Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a recente jurisprudência e a doutrina concernente aos crimes de homicídio ocorridos mediante acidentes no trânsito, atentando-se, outrossim, ao ponto de vista social acerca da temática. Far-se-á uma síntese histórica da tipificação dos crimes sob análise, bem como serão apresentados os conceitos doutrinários que tangem acerca do dolo eventual e culpa consciente. Ademais, serão demonstradas situações concretas da diversificação jurisprudencial e doutrinário no que diz respeito à aplicação da teoria do dolo eventual ou da culpa consciente para os homicídios decorrentes de acidentes no trânsito e quais são as conseqüências práticas se adotado um ou outro posicionamento ao acusado. Para tanto, utilizou-se como metodologia de pesquisa, a básica, com método hipotético-dedutivo, objetivo de pesquisa exploratória, abordagem qualitativa e procedimento bibliográfico, documental, bem como, pesquisas em sítios da internet.
Palavras-Chave: direito penal; acidentes de trânsito; crime de homicídio; dolo eventual; culpa consciente.
1. INTRODUÇÃO
No decorrer dos últimos anos do início do Século XXI, a ciência jurídica penal possui um problema que até então não tinha relevância acadêmica prática, entendimentos consolidados acerca dos crimes decorrentes de acidentes no trânsito, qual seja, v. g., em caso de homicídio, a aplicação do disposto no artigo 302, da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 (homicídio culposo na direção de automóvel), isto é, uma tipificação imediata, sem muitas controvérsias. Entretanto, pela constante e contemporânea evolução do sentimento de reprovação social cada vez mais apurado e exigente, a jurisprudência e doutrina de direito penal vêm atuando no sentido de apresentar uma resposta iminente a tal sentimento social, acarretando uma das maiores discussões acadêmicas jurídicas no Brasil.
Destarte, tal reflexão social atingiu o Direito como um todo. A insatisfação do sentimento social de impunidade decorrente do aumento significativo de acidentes no trânsito acarretou a sanção da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008 (Lei Seca), que possui como objetivo vertente, a punição mais rigorosa de indivíduos que dirigem embriagados, pelo perigo abstrato da conduta. E, por conseguinte, tal mobilização social vem modificando o raciocínio jurídico acerca da responsabilização penal daqueles que participam de disputas automobilísticas em rodovias públicas ou dirigem sob o efeito de álcool ou substâncias tóxicas ilícitas e acabam por se envolver em acidentes que denotam verdadeiras tragédias.
Nesse contexto, desdobra-se, precipuamente, a problemática no que tange à aplicação das teorias do dolo eventual ou culpa consciente para a tipificação dos casos exemplificados, pois, quando aplicados aos casos práticos, sofrem diversas variações em casos semelhantes, revelando-se temerários para a segurança jurídica dos acusados e da sociedade em geral. Ademais, tem-se em vista que, o problema jurídico não é de decidir acerca de um simples acidente, mas quando envolve como autor do crime um indivíduo demasiadamente embriagado ou que disputa corridas ou exibições automobilísticas em vias públicas sem a devida autorização e que, por não raras vezes, acabam se tornando homicidas, todavia, homicidas que assumiram ou não o risco de matar? Ou, em outras palavras, o homicídio cometido por este tipo de indivíduo tem caráter doloso (dolo eventual) ou culposo (culpa consciente)? Eis que surge um novo embaraço jurídico da atualidade, pois, as decisões controvertidas são imensas.
Logo, o presente artigo propõe ilustrar acerca do que está acontecendo nos tribunais e que, em tese, não deveria acontecer: diferentes julgamentos para casos semelhantes, por meio de análises sistemáticas das mais recentes jurisprudências e doutrinas que abordam a temática em foco.
2. CRIME DE HOMICÍDIO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO
2.1 Síntese histórica
Os crimes decorrentes de acidentes de trânsito possuem inerentes uma das maiores complexidades jurídicas existentes, qual seja, aplicar a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, significa nada menos, extrair do subconsciente de uma pessoa uma informação precisa de suas intenções no momento do crime, que tinha um resultado previsível, porém, precisar se o indivíduo se conformava ou não com isso é um processo altamente temerário. No sentido em que afirmou Welzel (s.d.), citado por Queiroz (2010, p.24): “a distinção entre dolo eventual e culpa consciente é um dos problemas mais difíceis e discutidos no direito penal”.
A temática em tela não é atual, ou pelo menos, não deveria ser, visto que o citado doutrinador alemão (Hans Welzel) já em meados do Século XX previa tal dificuldade. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou acerca do problema, todavia, foram raríssimas manifestações, em face da pacífica maneira de solucionar a demanda, isto é, aplicando-se o Código de Trânsito Brasileiro, definindo o crime como homicídio culposo (www.stf.jus.br).
Nessa senda, com o processo de evolução da ética e da cidadania no Brasil, mormente o estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a sociedade vem se insurgindo contra diversas condutas determinadas anti-sociais, exemplo disso, são diversas sanções de leis que incriminam determinadas condutas repugnadas por esta “nova” sociedade como a Lei de Crimes Hediondos (Lei n. 8.072 de 25 de julho de 1990), Lei contra a prática da pedofilia (Lei n. 10.764 de 12 de novembro de 2003), Lei contra a violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340 de 07 de agosto de 2006), Lei Seca (Lei n. 11.705 de 19 de junho de 2008) entre outras diversas (www.presidencia.gov.br).
Sob esta ótica, há questões que não são solucionadas apenas com a edição de novas leis e nem devem ser. Uma dessas questões diz respeito à reprovação social em face da incessante violência no trânsito, violência esta, muitas vezes, gratuitas, ou seja, provenientes de condutas de alta reprovação social como a embriaguez voluntária na condução de veículos, ou a prática de disputas automobilísticas em plenas ruas e avenidas públicas, com o trânsito de pessoas alheias a tais situações e, infortunadamente, não raras vezes, vítimas dessas condições.
Além do aumento da sensibilidade dos conceitos de ética e cidadania, ressalta-se o crescente nível do sentimento de impunidade que permeia a sociedade brasileira, há determinadas condutas que outrora não eram questionadas, mas que nessa contextualização apresentada, passam a ter maior relevância social, ao passo que, deposita-se ao Direito a atribuição de dar respostas aos anseios sociais concernentes ao descumprimento das leis. São os casos dos crimes cometidos em situação de acidentes de trânsito, sob determinadas circunstâncias dos autores dos fatos. Exemplificando o exposto, aponta Nucci (2009, p. 202):
“As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o risco da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como o racha, a direção em alta velocidade sob embriaguez, entre outras”.
Mesmo raciocínio possui Dias (2008):
“Dentre as inúmeras informações despejadas pela imprensa escrita, falada e televisada, uma tem se feito muito freqüente neste ano: a famigerada alteração do Código de Trânsito Brasileiro.
A alteração é fruto de um apelo da sociedade que já leva anos. Os acidentes de trânsito têm sido a segunda forma de morte não natural no Brasil, estando atrás, em números, apenas dos crimes dolosos contra a vida.”
Todavia, sabe-se que os operadores de Direito, apenas aplicam a lei ao caso em concreto, não se tem o poder de legislar e, dentro deste cenário, o Direito, mediante os procedimentos específicos para a aplicação das leis (doutrinas, teorias ou jurisprudência, entre outros), objetiva ilustrar que o país possui um Poder Judiciário eficiente dentro de um Estado Democrático de Direito. Sob a temática em foco, Nucci (2009, p. 202) exemplifica tal tendência:
“Dolo eventual nos graves crimes de trânsito: tem sido posição adotada, atualmente, na jurisprudência pátria considerar a atuação do agente em determinados delitos cometidos no trânsito não mais como culpa consciente, e sim como dolo eventual.”
Opinião semelhante apresenta Tasse (2009):
“As preocupações sociais com a violência no trânsito, campo em que o Brasil realmente apresenta números alarmantes, faz com que parcela considerável dos profissionais do Direito tenha buscado por via da admissão do dolo eventual nas ações praticadas na condução de veículo que lesionem a terceiros, uma forma de endurecimento, por via transversa, da legislação penal”.
Em determinadas situações, tal objetivo do Judiciário acaba por se tornar temerário em face da alta subjetividade quando está em análise casos que intrigam o sentimento pessoal dos julgadores, que apesar de, em tese, serem imparciais, fazem parte da mesma sociedade acima ilustrada. Dessa forma, muitas dessas situações são provenientes de casos extremamente complexos de se verificar e, por conseguinte, omitir uma opinião e, obviamente, tão mais difícil será omitir uma decisão, um julgamento, uma sentença condenatória.
A preocupação jurídica gira em torno da condenação do acusado, podendo ser por homicídio culposo em acidente de trânsito (art. 302, do CTB) ou homicídio doloso simples (art. 121, do Código Penal ), este último de conseqüências mais gravosas, pois sugere-se que o acusado agiu com intenção real de matar por assumir o risco do resultado.
Nesse contexto, o Poder Judiciário vem decidindo de forma antagônica de tribunal para tribunal, de turma para turma, de juiz para juiz. A doutrina, outrossim, não é pacífica quando o tema é culpa consciente e dolo eventual em situações de crimes em acidentes de trânsito, ressaltando-se a grande insegurança jurídica da sociedade e das partes envolvidas nessas situações.
2.2 O Dolo (dolo eventual) e a culpa (culpa consciente)
Concernente ao ponto primordial da discussão em tela há que se falar em apresentar os conceitos acadêmicos-doutrinários de culpa, em sua espécie consciente e, dolo, em sua espécie eventual. Define como conceito de culpa Mirabete (2010, p. 138):
“A conduta humana voluntária (ação ou omissão) que produz resultado atijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado.”
Logo, crime culposo, que é definido legalmente no art. 18, II, do Código Penal, é aquele cometido em decorrência de imprudência (excesso descuidado), negligência (falta de atenção) ou imperícia (falta de técnica) do acusado, ao passo que, sempre será cometido sem intenção em atingir um resultado criminoso. No contexto da culpa, há a criação doutrinária da espécie culpa consciente, definida por Capez (2010, p. 234) como:
“É aquela em que o agente prevê o resultado, embora não o aceite. Há no agente a representação da possibilidade do resultado, mas ele a afasta, de pronto, por entender que a evitará e que sua habilidade impedirá o evento lesivo previsto.”
Noutro giro, entende-se como crime doloso, na visão de Zaffaroni (1996) citado por Greco (2010, p. 51): “dolo é uma vontade determinada que, como qualquer vontade, pressupõe um conhecimento determinado”. Ou, na visão de Capez (2010, p. 223): “é a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal. Mais amplamente, é a vontade manifestada pela pessoa humana de realizar a conduta”. O dolo possui dois elementos em sua formação, quais sejam, a consciência, conhecimento do fato que constitui a ação típica; e, vontade, elemento volitivo de realizar esse fato (CAPEZ, 2010).
Noronha (2009, p. 135) conceitua a espécie dolo eventual como:
“No dolo eventual, o sujeito prevê o resultado e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência (“eu não quero, mas se acontecer, para mim tudo bem, não é por causa deste risco que vou parar de praticar minha conduta – não quero, mas também não me importo com a sua ocorrência”).”
Percebe-se, após a conceituação, que o liame entre dolo eventual e culpa consciente é mínimo, seria extremamente complexo criar elementos objetivos para avaliar o subconsciente dos acusados. Tais conceitos são diferenciados por Capez (2010, pp. 234-235), desta forma:
“A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir’). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível, não ocorrerá’). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo eventual o agente diz: ‘não importa’, enquanto na culpa consciente supõe: ‘é possível, mas não vai acontecer de forma alguma.”
Ante o exposto, verificado os conceitos, nota-se que na diferenciação citada pelo último doutrinador, não coincidentemente, ele utilizou do exemplo de um acidente de trânsito, no exemplo pode-se conferir que em um caso concreto não é simples afirmar se o acusado se conformava ou não com o resultado morte.
As duas teorias são adotadas pela doutrina e jurisprudência demonstrando-se claramente o objetivo central deste trabalho: o antagonismo, conforme será demonstrado no item seguinte.
2.3 A jurisprudência e doutrina antagônicas
Analisando-se a jurisprudência, ficará evidente a complexidade aqui defendida, como no julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que por unanimidade decidiram em manter a acusação por homicídio doloso aplicando-se o dolo eventual:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR – DOLO EVENTUAL – DESCLASSIFICAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DO OFENDIDO – INCOMPATÍVEL.
1. Não se pode excluir a possibilidade do dolo eventual nos delitos cometidos na direção de veículos automotores em vias públicas, quando, circunstâncias excepcionais de violação das regras de trânsito pela intensidade possibilitam que se admita […]” (TJRS, Recurso em Sentido Estrito 70023167158, Des. Rel. Elba Aparecida Nicolli Bastos, 3ª Câm. Criminal, j. 13/3/2008). (www.tjrs.jus.br).
Por outro lado, com entendimento totalmente diverso deste primeiro julgado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se posicionou pela reprovabilidade mínima da conduta do acusado, isto é, no sentido de desclassificar da competência do Tribunal do Júri (no caso da ocorrência de um crime doloso contra a vida) para o juízo singular (nesse caso, homicídio culposo), no julgado:
“PENAL – DELITO DE TRÂNSITO – EMBRIAGUEZ – EXCESSO DE VELOCIDADE – CONDUÇÃO NA CONTRA-MÃO DIRECIONAL – EVENTO MORTE IMPUTADO AO AGENTE A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL – IMPOSSIBILIDADE – JULGAMENTO – COMPETÊNCIA – JUÍZO SINGULAR.
Em tema de delitos de trânsito, não se coaduna com o entendimento de que possa estar o agente imbuído do elemento subjetivo relativo ao dolo eventual, se este não assumiu o risco da produção do resultado, por mais reprovável e imprudente tenha sido a conduta por si desenvolvida, conforme se verifica nas situações de embriaguez ao volante, excesso de velocidade e condução na contramão direcional, admitindo-se, neste caso, a hipótese de culpa consciente” (TJMG, AC 1.0024.02.836699-5/001. Des. Rel. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 6/6/2006). (www.tjmg.jus.br).
No mesmo sentido, utilizando-se ainda, da fundamentação da regra do prevalecimento de norma especial (Código de Trânsito Brasileiro – Lei n. 9.503, de 23/9/1997 ) sobre norma geral (Código Penal – Decreto-Lei n. 2.848, de 7/12/1940), ou seja, que a tipificação de homicídio culposo em acidente de trânsito (art. 302, do CTB) prevalece sobre a tipificação de homicídio doloso simples (art. 121, do CP), pelo simples fato que, como se trata de caso de acidente de trânsito, aplica-se em qualquer dos casos o Código de Trânsito, pois assim seria a mens legis, apontado por um julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – ACIDENTE DE TRÂNSITO – PRONÚNCIA – LESÕES CORPORAIS – REPRESENTAÇÃO – HOMICÍDIO – DOLO EVENTUAL AFASTADO – DESCLASSIFICAÇÃO. REMESSA PARA A VARA DE DELITOS DE TRÂNSITO.
I. A manifestação inequívoca das vítimas em representar contra os acusados pelo crime de lesões corporais impõe o prosseguimento da ação penal. II. Para ocorrência do dolo eventual não basta a previsibilidade do resultado. Necessária a aceitação voluntária e consciente do resultado. Por mais reprovável que seja a conduta, como direção perigosa, velocidade excessiva, disputas automobilísticas e outras, o elemento anímico é a culpa consciente, ou seja, a leviandade quanto a possível produção do resultado. III. Em tema de delitos de trânsito, pelo princípio da especialidade, deve ser aplicado o Código de Trânsito Brasileiro, que prevê tipos culposos e afasta a possibilidade de julgamento pelo Tribunal do Júri. IV. Recurso do Ministério Público provido parcialmente para que os réus sejam submetidos a julgamento pelo juiz singular pelos crimes de lesões corporais culposas praticados contra duas vítimas. Recurso da defesa parcialmente provido para afastar o elemento subjetivo (dolo eventual) e desclassificar os fatos para delito da competência da Vara de Delitos de Trânsito. Maioria” (20070111242232RSE, Relatora: Des. Sandra de Santis, 1ª Turma Criminal, julgado em 17/09/2009, DJ 01/12/2009 p. 120). (www.tjdft.jus.br).
Ante a verificação da controvérsia dos Tribunais, caberia ao Superior Tribunal de Justiça a competência de pacificar a jurisprudência em vista de diferentes interpretações à lei federal, nos termos do art. 105, III, c, da Constituição Federal. Entretanto, não é o que vem ocorrendo, há recentemente apenas decisões monocráticas que apontam a mesma tendência de decisões divergentes, in verbis:
“PENAL. PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA "C" DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. FALTA DE COTEJO ANALÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO EVENTUAL. CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO QUE NÃO EVIDENCIAM A ANTEVISÃO E A ASSUNÇÃO DO RESULTADO PELO RÉU. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA QUE SE IMPÕE. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Quanto à divergência, falta o cotejo analítico, nos moldes do que determina o art. 255 do RISTJ, impedindo o conhecimento do recurso quanto a esse aspecto. De se referir que não basta a simples transcrição de ementas ou trechos do julgado divergente, devendo a parte realizar o confronto explanatório da decisão recorrida com o acórdão paradigma, a fim de apontar a divergência jurisprudencial existente. A falta de análise dos julgados com o fito de evidenciar sua similaridade fática evidencia o descumprimento das formalidades insculpidas nos artigos 541, parágrafo único, do CPC, e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno desta Corte. 2. A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica. 3. O elemento cognitivo consiste no efetivo conhecimento de que o resultado poderá ocorrer, isto é, o efetivo conhecimento dos elementos integrantes do tipo penal objetivo. A mera possibilidade de conhecimento, o chamado “conhecimento potencial”, não basta para caracterizar o elemento cognitivo do dolo. No elemento volitivo, por seu turno, o agente quer produção do resultado de forma direta – dolo direto – ou admite a possibilidade de que o resultado sobrevenha – dolo eventual. 4. Considerando que o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, na hipótese em que a denúncia limita-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade), não há como concluir pela existência do dolo eventual. Para tanto, há que evidenciar como e em que momento o sujeito assumiu o risco de produzir o resultado, isto é, admitiu e aceitou o risco de produzi-lo. Deve-se demonstrar a antevisão do resultado, isto é, a percepção de que é possível causá-lo antes da realização do comportamento. 5. Agravo a que se nega provimento” (Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.043.279/PR, Relatora: Ministra Jane Silva [desembargadora convocada co Tribunal de Justiça de Minas Gerais], Dje: 03/11/2008). (www.stj.jus.br).
Nota-se do supramencionado julgado o posicionamento de não se adotar o dolo eventual para a conduta do acusado, decidindo-se pela desclassificação do crime para homicídio culposo. Por outro lado, a mesma corte se posicionou a favor da manutenção que vinha desde o juízo de primeira instância no que diz respeito atribuir à conduta do acusado dolo eventual, isto é, confirmando que este possuía conhecimento de estar cometendo um homicídio e uma vontade eventual de aceitar o resultado morte, fundamentando ainda que, é competência do tribunal do júri o ocorrido pelo fato de nesta instância prevalecer o princípio do in dubio pro societate, isto é, em dúvida pela pronúncia, deve o juiz optar pelos anseios da sociedade, devendo esta decidir pelo dolo eventual ou não da conduta do acusado, in verbis:
“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL E PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO. DOLO EVENTUAL. COLISÃO DE VEÍCULOS. EXCESSO DE VELOCIDADE. PRONÚNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. PRETENDIDA IMPRONÚNCIA OU DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE. SIMPLES REEXAME DE PROVAS. SENTENÇA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Não há falar em ofensa ao art. 619 do Código de Processo Penal se todas as questões necessárias ao deslinde da controvérsia foram analisadas e decididas, ainda que de forma contrária à pretensão do recorrente, não havendo nenhuma omissão ou negativa de prestação jurisdicional. 2. Não cabe, na via estreita do recurso especial, revisar o entendimento firmado pelas instâncias ordinárias no sentido de haver prova da materialidade e indícios suficientes de autoria para que seja o réu submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri pela prática do crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do Código Penal). 3. No caso, não se trata de diferenciar, em tese, o dolo eventual da culpa consciente, mas sim do mero exame de matéria de fato, tendo em vista que a fundamentação constante da sentença de pronúncia e do acórdão impugnado demonstra a existência de elementos mínimos suficientes para a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal Popular, que examinará as questões controvertidas. 4. O simples fato de se tratar de delito decorrente de acidente de trânsito não implica ser tal delito culposo se há, nos autos, dados que comprovam a materialidade e demonstram a existência de indícios suficientes de autoria do crime de homicídio doloso. Precedentes. 5. A sentença de pronúncia, à luz do disposto no art. 408, caput, do CPP, deve, sob pena de nulidade, cingir-se, motivadamente, à materialidade e aos indícios de autoria, visto se tratar de mero juízo de admissibilidade da acusação. No caso, o decisum foi proferido com estrita observância da norma processual, fundamentando-se em elementos suficientes para pronunciar o réu, tais como o interrogatório, os depoimentos das testemunhas, além do laudo pericial oficial. 6. Tratando-se de crime doloso contra a vida, o julgamento pelo Tribunal do Júri somente pode ser obstado se manifestamente improcedente a acusação, cabendo a solução das questões controvertidas ao órgão competente, devido à aplicação, na fase do judicium accusationis, do princípio in dubio pro societate. 7. Agravo regimental improvido” (Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 850.473/DF. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. DJ: 07/02/2008). (www.stj.jus.br).
E, por fim, o tema começa a chegar ao Pretório Excelso, não possuindo, todavia, quantidade de julgamentos consideráveis e sim, apenas algumas decisões monocráticas, ressaltando-se que a temática em tela ainda não chegou a ser debatida em plenário, onde poderá ser alvo de grande discussão jurídica, pois nem no Supremo Tribunal Federal o tema é pacífico, como se verifica in verbis:
“DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO. HOMICÍDIO DOLOSO. DOLO EVENTUAL. NOVA VALORAÇÃO DE ELEMENTOS FÁTICO-JURÍDICOS, E NÃO REAPRECIAÇÃO DE MATERIAL PROBATÓRIO. DENEGAÇÃO. 1. A questão de direito, objeto de controvérsia neste writ, consiste na eventual análise de material fático-probatório pelo Superior Tribunal de Justiça, o que eventualmente repercutirá na configuração do dolo eventual ou da culpa consciente relacionada à conduta do paciente no evento fatal relacionado à infração de trânsito que gerou a morte dos cinco ocupantes do veículo atingido. 2. O Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, atribuiu nova valoração dos elementos fático-jurídicos existentes nos autos, qualificando-os como homicídio doloso, razão pela qual não procedeu ao revolvimento de material probatório para divergir da conclusão alcançada pelo Tribunal de Justiça. 3. O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). 4. Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. 5. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). 6. Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. 7. O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis. Não houve julgamento contrário à orientação contida na Súmula 07, do STJ, eis que apenas se procedeu à revaloração dos elementos admitidos pelo acórdão da Corte local, tratando-se de quaestio juris, e não de quaestio facti. 8. Habeas corpus denegado” (STF, HC n. 91159/MG. Relator(a): Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJe- 23-10-2008). (www.stf.jus.br).
In casu, manteve-se a pronúncia por homicídio doloso fundamentando-se que pelas circunstâncias fáticas era cabível adotar-se a teoria do dolo eventual na tipificação do homicídio, entretanto, na pouca jurisprudência do STF acerca da temática em foco, observa-se certa cautela daquela Suprema Corte em não entrar nas questões de mérito deste tema, alegando-se que haveria uma medida de supressão de instância, mormente quando a questão é analisada em sede de habeas corpus, por oportuno insta ressaltar que com o atual sistema técnico para elaboração de Recursos Extraordinários (art. 102, III, da Constituição Federal c/c art.543-A, do Código de Processo Civil), se a matéria não for pacificada no Superior Tribunal de Justiça, por conseqüência lógica jurídica, não será o STF que irá fazê-la em breve, porque será complexo argüir hipóteses constitucionais para a análise do mérito das questões que envolvem a temática em tela pelo Pretório Excelso, além de se poder se afastar tecnicamente a análise fática, o que compromete inclusive, os Recursos Especiais sobre tal matéria. Isto tudo pode ser observado na transcrição de um trecho do voto da Ministra Carmén Lúcia em um caso que envolve o assunto em pauta:
“[…] Da análise do cenário fático delineado, constata-se a insubsistência do argumento recursal, no sentido de afastar o dolo eventual, tendo em vista que os elementos de prova coligidos demonstram que o recorrente participava, com seu veículo, de disputa automobilística denominada ‘racha’, realizada em via pública, desenvolvendo exagerada velocidade” (fls. 403-405).
[…] Por fim, para se decidir de forma diversa do Tribunal a quo, seria imprescindível adotar outra versão dos fatos e das provas que não aquela utilizada para fundamentar o acórdão recorrido, o que só seria possível mediante reexame do conjunto probatório que permeia a lide, ao que não se presta o recurso extraordinário” (Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal). (Agravo de Instrumento n. 779275/CE. Relator (a): Min. Cármen Lúcia. DJe 17/02/2010). [grifo nosso]. (www.stf.jus.br).
Em um sentido contrário está um julgado do ano de 1998, no qual se analisou o mérito e ainda se decidiu pela desclassificação do crime para homicídio culposo:
“Por maioria, a Turma deferiu habeas corpus para anular acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, que confirmara sentença de pronúncia do paciente, envolvido em acidente de trânsito com vítima fatal, considerado o dolo eventual, e desclassificar o crime para homicídio culposo. Entendeu-se que o paciente, trafegando na contramão, em cidade na qual residia há pouco tempo, sem o domínio maior do sentido dos logradouros, não assumira, conscientemente, a possibilidade de produzir o evento morte. Vencidos os Ministros Néri da Silveira e Carlos Velloso que, considerando necessário o reexame de provas, indeferiam o writ. HC 76.778-RO, rel. Min. Marco Aurélio, 28.4.98” (Informativo do STF n. 108: Dolo Eventual e Culpa Consciente). (www.sft.jus.br).
Não obstante a controvérsia nos tribunais, a doutrina, outrossim, não é pacífica na temática, nesse sentido, pois como afirma Nucci (2009, pp.202-203):
“Dolo eventual nos graves crimes de trânsito: tem sido posição adotada, atualmente, na jurisprudência pátria, considerar a atuação do agente em determinados delitos cometidos no trânsito não mais como culpa consciente, e sim como dolo eventual.
[…] Se, apesar disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso.”
Noutro giro, Bitencourt (2007, p. 114) afirma de modo diverso à tendência do Poder Judiciário em decidir pelo dolo eventual:
“Os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado.”
Logo, verifica-se que os acusados por cometerem crimes de homicídio em acidentes de trânsito, mais precisamente aqueles que atuam embriagados ou em situação de competições ou exibições públicas sem autorização, estão à mercê de uma verdadeira loteria jurídica, proveniente da decisão que leva em conta sua real intenção no momento do crime, se era pelo desapreço ou não à vida alheia que será sentenciado pela antagônica justiça pátria.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tipificação e suas teorias da conduta humana é tema que merece maiores discussões e reflexões quando se envolve crimes de acidentes de trânsito com vítimas fatais, pois, por um lado está a sociedade exigindo uma Justiça que satisfaça a sensação de impunidade e por outro, as partes envolvidas e a efetiva aplicação da lei penal, que sem dúvida, possui maiores complexidades técnicas para a sua efetivação.
Tal preocupação é nítida quando observados os casos práticos, pois, exemplificando, o acusado quando adotado a condenação por conduta dolosa, responderá por homicídio doloso, com pena mínima de 6 (seis) anos de reclusão (art. 121, CP), vedação de fixação de fiança (art. 323, I, CPP), início de pena a ser cumprido em regime semi-aberto ou fechado. Noutro giro, o acusado que for condenado por homicídio culposo por acidente no trânsito, terá pena mínima de 2 (dois) anos de detenção (art. 302, CTB), tendo teoricamente que cumpri-la em regime inicialmente aberto, teoricamente, porque tecnicamente terá sua pena substituída por uma pena restritiva de direitos (art. 44, CP), passível ainda de causa extintiva de culpabilidade (art. 121, §5º, CP – perdão judicial). Logo, tangendo-se brevemente sobre as conseqüências práticas de uma ou outra condenação é visível a disparidade das características de cada uma, não podendo o acusado por um crime de homicídio ficar a mercê desta evidente loteria jurídica.
Ademais, há que se observar que existe um esforço de parte da jurisprudência pátria em adequar casos mais teratológicos a uma conduta dolosa do acusado, haja vista alguns terem cometido crimes em situações de evidente dolo eventual, contudo, com cautela, não tornando isto como algo famigerado ou automático, como, infelizmente, às vezes se verifica dos órgãos acusadores, se valorando assim o mais puro sentido da palavra justiça.
Conclui-se em meio à pesquisa realizada, que a tendência em se tipificar determinadas condutas criminosas no trânsito como dolosas, por dolo eventual, já é consolidada pela jurisprudência, entretanto, outra grande parte dos magistrados não entendem ser esta tendência a mais correta, decidindo ser o homicídio ocorrido em acidente de trânsito sempre um crime culposo em que no máximo haverá uma culpa consciente, não tendo o acusado de forma alguma aceitado o resultado morte da vítima. É indiscutível que doutrina e jurisprudência terão que encontrar uma forma correta para tratar o presente tema, criando-se esforçadamente alguns critérios objetivos para a tipificação dos graves crimes de trânsito, evitando-se a insegurança jurídica que envolve o tema.
Informações Sobre o Autor
Roberto Gonçalves Dias Júnior
Advogado Criminalista pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Projeção em Brasília/DF