Crimes de estupro e atentato violento ao pudor, a majorante prevista no art. 9º, da Lei 8.072/90 e violação do princípio do non bis idem

l.  INTRODUÇÃO

Dos crimes contra os costumes, definidos no Título VI do CP, os autores da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos, que aqui será referida pela sigla LCH) selecionaram os dois mais graves para atribuir-lhes o rótulo legal da hediondez.  Em conseqüência, o estupro (art. 213) e o atentado violento ao pudor (art. 214), tentados ou consumados, são as duas únicas infrações contra os costumes que integram o rol sinistros dos crimes hediondos (art. 1º, incisos V e VI da LCH).

São crimes indiscutivelmente graves, cujo cometimento, em regra, suscita um forte sentimento de repulsa e, por isso, o juízo de censura será quase sempre acentuado em relação ao autor de tais condutas contra liberdade sexual.  No entanto, há casos de crime de estupro e, principalmente, de atentado violento ao pudor em que a gravidade da conduta não se apresentará de forma tão acentuada e o rótulo da hediondez poderá se revelar indevido e demasiadamente rigoroso.

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Aliás, já escrevemos anteriormente que o legislador de 1990, cometeu  sério equívoco ao destacar alguns tipos penais mais graves, para classificá-los como infrações obrigatória e necessariamente hediondas. É que o caráter de hediondez desses delitos decorre principalmente de certas circunstâncias ou conseqüências do crime em concreto. Trata-se, portanto, de critério puramente formal, que utilizou um procedimento de mera colagem e que criou uma presunção compulsória do caráter profundamente respulsivo do ato incriminado: de forma discricionária e apriorística, decidiu o legislador marcar certas condutas criminosas com o rótulo da hediondez absolutamente obrigatória. Conforme já escrevemos em trabalho anterior, entendemos que este conceito meramente formal de crime hediondo contraria, não somente a lógica jurídica, mas também a própria natureza das coisas.[1]

Neste trabalho, pretendemos analisar uma das muitas questões polêmicas criadas pela LCH: a incidência da causa de aumento, prevista em seu art. 9º, nos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor.

2. AUMENTO E EQUIPARAÇÃO DAS PENAS MÍNIMAS E MÁXIMAS PARA OS TIPOS BÁSICOS

Estes dois crimes tiveram suas penas mínimas aumentadas, respectivamente, de três e dois para seis anos e as máximas de oito e sete para dez anos de reclusão (art. 6o  da LCH). Com a nova lei, igualou-se a reprimenda cominada ao estupro e ao aten­tado violento ao pudor, o que não seria tão grave, pois são crimes da mesma espécie e, principalmente, porque não se pode afirmar que o estupro seja necessariamente mais grave que o atentado violento ao pudor e vice-versa. A experiência mostra que as cir­cunstâncias presentes em cada um destes crimes é que darão a medida certa para se aferir, de forma casuística, qual deles é o mais grave. Por isso, a igualdade de repri­menda teria sido uma medida razoável e compreensível se a pena mínima do crime de estupro tivesse sido aumentada, de forma razoável, em mais um ano ou permanecido no mesmo patamar de três anos de reclusão estabelecido pelo legislador de 40.

Não se pode concordar é com a solução adotada pela LCH, que exagerou na exasperação da pena. É preciso reconhecer que, no tocante ao aten­tado violento ao pudor, a elevação da reprimenda mínima de dois para seis anos repre­sentou um despropositado salto em direção ao direito penal da severidade. Isto é profundamente lamentável.

Na verdade, nem sempre os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor serão substancialmente hediondos. Ao dar-lhes o rótulo compulsório da hedi­ondez e aumentar-lhes, de forma desmedida, as quantidades mínima e máxima de pena cominada para cada uma destas infrações contra a liberdade sexual em suas formas básicas ou qualificadas, a LCH trouxe consigo uma pauta sancionadora que se torna contradioriamente mais severa e grave se comparada àquela adotada pelo CP de 1940.

À luz da concepção punitiva contemporânea , seria um absurdo admitir que a conduta de apalpar ou beijar alguém à força,[2] ou a mera contemplação lasciva, após o agente ter cortado o vestido da vítima que dormia,[3] entendidas pela jurisprudência como caracterizadoras do tipo penal descrito no art. 214 do CP, merecem a pena mí­nima de seis anos de reclusão, a ser cumprida em regime fechado. Mantido este en­tendimento jurisprudencial para as hipóteses em análise, a reprimenda mínima a ser obrigatoriamente aplicada revela-se demasiadamente severa, se comparada com a puni­ção prevista para outros crimes tão ou mais graves, definidos no CP ou em leis especiais. Compare-se, por exemplo, com a pena mínima de um ano de detenção cominada para o homicídio culposo, mesmo quando praticado mediante gravíssima imprudência e geradora de graves conseqüências sociais; ou com a pena mínima de seis anos de re­clusão, prevista para o homicídio doloso simples.

3. AUMENTO DAS PENAS COMINADAS PARA AS FORMAS QUALIFICADAS E SEVERIDADE PUNITIVA

Com a nova lei, as formas qualificadas pelo resultado também tiveram suas penas aumentadas: no caso de resultar lesão corporal grave, a pena passou a ser de oito   a doze anos    e, no caso de morte da vitima, de 12 a 25 anos de reclusão (art. 223 e seu parágrafo único do CP, com a nova redação dada pelo art. 60, da lei anti-seqüestro). De modo geral, a preocupação básica foi a de elevar os limites mínimos. Tratando-se de formas qualificadas, nas quais sempre estará presente um resultado material grave, compreende-se que o legislador de 90 tenha considerado necessária a majoração da car­ga punitiva, medida que se insere no contexto global da proposta legislativa de endurecer o nosso sistema punitivo.

Num exame comparativo, ainda uma vez mais, verifica-se que o remendo le­gislativo foi impertinente. É que as sanções cominadas para as formas simples do estupro e do atentado violento ao pudor (seis anos no mínimo) aparecem proporcionalmente muito mais rigorosas do que as previstas para as formas qualificadas pelo resultado lesão grave (oito anos) ou morte da vítima (12 anos).

4. FORMA SIMPLES, QUALIFICADA OU COM VIOLÊNCIA FICTA É CRIME HEDIONDO

A hermenêutica dos tribunais caminhou por  trilhas sinuosas e de incerteza jurídica. Após rejeitar o caráter de hediondez para as formas básicas desses dois tipos penais contra os costumes, encontra-se pacificado o entendimento de que, tanto as formas simples quanto as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, são efetivamente crimes hediondos de conformidade com a LCH.

No STJ, reiteradas decisões perfilham este entendimento jurisprudencial, cuja síntese pode ser assim formulada: o art. 1º, incisos V e VI, da Lei 8.072/90, considera crime hediondo os tipos penais estabelecidos nos arts. 213 e 214 e em suas combinações com as hipóteses previstas no art. 223 e seu parágrafo único.[4]

Com as decisões mais recentes, eventuais divergências naquela Corte ficaram superadas e consolidada está a posição de que as formas simples e as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, com violência real, são crimes hediondos.[5]

O STF também já decidiu que “o crime de atentado violento ao pudor, tanto na sua forma simples, Cod. Penal, art. 214, quanto na qualificada, Codigo. Penal, art. 223, caput e par. Único, é hediondo, ex-vi do disposto na Lei 8.072/90” (HC 81.411-SC, 2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso). Em outra decisão da mesma turma da Suprema Corte, ficou decidido que “crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidade de crime hediondo”.[6]

Essa posição jurisprudencial encontra-se consolidada no STF, após decisão do Pleno,  de 18.12.01, ao julgar o HC 81.288-SC e firmar o entendimento de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou básica, quanto na forma qualificada, são crimes hediondos.

No tocante aos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, praticados com violência ficta, a orientação inicial do STJ foi de considerar que essas modalidades não se encontravam arrolados como crimes hediondos, nos termos descritos nos incisos V e VI do art. 1º da LCH e, em conseqüência, concluir que “a eles não se aplica a restrição do art. 2º, § 1º (proibição de progressão de regime prisional), da mesma lei”.[7] O mesmo tribunal superior reiterou esse entendimento em outras decisões, proclamando que o atentado violento ao pudor e o estupro cometidos com presunção de violência não estavam enquadrados no art. 1º da Lei dos Crimes Hediondos.[8]

Posteriormente, no entanto, o STJ mudou a orientação, que prevalece sem maior dissenso,  para admitir que estes dois crimes contra a liberdade sexual, mesmo quando cometidos com violência presumida, constituem crimes hediondos.[9]

Esta posição é respaldada pelo STF. Além da decisão do Pleno acima mencionada (HC 81.288-SC), há decisões das turmas seguindo essa orientação para afirmar que os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor cometidos com violência presumida são hediondos.[10]

O TJSC, desde os primeiros julgamentos sobre a matéria, adotou esse mesmo entendimento. As decisões em contrário, no sentido de que somente as formas qualificadas poderiam ser consideradas como infrações hediondas, ocorreram isoladamente. Durante os anos de 2002 e 2003, já fundamentadas na posição firmada pelo STF e STJ, inúmeras foram as decisões das duas Câmaras Criminais do Tribunal catarinense  reiterando a disposição de que, no caso de estupro e de atentado violento ao pudor, tanto a forma básica quanto a qualificada, com violência real ou presumida, constituem crimes hediondos, nos termos da definição contida nos incisos V e VI, do art. 1º, da LCH.[11]

Hoje, portanto, essa questão está  consolidada e não comporta mais discussão, tanto nos Tribunais Superiores, quanto no Tribunal de nosso Estado e, pode-se avançar, nas demais Cortes estaduais.

5. CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA PARA OS CRIMES HEDIONDOS CONTRA O PATRIMÔNIO E A LIBERDADE SEXUAL

A proposta de positivar um subsistema punitivo de maior severidade, entretanto, não se restringiu apenas ao aumento dos marcos punitivos mínimo e máximo e de suas formas qualificadas pelo resultado. Através de seu art. 9º,  a LCH insti­tuiu uma nova causa de aumento: aumentou de metade o quantum das penas previstas para os crimes de estupro e de atentado violento ao pu­dor (em suas formas qualificadas), de latrocínio, de extorsão com resultado morte e de extorsão mediante seqüestro (este na forma simples e em qualquer das formas qua­lificadas) desde que, na prática de um destes crimes hediondos, esteja presente qual­quer das hipóteses descritas no art. 224 do CP. A majorante, acoimada de inconstitu­cional por Alberto Silva Franco, em sua monografia sobre a matéria,[12] tem gerado seríssima controvérsia na jurisprudência e na doutrina.

Dispõe o art. 9º da LCH:

“as penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º; 158, § 2º; 159 caput e seus § 1º, 2º e 3º; 213, e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único; 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são  acrescidas   de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal”.

Com a nova disposição legal, praticado um desses cinco crimes hediondos contra vítima com idade de até 14 anos, alienada mental ou que não tenha qualquer condição de apresentar resistência, a pena será obrigatoriamente aumentada de metade. A nosso ver, a nova circunstância majorante, pelo destempero de seu rigor, contraria os princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade, do non bis in idem. Contraria, também, princípios gerais que se encontram na base do sistema penal contemporâneo.

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Além do rigor excessivo e inútil desta majorante, o dispositivo em exame criou sérios problemas de conflito de normas penais e subverteu de forma grave o sistema legal punitivo. É que as circunstâncias geradoras da presunção de violência, previstas no referido art. 224 do CP, são situações fáticas especificas aos crimes con­tra os costumes. Assim, a simples conjunção carnal contra a ofendida não maior de 14 anos ou alienada mental caracteriza o crime de estupro e dispensa (porque presumi­da por lei) a prova efetiva da violência real ou de grave ameaça, circunstância esta ele­mentar do tipo penal em referência. O mesmo vale para o crime de atentado violen­to ao pudor e, de modo geral, para os demais crimes sexuais tipificados no CP.

A doutrina e a jurisprudência entendem que o fato de não ser a ofendida maior de 14 anos ou alienada mental não conduz, de forma absolutamente necessária, à aceita­ção da violência presumida. A presunção legal, portanto, tem valor relativo, não pre­valecendo nos casos de erro escusável. Assim, por exemplo, não haverá violência fic­ta se a complexão psicofísica excepcionalmente desenvolvida ou sua evidente conduta lasciva ou sexualmente liberada, justificar um eventual erro por parte do agente, quanto à efetiva idade da vítima. Isto tem evitado, na prática, condenações absurdas por estupro ou atentado violento ao pudor com base na regra da absoluta presunção legal de violência. Desta forma, o fato de ter a ofendida 13 anos e dez meses ou me­nos de idade, ou ser portadora de determinado tipo de doença mental, por exemplo, não significa que a presunção de violência não possa ser afastada, em casos excepcio­nais e devidamente justificados.

Frise-se, no entanto, que os tribunais superiores da União e os tribunais estaduais de justiça, em regra e de forma razoável, têm respaldado a validade da norma que estabelece a presunção de violência. Esta somente tem sido afastada pela jurisprudência em casos realmente excepcionais, nos quais a condenação do acusado de um desses crimes contra a liberdade sexual represente a aceitação da regra há muito abolida da culpa objetiva.

Para dizer o mínimo, cremos que há uma indiscutível falta de lógica jurídica no mandamento contido no art. 9º da LCH, que transforma situações legais de presunção de violência, próprias dos crimes contra a liberdade sexual, em causa de aumento da pena aplicável a estes crimes e aos crimes de roubo, de extorsão e de extorsão mediante seqüestro. Em relação aos pri­meiros, o comando ali positivado infringe ao princípio do non bis in idem; em relação aos crimes contra o patrimônio, o equívoco está no fato de que são infrações penais para as quais as referidas circunstâncias deixam de ter qualquer sentido.[13] Na jurisprudência, desconhecemos um caso sequer de crime contra o patrimônio rotulado de hediondo em que esta causa de aumento tenha sido admitida, o que demonstra a inutilidade  do dispositivo.

6. Crimes de Estupro e de Atentado Violento ao Pudor: Causa de Aumento de Dupla Incidência  e Violação do Princípio do Non Bis in Idem

No tocante aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, a análise, aq interpretação e a aplicação do art. 9º tem gerado sérias dificuldades, divergências e desencontros. Um questão parece pacificada, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, após mais de dez anos de divergências: a majorante não incide nos casos de estupro e atentado cometidos mediante violência presumida, mas sem lesão corporal grave ou morte da vítima. Nestas hipóteses específicas, há consenso para se afirmar que o art. 9º em exame refere-se tão somente aos crimes de estupro e de atentado em suas combinações com o art. 223, caput e parágrafo único do Código Penal. Em conseqüência, não poderá incidir o referido aumento de pena em relação ao estupro ou atentado praticado contra menor de 14 anos que não tenha sofrido lesão corporal grave ou morte. Trata-se de interpretação de pura lógica jurídica e que, por isso, não gera mais dúvida.

Além disso, comprometido estaria o princípio do non bis in idem se a incidência desta causa de aumento de pena foi admitida para os casos de estupro ou atentado com violência presumida, mas sem lesão grave ou morte. É que, se as circunstâncias fáti­cas previstas no art. 224 do CP, já constituem causas legais de presunção de violência destes dois crimes contra a liberdade sexual, como poderão ser também consideradas, ao mesmo tempo e para o mesmo caso concreto, como causa de aumento de pena?

Vejamos a hipótese de conjunção carnal mantida sem violência grave, con­tra uma menor de 12 anos de idade, contra uma mulher doente mental evidente ou contra mulher que não teve a mínima condição de oferecer resistência. Estas três circunstâncias relacionadas com a vítima dos crimes de estupro ou de atentado ao pudor dispensam, por força da lei, a indagação da circunstância elementar destes dois tipos penais que é a violência real ou grave ameaça. Em face de uma dessas circunstâncias, a lei cria uma presunção de violência (alienação mental da ofendida, por exemplo), fazendo com que uma conduta normalmente atípica (manter, livremente e de comum acordo, relação sexual com mulher maior de 14 anos) se transforme num tipo penal grave, como é o caso do estupro e que exige, para sua configuração, o elemento da violência ou da grave ameaça real. Se essas três circunstâncias acima referidas, numa criação mera­mente jurídica, são consideradas pela lei positiva como elemento presumido (violên­cia ou grave ameaça  no ato sexual) do tipo penal, como podem funcionar também como causa de au­mento de pena, para o mesmo caso concreto? Há aí um flagrante desrespeito à regra que proíbe a dupla incriminação pela mesma situação fática.[14]

7. ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE A APLICAÇÃO DO ART. 9º, DA LCH

7.1 Introdução: Orientação Predominante

Com relação à causa de aumento em exame prevista no art. 9º da LCH, predomina o entendimento jurisprudencial de que sua incidência somente ocorre quando, do estupro ou atentado violento ao pudor, cometido contra vítima não maior de 14 anos, alienada mental ou impossibilitada de oferece resistência, resultar lesão corporal grave ou a morte da vítima. Aí, então, segundo a leitura interpretativa das cortes estaduais e superiores de justiça, será ad­missível a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 9º da LCH, que se refere expressamente às hipóteses do art. 224 e sua combinação com o art. 223 do CP. Isto, no entanto, eleva a pena a patamares muito severos e desaconselháveis do ponto de vista de uma Política Criminal verdadeiramente humanística.

7.2 Posição do TJSC  sobre a Matéria

Examinaremos a seguir a posição dos Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal a respeito desta questão tão grave quanto polêmica.

O TJSC, desde o primeiro momento, admitiu que o estupro e o atentado violento ao pudor, em suas formas básicas ou qualificadas, com violência ou grave ameaça real ou presumida enquadravam-se na moldura do art. 1º, inciso VI, da LCH. Constituem, portanto, hipóteses indiscutíveis de tipos penais hediondos.

A partir desse entendimento mais rigoroso, e no tocante à causa de aumento prevista no art. 9º da LCH, o caminho ficou aplainado para decidir que, em crime de atenta­do violento ao pudor, com vítima menor de 14 anos, incide a referida majorante, seja na forma do tipo simples, seja na forma do tipo qualificado.[15]

Entretanto, em decisão posterior, com acórdão da lavra do Des. Nilton Macedo Machado, ficou assentado que “o aumento de pena previsto no art. 9º da Lei nº 8.072/72, somente se aplicará em havendo lesão corporal grave ou morte, ante a expressa remissão ao art. 223, caput e parágrafo. único, do Código Penal”.[16]

Decisões mais recentes seguiram esta orientação hermenêutica, ao reiterar que: “Segundo entendimento esposado por esta Corte, o aumento de pena previsto no art. 9º da Lei 8.072/90, tem aplicação unicamente se do crime resulta lesão grave ou morte”.[17]

Por outro lado, em acórdão da lavra do Des. Maurílio Moreira Leite ficou decidido que “nos crimes de atentado violento ao pudor contra vítima menor de 14 anos, em que há violência presumida em razão do disposto no art. 224, “a” do Código Penal, e esta integra o tipo penal, impossibilita a aplicação do aumento do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos pois constituiria bis in idem”.[18] Embora não tenha sido expresso, o teor do acórdão parece indicar que a impossibilidade de aplicação da causa de aumento só ocorre no caso de estupro ou atentado violento ao pudor praticado com violência ficta e desde que não resulte lesão corporal grave ou morte da vítima. Esta dedução decorre do teor das decisões do STJ trazidas pelo relator para o corpo do acórdão, com o fim de lastrear o julgamento proferido pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal Catarinense.

Diante disto, podemos afirmar que o TJSC, atualmente,  tem orientação jurisprudencial consolidada nos seguintes termos: os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, nas formas básicas ou qualificada, com violência presumida ou real, são considerados infrações hediondas; no caso de violência ficta (art. 224 e seus incisos, do CP), a causa de aumento prevista no art. 9º, da LCH, somente terá incidência se a infração for praticada mediante lesão corporal grave ou a morte da vítima.

7.3 Posição do STJ e do STF      

Por sua vez, após divergências sobre a matéria, a jurisprudência do STJ reconheceu que a majorante em exame não afronta ao princípio do bis in  idem, mas somente é aplicável aos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor com violência ficta (art. 224, incisos I a III, do CP), quando praticados na forma qualificada pelo resultado, “ante à expressa remissão da lei ao art. 223,  caput, e parágrafo único do Código Penal, expressos quanto à exigência de lesão corporal grave ou morte”.[19]

Em decisões posteriores, o STJ reiterou essa posição hermenêutica, estabelecendo o seguinte sobre a matéria: o “acréscimo previsto no art. 9º, da LCH, em se tratando de estupro, só se aplica se houver lesão grave ou morte;[20]incabível o aumento de pena previsto pelo artigo 9º da Lei nº 8072/90,  nos crimes de estupro ou  atentado sem lesão corporal grave ou morte, pois sua ocorrência implicaria em violação do princípio do non bis idem”[21]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no que ficou acima consignado, pode-se dizer que algumas conseqüências sérias e graves decorrem do etiquetamento dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, como infrações hediondas. A primeira delas diz respeito ao aumento das penas mínimas e máxima, seja para as formas simples, seja para as formas qualificadas. Resulta daí, em conseqüência, uma elevação, também, das penas aplicadas com base nas causas de aumento previstas no art. 226 e seus incisos do CP.

Nesse ponto, o endurecimento da resposta penal para os autores destas duas infrações contra a liberdade sexual não constituiu exceção à filosofia penal que motivou o legislador de 90. Conforme já ressaltamos em trabalho anterior, as autores da LCH, inspirados nas idéias do Movimento da Lei e da Ordem, trabalharam com uma escala punitiva de maior severidade, comparativamente àquela adotada pelos autores do CP e o resultado foi o aumento das penas mínimas da maioria das infrações penais que receberam o rótulo de crime hediondo.[22]

Pode-se dizer que o art. 9º, da LCH, tem acarretado sério proble­ma de interpretação e conseqüente aplicação aos casos concretos. No plano ôntico ou político-jurídico, deve-se indagar se era razoável, justo e, mesmo, necessário aumentar, de forma tão drástica, a pena prevista para esses crimes he­diondos. No plano sistêmico, constata-se que o dispositivo legal agravador causou verdadeira confusão normativa, ao criar uma causa especial de au­mento de pena através de norma penal extravagante, mas remetendo o intérprete a diversos dispositivos do CP.

Finalmente, no plano técnicojurídico, foram criadas  situações em que a pena míni­ma se iguala ou até ultrapassa o limite máximo de 30 anos previsto no CP e impede o juiz de exercer seu poder discricionário de aplicar e individualizar a pena (isto nos casos dos crimes de roubo, extorsão e de extorsão mediante seqüestro qualificados pelo resultado morte).

Na verdade, uma única  circunstância fática (ser a vítima não maior de 14 anos, alienada mental ou estar impossibilitada de oferecer resistência), considerada como circunstância elementar de presunção de violência destes dois tipos criminais, passou a ser considerada também como circunstância legal de aumento de pena. Este repique repressivo, a nosso ver, não é condenável apenas do ponto de vista da técnica legislativa, mas também de uma perspectiva constitucional-penal, quando se evidencia aí clara violação dos princípios da individualização da pena, da igualdade, da proporcionalidade e do non bis in idem.

E nunca seria demasiado lembrar a todos aqueles que trabalham com a hermenêutica e aplicação das normas do Direito Penal do Estado Democrático, o compromisso inafastável com os seus princípios fundamentais, agora insculpidos na Constituição Federal, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Americana dos Direitos Humanos.

 

Bibliografia
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003.
 
Notas
[1] LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003, p. 37 e segs.
[2] TJRS, ACr 25.661, RT 533/400.
[3] TACrSP, Emb. Infr., JTACrSP, 66/58.
[4] RT 745/527 e 746/553.
[5] REsp 556.318-MG, rel. min. José Arnaldo Fonseca, DJU 09.12.03, p. 338; REsp 521700-RS, rel. min. Félix Fischer, DJU 01.12.03, p. 396; HC 29.083-CE, rel. min. José Arnaldo Fonseca, DJU 28.10.03, p. 323; REsp 515.004-PR, rel. min. Laurita Vaz, DJU 13.10.03, p. 432 e REsp 311.317-SP, rel. min. Jorge Scartezzini, DJU 29.09.03, p. 306.
[6] HC 81.317-SC, 2ª T., rel. min. Celso Mello. Ver, ainda: HC 82.235-5-SP, rel. min. Celso Mello, DJU 28.02.2003; HC 81.894-SP, rel. min. Maurício Corrêa, 2ª T., DJU 20.09.2002; HC 82.098-PR, rel. min. Ellen Gracie, DJU 22.11.2002, p. 3).
[7] HC 10.693-SP, DJU 13.02.2000, p. 53.
[8] HC 12.694-SP, 5ª T., DJU 20.05.2001, p. 165; HC 14.773-SP, 5ª T., DJU 29.04.2001, p. 173; HC 18.323-SP, 5ª T., DJU 11.03.2002, p. 267; Resp 271.117-SC, 5ª T., DJU 08.11.2001, p. 245 Resp 295.648-RJ, 5ª T., DJU 08.10.2001, p. 241.
[9] REsp 556.318-MG, rel. min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 09.12.2003, p. 333; REsp 515.004, rel. min. Laurita Vaz, DJU 13.10.2003, p. 432; REsp 505.575-RS, rel. min. Laurita Vaz, DJU 15.09.2003, p. 370.
[10] HC 82.098-PR, rel. min. Ellen Gracie, j. 29.11.2002; HC 82.597, rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 06.06.2003, p. 42 e HC 82.712-RJ, rel. min. Gilmar Mendes, DJU 27.06.03, p. 54.
[11] ACr 2003.000960-4, rel. Jorge Mussi, j. 23.09.2003; ACr 2003.016709-9, rel. Irineu João da Silva, j. 23.09.03; ACr 2003.009142-4, rel. Marques Torres, j. 16.09.2003; ACr 2003.010993-3, rel. Sérgio Paladino;  ACr 2003.007635-2, rel. Torres Marques, j. 27.05.2003; ACr. 2003.000154-9, rel. Sérgio Paladino;  ACr 2003.004357-8, rel. Irineu João da Silva, j. 15.04.2003; ACr 2002. 022172-0, rel. Maurílio M. Leite, j. 11.003.2003; ACr 2002.020837-5, rel. Irineu João da Silva, j. 11.12.2002. Do Des. Jorge Mussi: ACr 2003.001122-6, j. 10.06.03. (www.tj.sc.gov.br Acesso: 29.02.2004).
[12] Crimes Hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 242.
[13] Ver a esse respeito, nossa obra Crimes Hediondos, acima citada, especialmente, p. 247-254.
[14] Sobre a questão, ver: FRANCO, Alberto Silva, ob. cit., p. 242.
[15] ACr nº 28.757, DJSC 29.09.1992, p. 13.
[16] ACr 29.271, j. 17.05.1993.
[17] ACr 2003.016071-0, rel. Sérgio Paladino, j. 02.09.03. Do mesmo relator, ver: ACr 2003.011416-5, j.  26.08.03; ACr 2003.003198-7, j. 22.04.03; ACr 2003.000411-4, j. 25.03.03. Da lavra do Des. Irineu João da Silva: ACr 2003.008708-7, j. 17.06.2003; ACr  2003.003901-5, j. 22.04.03 ( www.tj.sc.gov.br . Acesso: 12.03.2004).
[18] ACr 2003.016712-9, j. 26.08.2003. Do mesmo relator e, no mesmo sentido, ver: ACr 02.012555-0 (www.tj.sc.gov.br. Acesso: 26.02.2003).
[19] REsp 21.258-7-PR, Lex-JSTJ 41/947.
[20] REsp 285.797-SP, 5ª T., DJU 28.05.01, p. 207; HC 14.945-SE, 6ª T., DJU 07.05.01, p. 161; .
[21] HC 31.356-RJ, 5ª T., DJU 16.02.2004, p. 283. Da mesma relatora, ver também: Resp 332.774-PR, DJU 15.12.03, p. 545.
[22] Crimes Hediondos, ob. cit., p. 144.
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Informações Sobre o Autor

 

João José Leal

 

Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor dos Programas de Mestrado e de Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da FURB – Blumenau. Sócio do IBCCrim e da AIDP.

 


 

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