Culpa imprópria e sua aplicabilidade em face do instituto da tentativa (conatus)

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Este tema trata-se de uma questão muito complexa e que não se encontra unânime na doutrina. Culpa imprópria é um instituto do direito penal que reflete aos olhos de muitos juristas controvérsias, ainda mais quando aplicada em face da tentativa, como regra não suporta crimes culposos. Este breve esboço é uma das questões que serão abordadas por este artigo.

I) Introdução

Este texto objetiva desenvolver reflexão sobre a questão da culpa imprópria, instituto pouco difundido no direito penal e de bastante complexidade, de fronte ao instituto da tentativa (conatus), sendo esta última até pouco tempo atrás unânime em não refletir a culpa como passível de ser aceita nos crimes tentados. Almeja-se aqui por meio deste artigo, sem a pretensão de esgotar assunto tão complexo em tão breve análise, verificar com base nesta relação conflitante, liames positivos e negativos existentes entre ambos os institutos: culpa imprópria e tentativa.

II) Peculiaridades da Culpa Imprópria

Culpa imprópria, também conhecida como culpa por assimilação, por equiparação ou por extensão, é aquela em que o agente, incidindo sobre erro de tipo inescusável ou vencível, supõe estar diante de uma causa de exclusão de ilicitude. Pratica ato, visando à proteção de seu bem, ou seja, causa que justificaria, licitamente, um fato típico. Um exemplo utilizado pelo jurista Damásio E. de Jesus figura de forma apropriada para ilustrar este conceito: “(…) suponha-se que o sujeito seria vítima de crime de furto em sua residência em dias seguidos. Em determinada noite, arma-se com um revólver e se posta de atalaia, à espera do ladrão. Vendo penetrar um vulto em seu jardim, levianamente (imprudentemente e negligentemente) supõe tratar de um ladrão. Acreditando estar agindo em legítima defesa de sua propriedade, atira na direção do vulto, matando a vítima. Prova-se, posteriormente, que não se tratava do ladrão contumaz, mas sim de terceiro inocente”. (Direito Penal – parte geral-, 2003, página 304)

Na verdade, esta espécie de culpa (imprópria) é muito complexa e diferenciada das demais. Enquanto ela inicia com uma conduta voluntária, objetivando um resultado naturalístico, as outras se iniciam com uma conduta voluntária, porém sem almejarem o resultado. Nos arts. 20, §1°, 2° parte, e 23, parágrafo único, do Código Penal, estão previstas as hipóteses em que é possível a aplicação deste instituto, culpa imprópria.

Ora, vê-se, claramente, um desconexo explícito entre ambas as espécies, por isso discute-se tanto na doutrina este tipo de “culpa”. Muito se assemelha os elementos da culpa, ora em análise, com os elementos do “dolo”. No dolo a trajetória da conduta até ao alcance do resultado querido é idêntico à trajetória da culpa imprópria, exceto quanto ao estar acobertado por erro de tipo, característica peculiar da culpa por assimilação.

Vale destacar a análise de DAMÁSIO (Direito Penal – parte geral -, 2003, página 304), em dizer que “(…) na culpa imprópria existe um crime doloso e que o legislador aplica a pena do crime culposo”.

Para Fernando Capez, “(…) na conduta inicial da formação do erro, configura-se culpa; a partir daí, no entanto, toda a ação é considerada dolosa. Logo, há um pouco de dolo e um pouco de culpa na atuação, devendo-se aplicar pena própria para o crime culposo”. (Curso de Direito Penal – parte geral -, 2003, página 196)

Diante deste tópico, devemos concluir que realmente a culpa imprópria é fundada em conduta que se inicia viciada por erro de tipo essencial inescusável ou vencível e que, a partir daí, figura-se o dolo. Ressalta-se, novamente, que este dolo continua sendo acobertado por erro e, dessa forma, causando uma ilusão sobre toda a realidade do fato iminente.

III) A incidência do Erro de Tipo em face da Culpa Imprópria

Como anteriormente citado, a culpa imprópria é dissimulada pelo erro de tipo essencial da forma inescusável ou vencível. Dessa maneira, alude nosso Código Penal que “o erro sobre os elementos constitutivos do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei” (art. 20, CP).

Em observância a tal preceito disposto nesta vertical, procurou o legislador ordinário equiparar o crime doloso ao crime culposo, quando no primeiro sobreviver o erro de tipo essencial vencível, quando acobertado por alguma discriminante putativa ou pelo excesso nas causas justificativas.

Deverá levar em conta, também, se houve ou não, no momento em que se viciou o ato pelo erro, alguma das modalidades de culpa que estão positivadas no art. 18, do Código Penal (imprudência, negligência ou imperícia).

Assim sendo, com fundamento nas sustentações aqui apresentadas, pode-se afirmar que a culpa imprópria sem a incidência do erro de tipo da forma inescusável ou vencível é, simplesmente, o dolo. Portanto, segue este tipo de erro como categoria essencial para a existência do instituto da culpa, presente estudo.

Esta vertente é compartilhada por DAMÁSIO, CAPEZ e MIRABETE, que argumentam esta sistemática sem contradições, seguindo, em regra, o mesmo preceito.

IV) Tentativa X Culpa (imprópria): as duas correntes divergentes

“Diz-se crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias a vontade do autor” (art. 14, II do CP). Esta é a definição da tentativa que o legislador encontrou e positivou em nosso ordenamento jurídico penal. O Código Penal Brasileiro adotou a teoria objetiva (formal) e exige que o autor tenha realizado de maneira efetiva uma parte da própria conduta típica, penetrando, assim, no núcleo do tipo. O conatus opera quando o agente delituoso começa a execução de seu escopo criminoso e é impedido de chegar ao resultado querido, por circunstâncias alheias a sua vontade.

Uma situação muito importante a ser refletida, e que será posteriormente analisada, é se a tentativa permite ou não sua aplicação nos crimes culposos. A regra diz que não. Mas, boa parte da doutrina encontra fundamento plausível de ser abordado por este artigo.

IV.a) Da impossibilidade da tentativa em crime culposo: Juristas como Damásio E. de Jesus, Paulo José da Costa Jr. e Ney Moura Teles, sustentam a tese de que não há possibilidade de haver tentativa de crime culposo. Seguem o entendimento de que não se configura a tentativa sem a intenção criminosa e que o pressuposto essencial do conatus é o dolo, sendo, sem ele, impossível ocorrer à tentativa.

O que na verdade ocorre é que estes autores não sustentam a tese que figura a existência da culpa imprópria, ou seja, não a reconhecem como sendo uma exceção da regra. Acreditam que a culpa imprópria, na verdade, não é uma espécie tradicional de culpa, mas, sim, um dolo disfarçado, ao qual, por motivos de política criminal, o legislador resolveu punir como crimes culposos.

Assim, aquele exemplo apresentado outrora, em que o agente comete homicídio acreditando estar em legítima defesa de sua propriedade, caso a vítima viesse sobreviver, seria o autor indiciado por tentativa de homicídio doloso, aplicando-se a pena de um homicídio culposo tentado. Essa é a solução encontrada pela corrente contrária à tese da tentativa de crime culposo.

IV.b) Da possibilidade da tentativa em crime culposo:  neste seguimento, juristas de grande prestígio como Fernando Capez, Edgard Magalhães Noronha, Júlio Fabbrini Mirabete e Aníbal Bruno,  compõe e sustentam este outro lado divergente.

Conforme analisado, a culpa imprópria é uma ação que visa um resultado naturalístico, ludibriada por um erro de tipo essencial inescusável ou vencível, em que o agente supõe estar diante de uma exclusão de ilicitude. Neste caso, só sobrevive a culpa se o agente estiver incidindo sobre erro, caso contrário haveria dolo e não culpa. Portando, a culpa se configura logo no início, a partir daí, a ação é dolosa, mas refletida sobre erro, que exclui o dolo e resiste à culpa, em face do aspecto normativo do caput do art. 20 do CP.

Assim, é o caso do “indivíduo, que, caminhando à noite em estrada deserta, vê um vulto surgir à sua frente e sem mais razão, julgando-se estar em perigo de vida e, portanto em legítima defesa, dispara todo o seu revolver sobre ele, mas apenas o fere levemente”. (Crimes Contra a Pessoa, Aníbal Bruno, 1978, página 128).

Com fundamento no exemplo citado surgem algumas indagações importantes para a análise em questão: é possível vislumbrar, neste exemplo, a presença da culpa imprópria? O agente foi impedido por circunstancias alheias a sua vontade de chegar ao resultado querido?

_Quanto à primeira questão, diante de todo o enredo apresentado neste artigo, pode-se, claramente, apreciar a presença do instituto da culpa imprópria, pois o agente estava recaído sobre erro, pensando estar agindo em legítima defesa (putativa), quando na realidade estava atacando um inocente.

_Quanto à segunda questão, o aninus do autor do delito, conforme todo o entrecho do caso fictício em rogo, era de matar e não de lesionar. Sendo assim, pode-se dizer que o agente, realmente, foi impedido por circunstâncias alheias a sua vontade de produzir o resultado traçado, consequentemente, aparecendo à figura do conatus.

Assim sendo, então, as duas respostas formuladas apontam a justificação que esta corrente doutrinária defende. Neste último exemplo apresentado, houve culpa imprópria e, também, existiu o conatus. Fazendo uma fusão dessas duas respostas, podemos dizer que houve tentativa de homicídio culposo. Em decorrência disto, sustenta esta corrente doutrinária a possibilidade de poder haver crime culposo tentado.

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Considerações Finais

Tendo como subsídio as informações textuais, é fato que a questão em comento não encerra pacificidade, alcançando tal complexidade que não se encontra unânime na doutrina.

Tanto as congruências quanto as divergências apresentadas neste texto são bem argumentadas. Todas chegam bem próximas de uma boa razão.

Em observância as informações prestadas quanto à teoria da culpa imprópria, prestigia este artigo o referencial dos adeptos a este seguimento, que outrora foi discutido. Com base em todas estas sustentações, compartilha este escrito com o entendimento daqueles que aceitam a culpa imprópria como sendo uma das ramificações do instituto da culpa.

Dessa forma, fica demonstrada a possibilidade de poder haver uma exceção quanto à admissibilidade de existir um crime culposo tentado, exceção da tentativa em comportar a culpa. Mas vale avultar a defesa contrária a esta tese, que é de grande valor e de bastante sustentáculo.

Pois bem, como foi dito anteriormente, a questão discutida é um assunto que não encontra uma exata definição na doutrina, devido a sua complexidade. Portanto, o debate está aberto!

 

Referências bibliográficas:
BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. 4° Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp 128-129.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral -, Volume I. 6° Edição. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 191-200; 223-228.
COSTA JR., Paulo José da. Curso de Direito Penal – parte geral -, Volume I. 3° Edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp 73-76; 87-88.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – parte geral -, Volume I. 27° Edição. São Paulo: Saraiva, 2003, pp 297-306; 335-346.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – parte geral -, Volume I. 21° Edição. São Paulo: Atlas, 2004, pp 145-153; 155-163.
NORONHA, Magalhães E. Direito Penal, Volume I. 36° Edição. São Paulo: Saraiva, 2001, pp 124-130; 140-144.
TELES, Ney Moura. Direito Penal, Volume I. 2° Edição. São Paulo: Altas, 1998, pp 165-174; 190-192.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Flávio Freitas Pereira Mendes

 

Acadêmico do Curso de Direito do UniEuro – Centro Universitário (Brasília) e estagiário da Defensoria Pública do Distrito Federal (Núcleo Samambaia).

 


 

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