O presente artigo, dentro das limitações de tempo e espaço, tenta visualizar uma das mais gritantes realidades que atormentam a sociedade como um todo, as autoridades constituídas, os especialistas e operadores do direito: o crime organizado.
Por conta da dificuldade de entender esse fenômeno social e jurídico, decorre também a dificuldade de conceituação e tipificação do que seja crime organizado. Mal entendido, mal diagnosticado, mal enfrentado – é o que nos revela a pesquisa – é urgente e fundamental que seja intensamente discutido e elaborado medidas eficazes para combatê-lo.
A proposta de estudo passa também por uma abordagem relacionada ao conjunto de princípios conhecidos como garantismo, que, segundo boa parcela da sociedade – juristas inclusive – apontam essas garantias dos cidadãos contra a ação do Estado repressor, como um fator de seu enfraquecimento e insucesso no combate ao crime organizado.
Introdução
O mundo e o Brasil entre tantas realidades sociais e econômicas negativas, vivem, entres outras, uma realidade que preocupa as autoridades, bem como os mais diversos segmentos da nossa sociedade: o crescimento e a desenvoltura com que vem agindo as organizações criminosas e seus agentes.
Pelas suas conseqüências impactantes, o tema tem gerado um clima de insegurança geral e repercutido nos órgãos de comunicação, que o têm divulgado na medida em que geram leitores e audiência, chamando as atenções para a nítida desvantagem do sistema repressivo em combater as novas e complexas modalidades delitivas que se expandem na mesma proporção da incapacidade dos órgãos de segurança e judiciários de prevenir e/ou reprimir as ações de grande porte contra o patrimônio público e privado, a integridade física e a vida dos cidadãos.
As organizações criminosas não são novidade e as conseqüencias das suas ações sempre geraram, ao longo do tempo, a indignação dos homens de bem. O fato novo e recente, é a multiplicação e mutação dessas organizações que estão se adaptando às novas possibilidades, maneiras de agir e os objetos das suas ações, na esteira do mundo moderno e globalizado e do avanço tecnológico e econômico. Ao lado de velhas práticas criminosas, surgem novas opções de ação e enriquecimento ilícito e, em contrapartida, uma sofisticação e poderio difícil de ser acompanhado pelos órgãos do Estado.
Em termos de Brasil, o consumo limitado de drogas como a maconha e o tráfico de natureza local, operado nas bocas de fumo de pequenos territórios e volume financeiro envolvido, evoluiu para uma cesta de “produtos” de maior variedade, como a cocaína, o a heroína, o crack, o ecstasy, com conseqüente aumento dos territórios, consumidores, volume de dinheiro envolvido, corrupção, influência política, organização para-empresarial, audácia, poder de fogo (armamentos) e violência crescente, diversificação (tráfico de armas) lavagem de dinheiro, associações inter-organizacionais etc.. Evoluíram na mesma proporção, o tráfico de armas, o roubo de veículos e cargas, a pirataria e falsificação de produtos, os crimes da informática, os seqüestros, os crimes de colarinho branco e outros.
Diante dessa realidade, tem-se o desafio de entender, diagnosticar, conceituar, tipificar e normatizar o combate aos criminosos organizados, aparelhando jurídica e materialmente os órgãos do Estado responsáveis pela prevenção e repressão a essas novas modalidade criminosas.
No mais, ante a necessidade do combate a essas organizações, tem o Estado a difícil empreitada de conciliar as suas ações em repressão ao crime organizado com a defesa dos cidadãos, assegurando o mínimo exigível de garantias para que não haja sacrifício das regras e dos princípios fundamentais que devem reger o Estado de Direito e a paz social.
CRIME ORGANIZADO
Uma tentativa de conceituação
Uma realidade relativamente recente no ordenamento jurídico-penal brasileiro, o Crime Organizado, ainda não recebeu até o presente momento uma conceituação clara que o identifique em todos as suas facetas. Na falta da explicitação conceitual, os estudiosos tentam delinear a natureza do agente ativo complexo que é a Organização Criminosa, a objetividade jurídica das suas ações, os elementos subjetivos subjacentes e outros elementos constitutivos que possam permitir uma análise e uma visão global enquanto fenômeno jurídico-penal.
Os órgãos de segurança, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário debatem-se com uma realidade delituosa de grande monta e de uma legislação penal que não lhes fornece os meios adequados para uma ação efetiva contra os criminosos modernos e poderosos, pelo seu modus operandi, pelos recursos de que dispõe e pela sua influência econômica – grandes valores envolvidos – tecnologia, poder político decorrente de relações espúrias com políticos e o próprio aparelho policial e até mesmo raras mas eficazes incursões junto ao Poder Judiciário. Em termos legais, os legisladores – na sua maioria jejunos em matéria de Direito – movidos por impulso diante das repercussões decorrentes das matérias veiculadas pela imprensa e pelos grandes escândalos nacionais legislam de forma atabalhoada, gerando leis inócuas. Faltam normas cientificamente elaboradas, tipificação, e instrumentos novos para reagir ante o Crime Organizado e seus agentes.
Essa dificuldade decorrente da lacuna que subsiste no ordenamento jurídico brasileiro tem sido levantada pelos estudiosos. À falta de figura típica, as autoridades tem recorrido ao art. 288 do Código Penal, que não se ajusta ao tipo de ação praticada pelos agentes do crime organizado, em razão das suas complexas características que extrapolam àquela norma específica.
Em texto produzido para o I Colóquio Internacional de Direitos Humanos na cidade de cidade de São Paulo em 2001, o deputado e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Nelson Pellegrino afirma que, “no combate a este tipo de crime a sociedade brasileira tem com instrumento de apoio a Lei 9.034/95 que “Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”. Esta lei descreve os meios de prova e procedimentos investigatórios de ações ilícitas praticadas por organizações ou associações. Porém, a principal crítica em relação a essa lei é que a mesma não define o que é o crime organizado ou organizações criminosas. Então, fica uma caracterização aberta, de forma que qualquer grupo que esteja reunido para preparar uma atividade um pouco mais ofensiva como ocupação de terra ou mesmo um grupo político ou ideológico, pode ser considerado como organização criminosa. Recentemente, o poder Executivo enviou para o Congresso Nacional um projeto de lei reformulando a referida lei. Esperávamos que a definição do que são organizações criminosas estivesse contida na proposta, mas para a nossa surpresa, a intenção era de ampliar-se os meios de investigação, abrangendo a escuta ambiental e infiltração de agentes de polícia e inteligência em reuniões, movimentos etc. O texto aprovado, Lei 10.217, de 11 de abril de 2001, ficou ruim e dúbio, podendo receber interpretações díspares sobre um mesmo dispositivo legal e ainda poderá se prestar para a espionagem política, significando um grande retrocesso. Na prática, a nova lei se destina a dar cobertura a diversas ações e operações de inteligência do Estado voltadas a restringir os direitos fundamentais de reunião, expressão e privacidade.”
Segundo o deputado, “outro instrumento importante para combater o crime organizado é em relação à proteção das vítimas e testemunhas. A Lei 9.807/99, que institui o Programa Federal de Proteção à Vítimas e Testemunhas, significou um avanço, apesar das dificuldades apresentadas na implementação do programa. Não dá para pensar em desbaratar um esquema super organizado e criminoso, se não houver proteção às testemunhas e vítimas.”*
* (Íntegra do artigo na internet: www.conectasur.org/files/a4p4.pdf -)
Em resumo, constata-se que a preocupação e as tentativas de conceituação e adoção de novos instrumentos legais para o enfrentamento do problema existem, mas ainda não se traduziram em realidade concreta. Dos encontros mais variados dos especialistas, do esforço de instituições e indivíduos preocupados com o problema, tem sido produzidos diagnósticos e propostas de ação, teses e artigos atualmente disponíveis em livros, revistas e nos ‘sites’ da internet. Falta o resultado prático. Uma ação política coerente que vise concretizar as propostas levantadas. No espaço limitado de um artigo, motivado mais pelo interesse de situar-se diante de um tema tão vasto quanto difícil e polêmico, nos limitamos a uma leitura dinâmica do material disponível e destacamos aqueles que expõe o tema de forma mais didática e esclarecedora, uma introdução, assim pode-se dizer, para ‘vôos mais altos’ e cientificamente orientados.
Algumas anotações e idéias coligidas
O deputado Eloi Pietá, de São Paulo, alinha-se dentre os estudiosos que debruçaram sobre o tema da conceituação de Crime Organizado, e sobre este, assim se refere, conforme artigo veiculado no site Fórum Contra a Violência: “Há vários estudos sobre o que é o crime organizado. O cientista social Guaracy Mingardi distingue o modelo tradicional, que teria entre nós uma forma aproximada do jogo do bicho, e o modelo empresarial, que é mais comum no Brasil. Para ele, o modelo tradicional possui sistema de clientela (com lealdade, obrigação), impõe a lei do silêncio aos membros ou pessoas próximas, cultiva o conceito de honra, uso da violência ou da intimidação e conta com a proteção de setores do Estado. Além de características do modelo empresarial, com hierarquia própria, planejamento, divisão do trabalho e previsão de lucros.” *
* Íntegra do artigo no site da Internet: http://www.contraaviolencia.org/Forum.asp?CT=24):
Os especialistas do Fundo Nacional Suíço de Pesquisa Científica afirmam que existe crime organizado, especificamente o transnacional, quando uma organização tem o seu funcionamento semelhante ao de uma empresa capitalista, pratica uma divisão muito aprofundada de tarefas, busca interações com os atores do Estado, dispõe de estruturas hermeticamente fechadas, concebidas de maneira metódica e duradoura, e procura obter lucros elevados. Para as Nações Unidas, organizações criminosas são àquelas que possuem vínculos hierárquicos, usam da violência, da corrupção e lavam dinheiro. (Adriano de Oliveira, doutorando em ciência política, pela Universidade Federal do Pernambuco, em artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico, n. 34, março de 2004).
Outras tentativas de conceituação de importantes organismos nacionais e internacionais, que vale a pena serem transcritos:
“O Federal Bureau of Investigations (FBI) define crime organizado como qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura formalizada cujo objetivo primário é a obtenção de dinheiro através de atividades ilegais. Tais grupos mantêm suas posições através do uso de violência, corrupção, fraude ou extorsões, e geralmente têm significativo impacto sobre os locais e regiões do País onde atuam. A Interpol, por sua vez, define como qualquer grupo que tenha uma estrutura corporativa, cujo principal objetivo seja o ganho de dinheiro através de atividades ilegais, sempre subsistindo pela imposição do temor e a prática da corrupção”. (Mendroni, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: Aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002: p. 06).
A Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil enumera 10 características do crime organizado: 1) planejamento empresarial; 2) antijuridicidade; 3) diversificação de área de atuação; 4) estabilidade dos seus integrantes; 5) cadeia de comando; 6) pluralidade de agentes; 7) compartimentação) 8) códigos de honra; 9) controle territorial; 10) fins lucrativos. (Polícia de prevenção e repressão de entorpecentes, Departamento de Polícia Federal, Brasília, 2001).
Mingardi aponta quinze características do crime organizado. São elas: 1) práticas de atividades ilícitas; 2) atividade clandestina; 3) hierarquia organizacional; 4) previsão de lucros; 5) divisão do trabalho; 6) uso da violência; 7) simbiose com o Estado; 8) mercadorias ilícitas; 9) planejamento empresarial; 10) uso da intimidação; 11) venda de serviços ilícitos; 12) relações clientelistas; 13) presença da lei do silêncio; 14) monopólio da violência; 15) controle territorial.” (Mingardi, Guracy, O Estado é o crime organizado, 1996, Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996).
Historicidade – uma breve retrospecção sobre o tema.
O jogo do bicho
Em termos de Brasil, a organização do jogo do bicho, enraizada social e institucionalmente, constitui-se numa das manifestações mais antigas dessa realidade estudada, o crime organizado. Uma idéia útil e bem intencionada do Barão de Drumond, no século passado, tendo como cenário o Rio de Janeiro, tinha como finalidade, arrecadar recursos para a manutenção do Horto Florestal, acabou sendo apropriada por terceiros oportunistas, que mais tarde seriam denominados de ‘ banqueiros do jogo do bicho’.
Ao decretar a ilegalidade do jogo do bicho, definindo-o como contravenção penal, o Estado praticamente “decretou” um efeito colateral da medida, que foi o surgimento das organizações ilícitas que proliferaram Brasil afora e, em conseqüência, outros subprodutos de natureza criminosa, como a corrupção de policiais e políticos, constituindo-se em meio indireto de financiamento de campanhas políticas e, mais tarde, na eleição dos seus próprios representantes nas diversas esferas de poder. O jogo do bicho também acabou sendo o precursor da lavagem de dinheiro e do governo paralelo, assumindo tarefas de caráter assistencial, cultural, esportivas e mercado de trabalho para milhares de ‘colaboradores’. Esse modelo e estratégia, seria mais tarde adotado por outra atividade ilícita – esta bem mais grave – o tráfico de entorpecentes.
Novas organizações criminosas no Brasil
As siglas e a preocupação de normatização das ações
Em passado relativamente recente, outras organizações criminosas surgiriam como decorrência de ações de governo, mais especificamente, da repressão, tendo como exemplo o CV – Comando Vermelho, durante o período da ditadura militar, quando criminosos comuns foram confinados no mesmo espaço que criminosos políticos, no presídio da Ilha Grande no Rio de Janeiro. Os criminosos políticos contribuíram com os componentes ideológicos e organizacionais, fazendo surgir uma nova forma – mais organizada – de agir criminosamente, que geraria, mais tarde, novos filhotes como o PCC- Primeiro Comando da Capital, AA- Amigos dos Amigos e outras facções hierarquizadas com atuação dentro e fora do sistema prisional brasileiro.
As organizações criminosas referidas, passam a adotar siglas e elaborar “ estatutos” e regras internas das mais diversas naturezas, operacionais e até mesmo ético-filosóficas.
Atualidade
No momento atual, dentro de um contexto que transcende suas fronteiras, o Brasil debate-se com novas e múltiplas modalidades criminosas que se ajustam ao tema em estudo. Mais do que uma realidade brasileira, elas representam manifestações criminosas que vicejam de forma globalizada.
Dentre essas novas modalidades, podemos alinhar: a) tráfico de entorpecentes; b) tráfico de armas, animais e exemplares de flora; c) extorsão; d) roubo de veículos e cargas; e) seqüestros e assaltos a bancos; f) lavagem de dinheiro; g) pirataria em geral; h) tráfico de órgãos, mulheres e crianças (em baixa); i) crimes da informática; j) crimes contra o tesouro público (sonegação fiscal, contra a previdência e outros etc).
Perspectivas
Caso não haja um esforço conjunto das forças vivas da nação, especialmente dos órgãos envolvidos na obrigação e tarefa de previnir e reprimir esse tipo de criminalidade, a tendência é o agravamento da realidade, a exemplo do acontecido em outros países, onde o crime organizado assumiu contornos tão relevantes que passou a se constituir em força política e econômica e em um verdadeiro poder paralelo.
GARANTISMO
Historicidade
Historicamente, o garantismo deu seus primeiros passos, tendo como verdadeiro marco a obra de Baccaria (Dos Delitos e da Penas) e as reformas que a ele se sucederam, dando origem (inicialmente na Itália) a uma justiça penal, em reação contra as aberrações da velha justiça penal medieval que precedeu a Revolução Francesa.
Segundo Ferri, na sua obra “Princípios de Direito Criminal”, os princípios e critérios gerais da justiça penal nos séculos XIX e XX, criou regras que reconheceram ao Estado, o direito, ‘por necessidade natural de conservação social’, o poder e o dever supremos e imanente de proibir e punir as ações danosas ou perigosas para as condições de existência individual e social, contra as quais se mostravam insuficientes as outras sanções jurídicas (disciplinar, civil, administrativa, política).
Em contrapartida, reconhecendo esse direito de punir do Estado, o movimento reformador, temendo a sobrevivência e/ou o retorno às práticas abominadas, estabeleceu as principais garantias que impunham ao Estado de então o dever de respeitar e garantir ‘os direitos do homem’, não o sacrificando ilegitimamente – sem necessidade – à própria utilidade mais ou menos urgente e evidente. (Ferri, Enrico. Princípios de Direito Criminal, p. 49-50, Bookseller Editora, 1996, Campinas –SP).
As preocupações humanistas e os princípios de direito se mantiveram e se aprimoraram ao longo do tempo e se corporificaram no Direito Penal Internacional, assegurando as garantias que hoje são patrimônio dos cidadãos, reconhecidas nas constituições e no ordenamento jurídico-penal das nações e nos estados democráticos do mundo inteiro. Tais garantias, já incorporadas pelo mundo civilizado, com raras exceções, já não representam novidade. O termo ‘garantismo’, hoje em evidência, ganhou relevância doutrinária mais recentemente e, no Brasil, consolidou-se com o advento da Constituição de 1988.
Garantismo, em busca de um conceito
Os Direitos Penal e Processual Penal, em suas funções específicas no mundo jurídico, têm como referencial e razão de existir objetivamente, no poder do estado de punir – o jus puniendi – de um lado tipificando as condutas ilícitas juridicamente relevantes e o outro, instrumentalizando o processo de tornar efetiva a norma penal através da submissão dos sujeitos ativos da criminalidade ao devido processo legal, apurando os fatos e dizendo o direito pela imposição da pena, e/ou não, conforme o apurado no curso do processo/instrução criminal.
Em contraposição ao poder absoluto do Estado de punir, estão as garantias constitucionais do cidadão, de que, mesmo sob acusação de infração das leis penais, é portador de um direito/garantia da ampla defesa e do devido processo legal.
Os princípios gerais do Direito Penal e Processual Penal, oriundos das garantias constitucionais do cidadão à ampla defesa e em última instância à liberdade, corporificam o que a doutrina denomina Garantismo.
O Garantismo é, no dizer de Cyro Schmitz, em artigo publicado no site da Universidade Federal de Santa Maria, do Rio Grande do Sul, o fundamento, e a finalidade dos preceitos constitucionais garantidores que asseguram ao cidadão, a certeza, a garantia, de que ele, em havendo a necessidade de o Estado exercer essa pretensão punitiva, de que ela será exercida dentro das mais amplas garantias em favor do cidadão.
Referindo-se, especificamente ao Direito Processual Penal, afirma textualmente: …“não vejo o Processo Penal como uma garantia para o Estado. Eu vejo o Processo Penal como uma garantia para o cidadão. Não é um instrumento punitivo para o Estado, mas antes um instrumento de garantia das defesas do cidadão.” *
*(Íntegra do artigo no site da Internet: http://www.ufsm.br/direito/entrevistas/entrevista_dezembro de 2003)
Acepções do termo Garantismo
Luigi Ferrajoli, na sua obra Direito e Razão, estabelece as bases conceituais e metodológicas do que foi chamado de garantismo penal. Todavia, percebe que os pressupostos estabelecidos na seara penal podem servir de subsídios para uma teoria geral do garantismo, que se aplique, pois, a todo o direito e a seus respectivos ramos (administrativo, civil etc.). A partir de tal conclusão, Ferrajoli busca estabelecer uma teoria do garantismo a partir das acepções do respectivo termo. Inicialmente, a palavra garantismo, no contexto do trabalho de Ferrajoli, seria um ‘modelo normativo de direito’.
Tal modelo normativo se estrutura a partir do princípio da legalidade, que – afirma o Autor – é a base do Estado de Direito.
Tal forma normativa de direito é verificada em três aspectos distintos, mas relacionados. Sob o prisma epistemológico, pressupõe um sistema de poder que possa, já no viés político do termo, reduzir o grau de violência e soerguer a idéia de liberdade – não apenas no âmbito penal, mas em todo o direito.
No aspecto jurídico, percebe-se um dado curioso: o de se criar um sistema de proteção aos direitos dos cidadãos que seria imposto ao Estado. Ou seja, o próprio Estado, que pela dogmática tradicional tem o poder pleno de criar o direito e todo o direito, sofre uma limitação garantista ao seu poder. Assim, mesmo com sua ‘potestade punitiva’, o Estado deve respeitar um elenco sistêmico de garantias que devem por ele ser efetivados. Este é o primeiro passo para a configuração de um verdadeiro Estado Constitucional de Direito. (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Trotta, 1998).*
* (Íntegra do artigo na internet: http://www.ufsm.br/direito/entrevistas/entrevista_dezembro2003.htm)
O referido autor, exemplifica a sua afirmação teórica ao dizer que: “Além de ser um modelo normativo de direito entendido nos planos político, jurídico e epistemológico, o garantismo também pressupõe uma teoria que explique os problemas da validade e da efetividade. Esta consiste em buscar aproximar tais elementos, muito embora parta do pressuposto de que são diferentes, visto que pode existir validade sem efetividade e, em um grau inferior de garantismo, efetividade sem validade.”
Para ilustrar cita exemplos de que, “…pode-se verificar que certas práticas adotadas por policiais não são dotadas de validade, como no caso de uma confissão obtida por meios não permitidos pelo Estado, como a tortura. Então, observando-se o sistema jurídico de modo tradicional, não-garantista, verifica-se que os graus de garantismo podem variar conforme o compasso (ou o descompasso) que vai existir entre a normatividade e a efetividade do direito.” (FERRAJOLI, Luigi: Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Trotta, 1998).*
* (Íntegra do artigo na internet: http://www.ufsm.br/direito/entrevistas/entrevista_dezembro2003.htm)
CRIMINALIDADE ORGANIZADA E GARANTISMO
A opinião pública, expressivo número de políticos/legisladores, e não poucos operadores do direito, tem visto com olhar crítico, e até mesmo como uma das causas do aumento da criminalidade, bem como numa sensação de impunidade, o que consideram de excessivo favorecimento dos criminosos em geral e, especificamente, dos integrantes do crime organizado, em decorrência das regras impostas no conjunto de garantias constitucionais e outras contidas no Direito Penal e Processual Penal.
Esse alarido acaba repercutindo nos grandes órgãos de comunicação que realimentam em argumentos as manifestações contrárias ao juridicamente denominado garantismo.
As visões contrárias ao garantismo tem a mesma idade do seu nascimento no século XIX, com Beccaria, conforme noticia Ferri em sua obra Princípios do Direito Penal, o Criminoso e o Crime: “Esses princípios e critérios da justiça penal nos séculos XIX e XX, nas suas aplicações práticas, deram desastrosos resultados, tais como: aumento contínuo da criminalidade e da reincidência, em particular nas associações de delinqüência habitual e profissional, nos centros urbanos ou latifúndios isolados; aumento progressivo da criminalidade infantil e da feminina; as prisões mais confortáveis do que as casas das pessoas honestas; o agravamento financeiros dos contribuintes; defesa insuficiente dos delinqüentes mais perigosos e perdição de muitos condenados menos perigosos, que seriam reutilizáveis como cidadãos honestos”. ( Ferri, Enrico. Princípios de Direito Penal, p. 51, Bookseller Editora, Campinas-SP, 1996).
Os críticos chamam de leniência para com os criminosos as regras garantidoras dos direitos dos cidadãos contra o poder de punir do Estado, afirmando que elas, nas mãos de bons advogados, favorecem os criminosos e asseguram a impunidade em desfavor das vítimas e ao conjunto da sociedade.
É uma meia verdade, suprimir as garantias atacadas significa e o poder do Estado restaurará as masmorras da Idade Média e os porões da ditadura, que imolarão os pretos, os pobres e as prostitutas, enquanto que os grandes criminosos continuarão sua carreira de delinqüentes bem sucedidos porque dispõe dos meios financeiros e respaldo político para afrontar o aparelho repressor.
As garantias existem para proteção da cidadania e da liberdade de todos, especialmente os cidadãos honestos, contra os abusos de poder e dos desvios dos homens que têm a seu cargo reprimir, via inquéritos mal conduzidos, denúncias nem sempre precisas, lentos processos que ensejam manobras procrastinatórias que levam ao lapso prescricional e a sentenças, muitas vezes, injustas e passíveis de mercancia num mercado novo que se abre por vias traversas e sub-reptícias nos órgãos encarregados de realizar o direito.
É verdade que os criminosos de grosso calibre – especialmente o crime organizado – afrontam e tripudiam sobre o poder de punir do Estado; é igualmente verdadeiro que esses mesmos criminosos corrompem os agentes da lei, os políticos e assumem posições de mando junto as comunidades mercê o vácuo deixado por esse mesmo Estado. Mas, as deficiências não estão no conjunto de garantias chamado de garantismo, e sim nas deficiências humanas dos aplicadores das leis e, acima deles, do próprio Estado omisso, emperrado, desaparelhado e incapaz de entender as múltiplas causas e fatores da criminalidade, sejam de ordem jurídica, como, na sua essência, de ordem sociológica, cultural, econômica, política e outras a serem corretamente diagnosticadas.
O crime, organizado ou não, nasce e viceja em virtude da ineficiência do Estado e dos cenários que o favorecem como a corrupção e a miséria, a voracidade fiscal e a sonegação, o desemprego e a fome, a ausência do Estado e o governo paralelo dos criminosos organizados.
Conclusão
1. A realidade do crime organizado precisa ser melhor compreendida, conceituada, tipificada, para ser melhor combatida;
2. Ela, não se constituiu apenas uma realidade de natureza jurídica, mas multifacetada, cuja totalidade dos seus componentes precisam ser melhor analisados;
3. As garantias aos cidadãos que asseguram o equilíbrio entre o direito de punir do Estado e os princípios garantidores da legalidade, do devido processo legal e da ampla defesa, não constituem impedidores ao combate a esta natureza criminosa, mas sim a ineficiência do Estado em compreendê-la e enfrentá-la adequadamente.
Informações Sobre o Autor
Roberto Flávio Parisotto
Economista, Especialista em Administração Financeira e Acadêmico de Direito