior e objeto da condenação posterior.
Se o crime anterior, com sentença condenatória transitada em julgado, não tiver sido classificado como hediondo, o agente, no momento da condenação por crime posterior desta espécie, deve ser considerado ainda primário. Portanto, poderá progredir de regime prisional após o cumprimento de dois quintos e não de três quintos da pena.
4.3 Reincidência Genérica ou Específica?
No caso de reincidente, o tempo de cumprimento da pena para a progressão é de três quintos. Assim, o condenado a dez anos de reclusão, deverá cumprir, no mínimo, seis anos em regime fechado para ter direito à progressão ao regime semiaberto, que somente será concedido se comprovado, também, o bom comportamento carcerário.
Uma interpretação mais colada à literalidade da dicção deste dispositivo legal pode conduzir à leitura de que a reincidência ocorrerá mesmo quando o crime anterior não tenha sido considerado hediondo. Ou seja, basta que, no momento da prática do crime hediondo, objeto da condenação posterior, o agente já tenha sido condenado por qualquer outro crime, como, por exemplo, pelo crime de furto.
Assim, adotado esse processo hermenêutico-literal o conceito de reincidência adotado pelo § 2º, do art. 2º, da LCH, teria se mantido fiel ao critério positivado no CP, que não faz distinção entre reincidência genérica e reincidência específica. Dessa forma, o condenado por crime de homicídio qualificado ou qualquer outro crime hediondo será considerado reincidente, se já ter sido condenado anteriormente por qualquer outro tipo de crime (furto, lesão corporal, calúnia, estelionato etc.).
Em conseqüência, deverá cumprir mais de três quintos de sua pena para obter o direito à progressão. Sem dúvida, esta poderá uma forma de interpretar e de aplicar este comando normativo mais severo quanto ao direito à progressão de regime prisional.
Cremos, entretanto, que o sentido mais correto de reincidência, no contexto do dispositivo legal em exame, deve ser buscado com base num processo hermenêutico não apenas literal e/ou lógico-sistemático, mas também nos princípios fundamentais do Direito Penal do Estado Democrático. Entre estes pontificam os princípios constitucionais da individualização, da humanidade da pena criminal e da razoabilidade.
Por isso, a nosso ver, o conceito de reincidência – para o fim de aplicação desta norma penal de maior rigor – não coincide com aquele descrito no art. 63, do Código Penal e aplicável ao condenado pelas demais infrações penais não hediondas. Em conseqüência, cremos que somente poderá ser considerado reincidente e obrigado a cumprir três quintos da pena antes do direito à progressão, o agente que cometer um novo crime hediondo, após ter sido condenado por um crime desta mesma espécie, aí incluídos os crimes de tortura, de tráfico ilícito e o terrorismo.
É verdade que a nova lei não utiliza a expressão “condenado por crime da mesma espécie”, como utilizou no caso do livramento condicional (art. 83, inciso V, do CP)[17]. Mas é preciso reconhecer que a LCH criou um subsistema punitivo especial ou próprio. Por isso, é válido argumentar que a reincidência, ali tratada de forma especial, refere-se à superposição de crimes catalogados como hediondos.
Cabe ressaltar que a posição hermenêutica aqui defendida parte da premissa de que, na hipótese de crime hediondo, os novos marcos de cumprimento da pena para a progressão são indiscutivelmente bastante mais severos do que o período de apenas um sexto, exigido dos condenados – primários ou reincidentes – pelos demais crimes não hediondos. Entre estes, pode estar o autor de um homicídio simples ou de um roubo qualificado por lesões gravíssimas contra a vítima. A nosso ver, esta evidente desproporcionalidade de tratamento penal deve ser flexibilizada ou amenizada em nome dos princípios da humanidade da pena e da razoabilidade e de sua regra da proporcionalidade.
5. Crime de Tráfico Ilícito de Drogas e Progressão com Maior Rigor
No tocante ao crime de “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, surge outro problema de hermenêutica: que tipos penais devem ser incluídos no âmbito de abrangência desta expressão normativa, para o fim de se exigir os prazos de cumprimento dois e três quintos da pena, com vista à progressão de regime? A questão surge à medida em que a Lei Nº 11.343/2006 – atual Lei Antidrogas – incrimina diversas condutas sem dar-lhes nomes jurídicos próprios ou distintos.
Um ponto de convergência doutrinária e jurisprudencial repousa na distinção entre o crime de tráfico ilícito e o de porte para consumo pessoal de droga. Nesta última hipótese, encontram-se incluídas as modalidades típicas de menor e de médio potencial ofensivo, previstas na Lei Antidrogas: oferecimento de drogas para consumo em conjunto (art. 33, § 3º); prescrição culposa de drogas (art. 38); e condução de embarcação ou aeronave após consumo de droga (art. 39 e parágrafo único).
Portanto, os autores dessas condutas de menor ou de médio potencial ofensivo previstas na Lei Antidrogas não estão sujeitos à norma contida no art. 2º, § 1º, da LCH e que estabelece requisitos de maior rigor para o reconhecimento do direito à progressão de regime. Aliás, o autor da infração penal de porte para uso pessoal de droga não está mais sujeito à pena privativa de liberdade. Nesta hipótese, não se pode falar sequer de progressão de regime.
No entanto, é preciso não esquecer que a Lei Antidrogas define outros tipos penais associados ao tráfico: petrechos para o tráfico de drogas (art. 34); associação para o tráfico (art. 35, parágrafo único); financiamento do tráfico (art. 36), e colaboração ao tráfico de drogas (art. 37). Em relação a estes tipos penais, seria possível argumentar-se que constituem espécies de crime de tráfico de drogas?
No tocante aos crimes de associação e de colaboração para o tráfico, parece não haver maior dificuldade para excluí-los da condição de tipos equiparados à categoria criminosa mais grave. O primeiro, durante a vigência da lei anterior, já foi objeto de decisões no sentido de que não se trata de crime hediondo.
Quanto ao crime de colaboração para o tráfico, a Lei 6.368/76 considerava-o como um dos tipos penais equiparados ao crime de tráfico (art. 12, § 2º, inciso III). Porém, a atual Lei Antidrogas deu-lhe nova redação, diminuiu a quantidade de pena e outorgou-lhe autonomia tipológica em face do tipo penal básico de tráfico ilícito, definido no caput, art. 33, dessa lei repressiva especial. Deixou, por isso, de ser um dos tipos penais equiparados ao tráfico ilícito de drogas.
Não se tratando propriamente de crimes de “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, a estes dois tipos penais relacionados, mas não equiparados ao crime maior de tráfico ilícito, não se aplica a norma de maior rigor quanto à progressão de regime, prevista no § 1º, do art. 2º, da LCH.
A nosso ver, apenas os tipos penais definidos no art. 33, caput e suas modalidades típicas previstas no § 1º, incisos I a III (tipos penais equiparados ao tráfico), além dos crimes previstos nos arts. 34 (petrechos) e 36 (financiamento), da Lei 11.343/2006, é que podem ser enquadrados na denominação jurídicopenal “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”.
Em conseqüência, somente os condenados por estes tipos penais ficam sujeitos ao cumprimento de três quintos da pena, como requisito objetivo para alcançar uma possível progressão de regime.
6. Nova Assimetria no Sistema Penal: O Enorme Hiato Temporal entre Progressão e Livramento Condicional
O reconhecimento do direito à progressão de regime para condenados por crime hediondo, acabou por criar mais uma incômoda assimetria em nosso já desordenado sistema punitivo. Antes da Lei 11.464/07, como a LCH não admitia o direito à progressão, considerava-se “lógica” ou “razoável” a exigência do cumprimento de dois terços da pena, no caso de condenado primário – ou seja, de condenado “não reincidente específico em crimes desta natureza” – para a obtenção do livramento condicional, nos termos do art. 83, inciso VI, do CP.
Tratando-se de reincidente específico em crime hediondo, a lei penal não admite a idéia de concessão de livramento condicional.
Com a nova situação – e no caso de ser concedida a progressão de regime prisional – parece-nos despida de lógica jurídica a permanência do condenado durante um longo tempo nos regimes semiaberto e aberto para que lhe seja concedido o direito ao livramento condicional. A situação se torna ainda mais desarrazoada em relação ao condenado reincidente específico por crimes hediondo, que agora poderá progredir de regime e, no entanto, não terá direito ao livramento condicional.
Esta inconveniente assimetria, agora inserida em nosso sistema punitivo, revela-se ainda mais despropositada no caso de progressão após o cumprimento de um sexto da pena, direito assegurado a partir da referida decisão do STF. Como conseqüência, o apenado por crime hediondo cometido antes da Lei 11.464/07, permanecerá um longo tempo de cumprimento da pena em regime aberto, que estará ocupando a função e o espaço penal reservados ao livramento condicional.
7. Retroatividade da Norma Contida na Lei 11.464/07: Uma Hermenêutica Conforme a Decisão do STF
7.1 Divergências da Doutrina quanto à Retroatividade da Nova Lei
Esta questão está dividindo a doutrina.[18] Boa parte dos doutrinadores entende que a nova lei, aparentemente mais favorável ao infrator, é na verdade mais severa. Portanto, sua eficácia retroativa, consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, deve ser afastada, Não sendo norma penal mais benéfica, não pode ser aplicada aos casos pretéritos, mas tão somente aos crimes cometidos a partir de sua vigência, em 29 de março de 2007.
Em síntese, esta corrente doutrinária entende que a decisão do STF, que julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime, contida na versão original do § 1º, do art. 2º, da LCH, tem eficácia erga omnes e que, portanto, garantiu o direito a este benefício executóriopenal a todos os condenados por crime hediondo, a partir de 23.02.2006. Os requisitos, legalmente exigidos para a concessão da progressão, são os previstos no art. 112, da LEP, ou seja, bom comportamento carcerário e cumprimento de um sexto da pena.
Como a nova lei passou a exigir, no mínimo, dois quintos de cumprimento da pena para a progressão, é evidente que se trata de norma de natureza penal mais rigorosa. Portanto, deve ser submetida à regra da irretroatividade, em termos de sua eficácia temporal.
Parte da doutrina, no entanto, entende que a decisão do STF não tem eficácia erga omnes, pois foi proferida no espaço hermenêuticojudicial do controle difuso, para atender tão somente à demanda jurídica de um caso concreto. Em conseqüência, a decisão não teria força vinculante para desconstituir as demais situações jurídicas relacionadas à progressão de regime dos apenados por crime hediondo, que permaneceriam regidas por uma lei vigente e aprovada segundo o processo legislativo previsto na CRFB.
Há, ainda, o argumento, de que, no espaço políticojurídico do Estado Democrático, a produção do Direito é função constitucionalmente privativa do Poder Legislativo, não cabendo ao Poder Judiciário extrapolar a sua competência estritamente jurisdicional para criar o direito, principalmente, contra expressa disposição legal. Para esta corrente doutrinária, a mencionada decisão do STF não criou um direito à progressão após o cumprimento de um sexto da pena.
Em conseqüência, a norma contida na lei em exame deve ser considerada mais favorável ao infrator, se comparada com a anterior, agora revogada e que não admitia a progressão de regime prisional. Sendo norma penal mais benéfica, está sujeita, portanto, à regra da retroatividade consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, devendo ser aplicada não somente aos casos futuros, mas também a todos os casos pretéritos.
7.2 Irretroatividade da Nova Lei Aparentemente mais Benéfica
É preciso reconhecer que a decisão do STF, manifestada pela maioria de seus membros, não ficou devidamente explicitada quanto ao alcance de sua eficácia, em relação ao direito à progressão para os demais condenados por crime hediondo. Na verdade, a questão relativa aos efeitos erga omnes da decisão, embora por diversas vezes discutida, durante a longa e polêmica votação, não foi objeto da necessária notificação ao Senado Federal para que, nos termos do art. 52, inciso X, da CRFB, tomasse a iniciativa de suspender a execução da norma acoimada de inconstitucional.
No entanto, é preciso ressaltar que “o Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de
progressão”.[19]
Desta forma, parece-nos evidente que o STF, ao reconhecer – mesmo que de forma incidental – a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na LCH, garantiu o direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto pena. Pode-se dizer que, após a declaração de inconstitucionalidade pelo STF, a norma contida no § 1º, d art. 2º, da LCH, manteve sua vigência formal, mas perdeu sua completa eficácia jurídica.
Se isto é juridicamente verdadeiro, é preciso admitir que, até a vigência da Lei 11.464/07, prevalecia uma situação jurídica bem mais favorável aos condenados por crime hediondo, que tiveram o direito garantido de postular a progressão de regime, após cumprimento de um sexto da pena.
Mesmo que tenha sido criado por decisão judicial, a verdade é que se trata de um direito aplicável a todos os condenados por crime hediondo que, naquele momento jurídico, encontravam-se na mesma situação jurídica, em termos de progressão de regime prisional.
Em conseqüência, todos os que tenham praticado crime hediondo antes da vigência da Lei 11.464/07 – aí incluídos os autores dos crimes de tráfico ilícito de drogas e tortura – poderão pleitear a progressão de regime prisional após o cumprimento de um sexto da pena. Basta que comprovem o bom comportamento carcerário.
Assim sendo, cremos que a nova norma penal, aparentemente mais benéfica por reconhecer um benefício até então negado pela lei formalmente revogada, é indiscutivelmente mais rigorosa. Por isso, não se pode reconhecer-lhe eficácia retroativa. Sua eficácia somente alcançará os condenados por crime hediondo praticado após a sua vigência, em data de 29.03.207.
8. A Nova Situação JurídicoPenal em Face da Política Criminal e dos Princípios Constitucionais Penais
Finalmente, cabe uma breve comentário sobre a Lei 11.464/07, à luz da moderna Política Criminal e dos princípios penais consagrados pela Constituição Federal. Quanto a estes, cremos que, com a nova lei, o subsistema punitivo de maior severidade penal representado pela LCH, reconciliou-se com os princípios da individualização da pena, da igualdade penal e, em parte, também, com o princípio da humanidade da pena consagrados no art. 5º, caput e incisos XLVI e XLVII, da CRFB.
A partir de agora, todos os condenados têm o direito assegurado de pleitear a progressão de regime prisional. Basta que atendam aos requisitos legais. Com isto, a nova lei colocou o processo de execução penal nos trilhos por onde trafega o princípio da igualdade penal. Trata-se, é verdade, de uma igualdade relativa, pois ainda dispensa tratamento de maior severidade aos condenados por crime hediondo, mas garante-lhes, assim mesmo, o mesmo direito assegurado aos demais condenados por crime não hediondo.
Com o direito à progressão assegurado, o pressuposto prático do princípio da individualização da pena foi restabelecido pela lei penal em exame. A partir de agora, os juízes não se encontram mais impedidos de decidir, com a devida discricionariedade, sobre este relevante e básico componente do princípio individualizador.
Quanto ao princípio da humanidade da pena, a doutrina lá formulou críticas ao rigor desproporcional representado pela nova exigência de cumprimento de dois ou de três quintos da pena para a progressão de regime.[20] Realmente, é preciso reconhecer a severidade deste lapso temporal bem maior de cumprimento da pena, se comparado ao prazo exigido dos demais condenados por crime não hediondo – mesmo os reincidentes – que é de apenas um sexto para a progressão de regime.
Neste ponto, cremos que a nova lei representa uma resposta do Parlamento à opinião pública que tem se manifestado, com veemência, a favor de um Direito Penal de maior severidade como instrumento de combate – discutível é verdade – aos elevados e assustadores índices da violência brasileira. No entanto, um fato parece verdadeiro: após dezessete anos de vigência da LCH, a criminalidade brasileira não diminuiu.
Se estes novos marcos temporais de cumprimento de pena em regime inicialmente fechado são efetivamente desumanos e, portanto, juridicamente inadmissíveis, é uma questão que precisa ser discutida e refletida com base nos princípios da moderna Política Criminal. Formalmente, cabe reconhecer que a nova lei, ao afastar uma proibição inconstitucional, por atentar contra os princípios da humanidade e da individualização da pena e restabelecer o direito à progressão, avançou no sentido de tornar nosso direito penal menos rigoroso e mais coerente com o sistema penitenciário progressivo.
Cremos que uma reflexão séria e desideologizada acerca das regras politicamente mais adequadas acerca do sistema punitivo em seu conjunto e do processo de execução penal de forma específica, deve considerar os princípios constitucionais penais garantidores da liberdade individual, mas também o princípio da segurança pública, dever do Estado e direito e responsabilidade de todos os cidadão.
Em termos de Política Criminal, é preciso reconhecer que a severidade ou o maior rigor das normas positivadas na LCH manifesta-se em face de um sistema punitivo relativamente brando como o nosso. Principalmente, em relação às condutas que lesam bens jurídicos pertencentes à ordem econômicofinanceira e tributária, onde transita condescendência tão grande no controle penal desses crimes que a regra têm sido a impunidade. No entanto, se compararmos com o de outros países, [21]teremos de reconhecer que o nosso sistema punitivo – aí incluídas as normas integrantes da LCH – é ainda, significativamente, brando. Ao menos em termos quantitativos.
Por tudo isso, uma reflexão séria e desideologizada acerca das regras politicamente mais adequadas acerca do sistema punitivo em seu conjunto e do processo de execução penal de forma específica, deve considerar os princípios constitucionais penais garantidores da liberdade individual, mas também o princípio da segurança pública, dever do Estado e direito e responsabilidade de todos os cidadão.
9. Considerações Finais
1. Pelo novo texto legal, o condenado por crime hediondo continua obrigado a iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado. Mas, não está mais condenado a permanecer neste regime mais rigoroso até alcançar o livramento condicional (quando for o caso!) ou a extinção da pena.
2. A mudança operada no texto original foi defendida por boa parte da doutrina que, desde o primeiro momento, apontou para a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da LCH. Os penalistas sempre entenderam que esta norma – de absoluta proibição a priori – contrariava os princípios constitucionais da individualização e da humanidade da pena, além dos princípios do devido processo legal e da igualdade.
3. A jurisprudência percorreu um caminho contrário àquele trilhado pela doutrina, com decisões divergentes e marcadas por uma hermenêutica de comprometimento com o sentido literal da lei positiva, até a votação pelo STF, do HC 82.959/SP, ocorrida em 23.02.2006 e que passou a admitir o direito à progressão.
4. A progressão de regime é uma das fases do sistema penitenciário progressivo, adotado pelo Código Penal brasileiro, em seu art. 33, § 2º. Portanto, a proibição absoluta deste benefício, contraria um dos princípios consagrados por nosso sistema penal.
5. A proibição absoluta do direito à progressão contrariava, também, os princípios da individualização e da humanidade da pena.
6. Lei 11.464/07 reflete o novo entendimento jurisprudencial do STF, além de perfilhar dispositivos das duas leis penais que tratam de crimes hediondos. Está de acordo, também, com o pensamento da doutrina penal, que sempre defendeu a tese da progressão de regime prisional.
7. Com a nova redação dada ao § 2º, do art. 2º, o condenado por crime hediondo poderá progredir de regime prisional, desde que comprove, por atestado do diretor do estabelecimento prisional, bom comportamento carcerário.
8. Para o fim de aplicação desta norma penal especial mais rigorosa, primário deve ser considerado todo aquele que ainda não tenha sido condenado por crime um hediondo, no momento da prática do crime hediondo posterior e objeto da segunda condenação judicial.
9. No caso de reincidente, o tempo de cumprimento da pena para a progressão é de três quintos. O conceito de reincidência não deve coincidir com aquele descrito no art. 63, do Código Penal e aplicável ao condenado pelas demais infrações penais não hediondas.
10. Somente o condenado pelos crimes dos art. 33, caput, § 1º, incisos I a III, 34 e 36, da Lei Antidrogas, devem ficar sujeitos ao cumprimento de dois ou de três quintos da pena para alcançar uma possível progressão de regime.
11. O reconhecimento do direito à progressão de regime para condenados por crime hediondo, criou mais uma incômoda assimetria em nosso já desordenado sistema punitivo, pois parece despida de lógica jurídica a permanência do condenado durante um longo tempo nos regimes semiaberto e aberto antes do livramento condicional.
12 A maior parte dos doutrinadores entende que a nova lei, aparentemente mais favorável ao infrator, é na verdade mais severa. Portanto, sua eficácia retroativa, consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, deve ser afastada, Não sendo norma penal mais benéfica, não pode ser aplicada aos casos pretéritos, mas tão somente aos crimes cometidos a partir de sua vigência, em 29 de março de 2007.
13. Ao julgar o HC 82.959-SP, o STF não deixou claro os efeitos erga omnes, pois não houve notificação ao Senado Federal para a revogação da norma acoimada de inconstitucional. No entanto, ao reconhecer – mesmo que de forma incidental – a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na LCH, o STF garantiu o direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto pena.
14. A nova norma penal, aparentemente mais benéfica por reconhecer um benefício até então negado pela lei formalmente revogada, é indiscutivelmente mais rigorosa. Não se pode reconhecer-lhe eficácia retroativa.
15. Ante o exposto, a nova norma contida no art. 2º, § 2º, da LCH, deve ser aplicada tão somente aos crimes hediondos e seus assemelhados praticados a partir da vigência da Lei 11.464/07. Em conseqüência, o condenado por crime desta natureza, praticado antes da vivência desta lei, tem o direito à progressão de regime prisional após o cumprimento de um sexto da pena.
Informações Sobre os Autores
João José Leal
Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor dos Programas de Mestrado e de Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da FURB – Blumenau. Sócio do IBCCrim e da AIDP.
Rodrigo José Leal
Mestre em Ciência Jurídica – UNIVALI. Doutorando em Direito – Universidade de Alicante. Professor de Direito Penal – UNIVALI e UNIFEBE.