Marcus Filipe Freitas Coelho [1]
Resumo: O presente artigo abordará os aspectos decorrentes da exclusão da cobertura securitária prevista nos contratos de seguro patrimonial e de vida nas hipóteses de acidente de trânsito resultante de embriaguez do segurado. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1.738.247/SC e o Recurso Especial nº 1.665.701/RS, adotou o entendimento de que em se tratando de seguro de veículo, se o causador do acidente estiver embriagado e for segurado, ou for pessoa a quem ele tenha dado a condução do veículo, pelo fato de ter agravado o risco, o segurado não fará jus à indenização, o que não exclui, contudo, a responsabilidade da seguradora de indenizar o terceiro prejudicado. Por outro lado, no caso de seguro de vida, mesmo estando embriagado o segurado, tal fato não exclui a obrigação da seguradora de indenizar seus beneficiários vítimas do acidente. Assim, serão analisadas as origens e a natureza jurídica do contrato de seguro, sob a perspectiva da tutela do consumidor, parte vulnerável na relação de consumo.
Palavras-chave: Contrato de seguro. Acidente de trânsito. Embriaguez.
Abstract: This article will address aspects arising from the exclusion of insurance coverage provided for in property and life insurance contracts in the event of a traffic accident resulting from the insured’s drunkenness. Recently, the Superior Court of Justice, when judging Special Appeal No. 1,738,247 / SC and Special Appeal No. 1,665,701 / RS, adopted the understanding that in the case of vehicle insurance, if the cause of the accident is drunk and is insured, or is a person to whom he has given the driving of the vehicle, due to the fact that he has aggravated the risk, the insured will not be entitled to the indemnity, which does not exclude, however, the insurer’s responsibility to indemnify the injured third party. On the other hand, in the case of life insurance, even if the insured is drunk, this does not exclude the insurer’s obligation to indemnify its beneficiaries who are victims of the accident. Thus, the origins and legal nature of the insurance contract will be analyzed, from the perspective of consumer protection, a vulnerable part of the consumption relationship.
Keywords: Insurance contract. Traffic accident. Drunkenness.
Sumário: Introdução. 1. Da tutela do segurado e beneficiário do contrato de seguro à luz da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor. 2. Da proteção conferida pelo ordenamento jurídico diante de cláusulas contratuais abusivas nos contratos de adesão. 3. Do contrato de seguro. 3.1. Do contrato de seguro patrimonial (danos). 3.2. Do contrato de seguro de vida. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Há muito discute-se na jurisprudência e na doutrina a validade de cláusulas contratuais que negam indenização a terceiros e ao segurado em decorrência de acidente de trânsito provocado por esse último após a ingestão de bebida alcoólica.
Prevista no artigo 757 do Código Civil, o contrato de seguro é uma das espécies típicas contratuais, o qual determina que o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Referido dispositivo legal prevê as hipóteses de seguro de vida e o seguro de coisa, em decorrência de danos. Apesarem de guardarem semelhança, as duas modalidades são distintas.
Tanto é, que recentemente o Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa discussão em dois julgados bastante polêmicos, o Recurso Especial nº 1.738.247/SC e o Recurso Especial nº 1.665.701/RS, ambos oriundos da Terceira Turma, ao analisar os efeitos jurídicos decorrentes do acidente automobilístico causado por embriaguez do segurado, decidindo que são diferentes as consequências do acidente causado por segurado na condução de veículo, estando sob efeito do álcool, no tocante ao contrato de seguro de veículo (seguro patrimonial) e quanto ao contrato de seguro de vida.
Assim, o presente artigo fará uma abordagem acerca da natureza jurídica dos contratos de seguro, tendo como ponto de partida a tutela conferida ao segurado e beneficiário na qualidade de consumidores, bem como analisará o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça nos julgados acima mencionados.
Da tutela do segurado e beneficiário do contrato de seguro à luz da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor
A tutela do consumidor não é apenas um objetivo do legislador ordinário; foi alçada a patamar constitucional “qualificado”, uma vez que se insere dentre os direitos e garantias individuais previstos pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Com o advento de um Estado Democrático de Direito, pressupõe-se que o Estado ofereça tutela diferenciada a todos aqueles que ostentem alguma espécie de “vulnerabilidade”; e, neste cenário, a proteção dispensada ao consumidor – individualmente considerada – acaba representando – obliquamente e em última análise – a preservação da própria massa consumerista como um todo e de um “mercado” caracterizado por condições mínimas de civilidade.
Destacando a importância da alteração de perspectiva legitimadora de uma tutela do consumidor – ao mesmo tempo em que ressalvou a dependência de sua implementação da regulamentação decorrente da superveniência de legislação ordinária sobre a matéria (norma constitucional de eficácia limitada) –, eis a lição precisa de José Afonso da Silva:
“O constituinte inseriu a defesa do consumidor entre os direitos e garantias individuais e coletivos. Não se trata de direito individual. Pode ser concebido como direito coletivo. O que é de ressaltar-se é sua inserção entre os direitos fundamentais, com o quê se erigem os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugue-se isso com a consideração do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da ordem econômica. Tudo somando, tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. Isso naturalmente abre larga brecha na economia de mercado, que se esteia, em boa parte, na liberdade de consumo, que é a outra face da liberdade do tráfico mercantil, fundada na pretensa lei da oferta e da procura.
[…]
A promoção da defesa do consumidor adquiriu status constitucional. A Constituição só estabeleceu a previsão esquemática do direito do consumidor, por meio da obrigação estatal de prover a sua defesa. Ela criou uma regra entre os direitos e garantias individuais e coletivos de eficácia limitada, porque sua aplicabilidade ficou na dependência de lei ordinária, que, no entanto, já foi promulgada – como o quê a norma se tornou eficaz e aplicável na forma da lei –, que é o Código de Defesa do Consumidor, estabelecido pela Lei 8.078/90”.[2]
Deste modo, tal preceito constitucional, ainda que reputado de eficácia limitada pela doutrina constitucionalista prevalecente, foi regulamentado no âmbito ordinário pela Lei Fed. nº 8.078 que, promulgada em 11 de setembro de 1990, instituiu o Código de Defesa e Proteção ao Consumidor. E em um tal panorama, em lugar de uma meramente teórica interpretação sistemática, faz-se necessária a atuação conjugada de diversos expedientes normativos de origens as mais diversas, todos coordenados por uma teleologia comum.
Contudo, não se pense que a disciplina específica do direito contratual contemporâneo – notadamente pela via da disposição a respeito da contratação “por adesão” – deflui exclusivamente do Código de Defesa e Proteção ao Consumidor; diferentemente, o próprio Código Civil em vigor contempla alguns aspectos peculiares a tal sorte de relações jurídicas peculiares.
De maneira que a conduta das Seguradoras que impõe cláusulas que negam indenização às vítimas de acidentes de trânsito por embriaguez de seus segurados, acaba por repercutir sobre todo o sistema jurídico.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a atividade securitária, assim como todas as atividades negociais praticadas pela sociedade, passou a ser enfocada sob a sua ótica.
O conceito de consumidor está positivado no artigo 2º do CDC, que traz a seguinte redação: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
O artigo 3º do mesmo Diploma Legal traz o conceito de fornecedor, ao dispor que: “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
E o parágrafo segundo o referido dispositivo legal é claro ao prever que a atividade securitária é considerada como serviço para fins de incidência das normas consumeristas, in verbis:
Insta esclarecer, nesse momento, que o presente artigo não abordará o conceito de “destinatário final” previsto no artigo 2º para fins de aplicação da Lei Fed. nº 8.078/90 nos casos de segurados pessoas jurídicas, fornecedoras de bens e serviços, que contratam o seguro de responsabilidade civil ou de vida, normalmente através dos conhecidos seguros coletivos.
2. Da proteção conferida pelo ordenamento jurídico diante de cláusulas contratuais abusivas nos contratos de adesão
Todos os ramos do Direito têm experimentado os impactos do advento de uma “sociedade de massa” que, de modo avassalador acaba por colocar em xeque as estruturas tradicionais com que lidavam os operadores jurídicos mais tradicionais. No âmbito do Direito Público, por exemplo, em lugar de um Processo Civil caracterizado pelas demandas individuais, ganham relevo as ações coletivas, caracterizadas pela tutela jurisdicional de um sem número de titulares de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos – todos eles envolvidos por uma essência consistente na necessidade de dispensa de um tratamento equivalente a situações dotadas de similaridade indiscutível.
E no Direito Privado o mesmo se verifica: no âmbito da Responsabilidade Civil, por exemplo, percebemos que ao lado da responsabilidade civil tradicional (subjetiva) – calcada na ideia de “culpa” e voltada à preservação de interesses individuais – aflora um novo modelo (objetivo), estribado na noção de “risco” e propenso a resguardar interesses de grupamentos de pessoas.
Da mesma forma, o direito contratual contemporâneo se encontra embebido da necessidade de se prestigiar uma técnica de contratação que reduz o tempo de negociação entre as partes – reduzindo-se os “custos de transação” inerentes à celebração do ajuste – ao mesmo tempo em que submete a constante supervisão o aparato jurídico concebido unilateralmente por uma das partes da relação jurídica contratual (designado contrato “por adesão”); isso se dá porque esta, ordinariamente, buscará preservar apenas e tão somente os seus interesses quando da elaboração do programa de futuras contratações.
Diante da otimização dos fatores de produção empenhados na contratação “massificada”, Darcy Bessone de Oliveira Andrade não entrevê mazelas intransponíveis no instituto do contrato “por adesão”. Considerando que a isonomia seria prestigiada pelo instituto à vista de uma homogeinização entre os potenciais interessados em contratar com o empresário, o referido autor considera que o contrato “por adesão” acabaria tão somente por suprimir uma dispensável fase de puntuação que não se justificaria em contextos padronizacionais, que autorizariam a empresa moderna:
“[…] organizada para atuar em grande, a prever um tipo ideal de contratante, cuja conduta se ajusta às exigências do ambiente e para quem formula o bloco de cláusulas. Assim, pelo menos em princípio, cria-se uma tipicidade, uma uniformidade de comportamento da empresa em face de seus clientes eventuais, capaz de tornar, em regra, inúteis as discussões prévias e de assegurar ao aderente tratamento justo, porque impessoal. O equilíbrio contratual obtém-se, assim, a despeito da ausência das tratações e da desigualdade econômica das partes”.[3]
Tal postura efetivamente causa certa surpresa, uma vez que o mesmo autor, já em 1949, entrevia os perigos a que pode estar exposta a contratação massificada:
“O interesse da distinção se prende, sobretudo, à apreciação das cláusulas da convenção, que não pode ficar rigorosamente sujeita às regras relativas aos contratos paritários […] por vêzes, a adesão tem de se realizar rapidamente. Tais circunstâncias especiais, diversas das que se verificam em contratos cujas cláusulas sejam detalhadamente debatidas e esclarecidas, aconselham maior benignidade em relação ao aderente, quer quanto à interpretação da convenção, quer mesmo a respeito da aceitação de certas disposições secundárias […]”.[4]
Por outro lado, reforçando muito acertadamente os benefícios da contratação “por adesão” – notadamente naquilo que concerne à redução dos custos de contratação – devidamente contrabalançados pelos seus riscos, assim preleciona Enzo Roppo:
“O emprego de contratos standard simplifica e acelera de modo radical os processos de conclusão dos negócios, determinando – através da consequente economia de tempo, de meios e de atividade – a redução daqueles ‘custos de contratação’, que as técnicas de negociação individual (fundadas sobre a discussão de cada uma das cláusulas com cada um dos clientes) contribuiriam, ao invés, para aumentar. Por outro lado, a predisposição de esquemas contratuais uniformes e rígidos, destinados a aplicar-se em todas as relações de um certo tipo, funciona (ainda antes de como imposição de regras vinculativas para os clientes da empresa), como limite à iniciativa e ao arbítrio individual dos auxiliares do empresário, encarregados das atividades de contratação, assegurando, assim, à estratégia da empresa, neste sector, aquela necessária homogeneidade, aquela coordenação a nível central, que seriam prejudicadas se a representantes, agentes, caixeiros, fosse deixada plena liberdade de discutir com a contraparte e determinar, concretamente, o conteúdo de cada contrato.
[…]
Não há dúvida de que o emprego difundido de contratos standad constitui produto ineliminável da moderna organização da produção e dos mercados, na exacta medida em que funciona como decisivo factor de racionalização e de economicidade da actuação empresarial. Um resultado deste género é certamente desejável em si e por si. Mas para uma valorização complexiva do fenómeno, não se pode descurar que isso só se consegue com um preço muito grave: o de privar uma das partes de cada relação – em concreto, toda a massa de consumidores, adquirentes e utentes – de toda a possibilidade de real decisão e influência, em ordem à determinação de seu conteúdo, que acaba por lhes ser imposto de forma unilateral.
[…]
Mas não é só: deve acrescentar-se que grande parte das vezes as empresas predisponentes fazem deste seu poder de determinação unilateral e arbitrário do conteúdo das relações contratuais, um uso vexatório em prejuízo dos aderentes; as cláusulas uniformes impostas a estes últimos são, em regra, conformadas de modo a realizar exclusivamente os interesses da empresa, garantindo-lhe vantagens a que correspondem, a cargo da contraparte, riscos, ónus e sacrifícios, bem mais gravosos do que aqueles que lhes deveriam caber, com base nas normas dispositivas, que como sabemos, tendem a actuar uma composição justa e equilibrada dos interesses em conflito (basta pensar no abuso que nos contratos standard se faz das cláusulas que excluem ou limitam a responsabilidade que por lei impenderia sobre o predisponente, anulando, assim, uma garantia essencial dos interesses do aderente)”.[5]
Por tal ordem de ideias, o legislador civil de 2002 instituiu quanto à contratação por adesão dois dispositivos de importância singular, relacionados à hermenêutica de tais negócios jurídicos e à abdicação de direitos por meio de sua utilização. É o que se extrai do art. 423 do Código Civil em vigor, in verbis:
Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
Quanto ao primeiro dispositivo (art. 423 CC), temos assim que sempre que a celebração de um negócio jurídico for caracterizada pela simples adesão de uma das partes a um regime jurídico inteiramente concebido pela outra, a interpretação que se dará à avença, quando potencialmente plúrima, haverá de ser a mais favorável ao aderente. Isto porque aquele que concebe o instrumento contratual tem a possibilidade de realizar estudos preparatórios prévios voltados a burilar uma melhor fórmula jurídica, fazendo com que tal planejamento integre o próprio “cálculo” empresarial.
A proximidade entre o instituto do contrato “por adesão” e a temática do cálculo empresarial não passou despercebida a Enzo Roppo, que observa:
“Os contratos standard funcionam como factores de racionalização da gestão empresarial num sentido ainda mais relevante, que concerne à exigência de prever e calcular antecipadamente (com a maior aproximação) todos os elementos susceptíveis de figurar – quantificados – como activo ou passivo no balanço da empresa. Posto que, de facto, cada uma das cláusulas contidas nas condições gerais concerne a aspectos e modalidades das operações (tempo e modo de entrega, qualidade da prestação, prestações acessórias, garantias, etc.) que, em definitivo, concorrem para determinar o seu ‘custo’, daí resulta que o conhecimento antecipado e pontual do conteúdo daquelas cláusulas – tornado possível justamente pela sua uniformidade e rigidez – traduz-se, para o empresário, numa maior possibilidade de calcular elementos destinados a incidir nos custos dos bens ou dos serviços que constituem objeto da relação contratual, e assim, de assentar em bases mais correctas o seu cálculo económico. Deste ponto de vista, assumem particular relevância as cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade pelo incumprimento da empresa predisponente, que antecipadamente se circunscrevem com precisão – e tornam por isso calculável – os riscos de gastos a que a responsabilidade ligada a cada categoria de negócios pode expor a mesma empresa”.[6]
E continua:
“Mas não é só: deve acrescentar-se que grande parte das vezes as empresas predisponentes fazem deste seu poder de determinação unilateral e arbitrário do conteúdo das relações contratuais, um uso vexatório em prejuízo dos aderentes; as cláusulas uniformes impostas a estes últimos são, em regra, conformadas de modo a realizar exclusivamente os interesses da empresa, garantindo-lhe vantagens a que correspondem, a cargo da contraparte, riscos, ónus e sacrifícios, bem mais gravosos do que aqueles que lhes deveriam caber, com base nas normas dispositivas, que como sabemos, tendem a actuar uma composição justa e equilibrada dos interesses em conflito (basta pensar no abuso que nos contratos standard se faz das cláusulas que excluem ou limitam a responsabilidade que por lei impenderia sobre o predisponente, anulando, assim, uma garantia essencial dos interesses do aderente)”. [7]
Observe-se que a disciplina civil da questão, contudo, não esvazia o espectro jurídico potencialmente aplicado à relação contratual em questão. Diversamente, faz-se necessário destacar a disciplina propriamente consumerista que se volta ao assunto.
O advento da Lei Fed. nº 8078/90, instituiu um Código de Defesa e Proteção do Consumidor caracterizado pela preocupação em implementar uma autêntica “Política Nacional das Relações de Consumo” (Capítulo II de seu Título I).
Neste cenário, o art. 4º da Lei Fed. nº 8078/90 instituiu uma série de princípios que devem ser observados no âmbito das relações de consumo em geral – e que deverão merecer oportuna aplicação no caso concreto ora submetido à apreciação judicial – in verbis:
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI – coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e a utilização indevida e inventos e criações industriais, das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;
VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII – estudo constante das modificações do mercado de consumo.
Com efeito, a análise do referido dispositivo evidencia que a “transparência” nas relações mantidas entre consumidores e fornecedores não é simplesmente medida que deve ser considerada pelos agentes produtivos como um diferencial em seus âmbitos de atuação (como frequentemente costuma ser tomada).
Como corolário do reconhecimento das peculiaridades contextuais da relação de consumo, exsurge a noção de “vulnerabilidade” que envolve a personagem do consumidor e justifica um tratamento diferenciado que lhe deve ser dispensado pela legislação e pelo Estado (por meio de seus Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário) – voltado a propiciar artificialmente (normativamente) aquela igualdade material que inexiste no mercado de consumo em sua compleição natural.
Nesse sentido, as palavras de José Geraldo Brito Filomeno:
“No âmbito da tutela especial do consumidor, efetivamente, ele é sem dúvida a parte mais fraca, vulnerável, se se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro. Embora se tenha em vista o livre mercado, a livre concorrência, é o próprio art. 170 da Constituição Federal que estabelece os parâmetros da ordem econômica visada pelo Estado brasileiro, colocando a defesa do consumidor como um de seus pilares imprescindíveis.
[…]
Tal preocupação visa a estabelecer o equilíbrio necessário a qualquer harmonia econômica no relacionamento ‘consumidor-fornecedor’. E exatamente por isso é que, dentre os direitos básicos do consumidor, está a facilitação de seu acesso aos instrumentos de defesa, notadamente no âmbito coletivo, com o estabelecimento da responsabilidade objetiva, aliada à inversão do ônus da prova”.[8]
Por sua vez, o inciso III do referido art. 4º prescreve que a busca pela “harmonização” dos interesses dos participantes das relações de consumo (fornecedores e consumidores) haverá de ser implementada com base nos pressupostos da “boa-fé” e do “equilíbrio” nas relações contratuais. Desta forma, o dever de probidade instituído pelo art. 422 do Código Civil ganha máxima expressão no âmbito das relações de consumo, que não podem ser contempladas de modo meramente analítico, sem que se tenha em devida consideração a busca constante do fornecedor por maximizar os seus resultados (e minimizar os seus empenhos) graças a um planejamento jurídico que envolve a elaboração de contratos “standardizados”.
E no caso em que a seguradora se nega a indenizar o beneficiário vítima de acidente de trânsito por culpa decorrente de embriaguez do segurado, pode-se entrever que tal negativa a um só tempo: a) contraria o princípio da “transparência” que deve prevalecer nas relações de consumo (art. 4º, caput da Lei Fed. nº 8078/90); b) evidencia a “vulnerabilidade” dos consumidores expostos à prática lesiva levada a efeito pelos fornecedores “coordenados” (art. 4º, I da Lei Fed. nº 8078/90); c) viola a cláusula geral de “boa-fé” objetiva que deve prevalecer em meio às relações privadas, especialmente as de consumo (art. 4º, III da Lei Fed. nº 8078/90).
O Código de Defesa e Proteção ao Consumidor estabelece em seu art. 6º os “direitos básicos do consumidor”, in verbis:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas è prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
IX – (Vetado);
X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Tais “direitos básicos do consumidor” correspondem, em última análise, ao mecanismo por excelência de implementação da defesa do consumidor prometida pelo art. 5º, XXXII da Constituição Federal. E, a seu respeito, podemos observar sinteticamente o seguinte.
Em primeiro lugar, de acordo com o inciso IV do referido art. 6º, é considerado como direito básico do consumidor a proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. Segundo a mesma ordem de ideias, devem ser modificadas as cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (inciso V).
Analisando atentamente os casos em que as seguradoras se negam a indenizar terceiros estudados no presente artigo, pode-se entrever que macula a proteção contra cláusulas abusivas que deve campear em meio às relações de consumo, razão pela qual merece correspondente reprimenda, por meio da modificação da cláusula que estabelece prestação desproporcional.
Percebe-se, pois, que a legislação em análise é bastante clara quanto à vedação da inserção de cláusulas abusivas que exijam do consumidor vantagem manifestamente excessiva, tornando-se nulas as cláusulas que favorecem unilateralmente uma das partes envolvidas na relação comercial, conforme prevê o “caput” do artigo 25, in verbis:
Art. 25. E vedada a estipulação contratual de clausula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores.
Por sua vez, no que concerne à “Proteção Contratual”, os artigos 46 e 47 da Lei Fed. nº 8078/90 assim disciplinam o prévio conhecimento da minuta contratual e a hermenêutica dos contratos de consumo, in verbis:
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
De modo que toda e qualquer espécie de contratação deve ser precedida do oferecimento da oportunidade de prévia análise da minuta contratual a ser firmada, sem o que o consumidor acaba por ser pressionado indevidamente, em meio a método comercial coercitivo, vedada expressamente pelo art. 6º, IV do Código de Defesa e Proteção ao Consumidor.
E no que concerne às cláusulas contratuais abusivas, o art. 51 da Lei Fed. nº 8078/90 assim estabelece, in verbis:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[…]
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade.
[…]
[…]
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Donde se extrai que a cláusula – ou mesmo o negócio jurídico – que contiver mecanismo voltado a estabelecer obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, haverá de ser considerada nula de pleno direito.
Assim, presume-se exagerada e iníqua a condição que restringe direitos e obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato de seguro estudado no presente artigo, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual.
Permeia o ordenamento jurídico a necessidade do equilíbrio e segurança nas relações contratuais. As cláusulas limitativas de responsabilidade da parte mais forte, assim como as de exclusão, desequilibram a relação contratual, impedindo uma composição equitativa dos interesses privados que o contrato é regulado.
Na ocorrência da cisão deste equilíbrio entre direitos e obrigações de cada uma das partes contratada, ao retirar ou limitar as garantias normais que teria a parte mais fraca em contratos sem este tipo de cláusula, enseja o desequilíbrio contratual entre as partes.
3. Do contrato de seguro
O seguro é uma garantia de recomposição de um dano ou perda futura e incerta. É uma convenção entre partes que permite, mediante pagamento de certa quantia (prêmio), a reparação futura de um dano apenas possível e hipotético, devidamente estipulado com antecedência na respectiva apólice.
Está classificado, outrossim, na categoria dos contratos aleatórios. Se o sinistro não ocorre, nada tem o segurador que pagar ao segurado, embora haja recebido o prêmio. Em outras palavras, o ganho ou a perda das partes está na dependência de circunstâncias futuras e incertas, previstas no contrato e que constituem o risco.
Esse risco pode referir-se a coisas ou pessoas.
O Código Civil dá o contorno acerca desse tipo contratual em seus artigos 757 e 776, in verbis:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legitimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Art. 776. O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido, salvo se convencionada a reposição da coisa.
O seguro traduz, portanto, um contrato condicional firmado pelo segurador e o particular, em que a seguradora obriga-se a recompor o patrimônio ou dano físico e moral da outra parte (segurado) ou a proporcionar uma satisfação, a título de indenização, ao beneficiário, como contrapartida pelo pagamento de um valor convencionado.
O jurista José de Aguiar Dias assim o definiu:
“Contrato de seguro e aquele em que uma das partes, o chamado segurador, obriga-se, mediante o pagamento de uma ou várias somas fixas ou prêmios, a indenizar a outra, chamada segurado, o prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato”.[9]
Por sua vez, Sílvio de Salvo Venosa ensina acerca da características e peculiaridades do contrato de seguro:
“O segurado assume a obrigação de pagar o prêmio e não agravar os riscos, entre outras. O segurador obriga-se a pagar o valor contratado no caso de sinistro. A esse negócio se aplica o princípio da exceção do contrato não cumprido (art. 476; antigo, art. 1.092)”.
Flávio Tartuce, por sua vez, ensina quanto à natureza jurídica do contrato de seguro:
“Constitui um contrato oneroso pela presença de remuneração, denominada prêmio, a ser paga pelo segurado ao segurador. O contrato é consensual, pois tem aperfeiçoamento com a manifestação da vontade das partes. Constitui um típico contrato aleatório, pois o risco é fator determinante do negócio em decorrência da possibilidade de ocorrência do sinistro, evento futuro e incerto com o qual o contrato mantém relação. Na maioria das vezes, constitui contrato de adesão, pois o seu conteúdo é imposto por uma das partes, geralmente a seguradora”.
Enfim, a obrigação de cobrir o risco decorre da própria função do seguro pactuado entre as partes, devendo, pois, o segurador pagar o valor do seguro logo quando ocorra o evento previsto.
Com base nisso, a discussão do presente artigo gira em torno da validade da exclusão da garantia securitária prevista em contrato de seguro patrimonial e seguro de vida ao segurado e a terceiros (beneficiários) diante da hipótese de embriaguez do segurado na condução de veículo automotor.
3.1. Do contrato de seguro patrimonial (danos)
O seguro patrimonial, também conhecido como seguro de danos, caracteriza-se por consistir na obrigação do segurador no pagamento de indenização na hipótese da ocorrência do dano.
Tal modalidade de seguro pertence à categoria dos que a própria pessoa, ou terceiro, pode sofrer.
Sobre o tema, em se tratando de seguro de veículo, se o causador do acidente estiver embriagado e for segurado, ou for pessoa a quem ele tenha dado a condução do veículo, pelo fato de ter agravado o risco, o segurado não fará jus à indenização, o que não exclui, contudo, a responsabilidade da seguradora de indenizar o terceiro prejudicado, porque isso significaria duplo prejuízo para quem não teve culpa no sinistro, descaracterizando a função social do contrato.
Em outras palavras, de acordo com o entendimento jurisprudencial e doutrinário, deve ser dotada de ineficácia para terceiros a cláusula de exclusão da cobertura securitária na hipótese de o acidente de trânsito advir da embriaguez do segurado ou de a quem este confiou a direção do veículo, visto que solução contrária puniria não quem concorreu para a ocorrência do dano, mas as vítimas do sinistro, as quais não contribuíram para o agravamento do risco.
Portanto, conclui-se que nesta espécie securitária (seguro de responsabilidade civil) se garante o interesse dos terceiros prejudicados à indenização, ganhando relevo a função social desse contrato, tanto que tal feição consta expressamente do projeto de lei que trata de normas gerais em contratos de seguro privado (antigo PLC nº 8.034/2010, arts. 105 e 106; hoje Projeto de Lei da Câmara n° 29/2017, em trâmite no Senado Federal).
As cláusulas restritivas do dever de indenizar no contrato de seguro devem ser analisadas com especial atenção, visto que não podem esvaziar a finalidade do contrato.
É representativo dessa discussão o recente julgamento do Recurso Especial nº 1.738.247/SC, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, integrante da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo entendimento firmou-se no sentido de proteger os direitos dos beneficiários nos contratos de seguro de automóvel (patrimonial):
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SEGURO DE AUTOMÓVEL. GARANTIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CAUSA DO SINISTRO. EMBRIAGUEZ DE PREPOSTO DO SEGURADO. DEVER DE INDENIZAR DA SEGURADORA. CLÁUSULA DE EXCLUSÃO. INEFICÁCIA PARA TERCEIROS. PROTEÇÃO À VÍTIMA. NECESSIDADE. TIPO SECURITÁRIO. FINALIDADE E FUNÇÃO SOCIAL.
Nesse sentido, é a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho:
“[…] a embriaguez só não excluirá a cobertura no caso de seguro de responsabilidade civil, porque este […] destina-se a reparar os danos causados pelo segurado, culposa ou dolosamente, a terceiros, as maiores vítimas da tragédia do trânsito. Excluir a cobertura em casos tais seria punir as vítimas em lugar do causador dos danos”.[11]
Igualmente, é a lição de Rui Stoco, que faz uma comparação entre as consequências da embriaguez na esfera penal e na esfera cível:
“Se no campo penal “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos” não exclui a imputabilidade (CP, art. 28, II), no campo da responsabilidade civil por acidentes de trânsito, a embriaguez do motorista é uma das mais marcantes manifestações de imprudência. Não se admite, não se justifica, nem se releva, em hipótese nenhuma, o ato de dirigir sob o efeito etílico”.[12]
Cumpre assinalar que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp nº 1.485.717/SP (Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 14/12/2016), entendeu que a direção do veículo por um condutor alcoolizado (seja o próprio segurado ou terceiro a quem ele confiou) representa agravamento essencial do risco avençado, sendo lícita a cláusula do contrato de seguro de automóvel que preveja, nessa circunstância, a exclusão da cobertura securitária.
O julgado em questão levou em consideração a comprovação científica e estatística de que a bebida alcoólica é capaz de alterar as condições físicas e psíquicas do motorista, que, combalido por sua influência, acaba por aumentar a probabilidade de produção de acidentes e danos no trânsito.
Assim, constatado que o condutor do veículo estava sob influência do álcool (causa direta ou indireta) quando se envolveu em acidente de trânsito – fato que compete à seguradora comprovar -, há presunção relativa de que o risco da sinistralidade foi agravado, a ensejar a aplicação da pena do art. 768 do Código Civil: “O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.
Por outro lado, interessante a conclusão do julgado ao prever que a indenização securitária deverá ser paga se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa do outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada, entre outros).
3.2. Do contrato de seguro de vida
O seguro de vida é o contrato pelo qual uma parte, denominada segurador, em contraprestação ao recebimento de certa soma chamada prêmio, se obriga a pagar à outra parte (segurado), ou terceiro (beneficiário), uma quantia determinada, sob a forma de capital ou de renda, quando se verifique o evento previsto[13].
O evento a que se subordina o cumprimento da obrigação contraída pelo segurador tanto pode ser a morte do segurado, como a sua sobrevivência.
Quanto ao pagamento da quantia a que se obriga o segurado, pode ser efetuada ao terceiro como ao próprio segurado, seja de uma só vez ou em prestações sob a forma de pensão.
No que se refere aos seguros de vida, a Corte Superior possui entendimento no sentido de que é vedada a exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas.
A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), agência reguladora do setor dos seguros, que por delegação atua onde possui expertise não detida pelo Estado, é o ente responsável por informar e fiscalizar os meios pelos quais os agentes privados devem atuar de forma ética e atentos a princípios que viabilizem o negócio securitário no país.
No que tange ao seguro de vida, tem-se que o regulador do setor, em sua Circular SUSEP/DETEC/GAB nº 08/2007, veda às Seguradoras estipularem em suas apólices a exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes motivados por atos do segurado sob efeito de substâncias tóxicas, acometido de insanidade mental ou sob efeitos do alcoolismo.
A referida Circular, que se encontra vigente, estabelece que[14]:
“[…] a sociedade seguradora que prevê a exclusão de cobertura na hipótese de “sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelos segurados em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob o efeito de substâncias tóxicas”, deverá promover, de imediato, alterações nas condições gerais de seus produtos, com base nas disposições abaixo:
1) Nos Seguros de Pessoas e Seguros de Danos, é VEDADA A EXCLUSÃO DE COBERTURA na hipótese de “sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas”.
2) Excepcionalmente, nos Seguros de Danos cujo bem segurado seja um VEÍCULO, é ADMITIDA A EXCLUSÃO DE COBERTURA para “danos ocorridos quando verificado que o VEÍCULO SEGURADO foi conduzido por pessoa embriagada ou drogada, desde que a seguradora comprove que o sinistro ocorreu devido ao estado de embriaguez do condutor”. ”
De acordo com o entendimento jurisprudencial, esse é o fundamento para a vedação de estipulação de cláusula nessa modalidade de seguro, reconhecendo a Corte Superior a força normativa da regulação da SUSEP.
Nesse sentido, transcreve-se a ementa do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.665.701/RS, de relatoria do Ministro Ricardo Villa Bôas Cueva acerca do tema:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. SEGURO DE VIDA. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CAUSA DO SINISTRO. EMBRIAGUEZ DO SEGURADO. MORTE ACIDENTAL. AGRAVAMENTO DO RISCO. DESCARACTERIZAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR DA SEGURADORA. ESPÉCIE SECURITÁRIA. COBERTURA AMPLA. CLÁUSULA DE EXCLUSÃO. ABUSIVIDADE. SEGURO DE AUTOMÓVEL. TRATAMENTO DIVERSO.
O STJ inclusive editou a súmula 620 para essa espécie de seguro, que prevê que “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida”. (STJ, 2ª Seção. Aprovada em 12/12/2018, Dje 17/12/2018).
Deste modo, ao contrário do que acontece no seguro de automóvel, a cláusula similar inscrita em contrato de seguro de vida que impõe a perda do direito à indenização no caso de acidentes ocorridos em consequência direta ou indireta de quaisquer alterações mentais, compreendidas entre elas as consequentes à ação do álcool, de drogas, entorpecentes ou substâncias tóxicas, de uso fortuito, ocasional ou habitual, revela-se, no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, inidônea.
Conclusão
A função social do contrato de seguro de responsabilidade civil perante terceiros apresenta-se como verdadeiro instrumento de garantia aos terceiros prejudicados, vítimas inocentes do sinistro provocado pelo segurado. Sua finalidade é voltada ao interesse coletivo, beneficiando os terceiros inocentes, não se restringindo ao interesse individual do segurado.
Deve-se ponderar que a exclusão deve atingir apenas o próprio segurado, não produzindo efeitos em relação aos terceiros beneficiários do contrato de seguro. Tal interpretação pretende que o contrato de seguro, seja de responsabilidade civil ou de vida, proteja os interesses de terceiros, que foram vítimas inocentes de um acidente de trânsito e que em nada contribuíram para a sua ocorrência ou para o agravamento do risco.
Na prática, a seguradora deverá efetuar o pagamento da indenização, nos limites da apólice do contrato de seguro, à vítima do sinistro, podendo exercer o seu direito de regresso contra o segurado em momento posterior.
Há, portanto, efetiva proteção ao terceiro, vítima inocente do sinistro gerado pela embriaguez ao volante do segurado.
Referências bibliográficas
Livros:
ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do Contrato – Teoria Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
_____. Aspectos da Evolução da Teoria dos Contratos. São Paulo: Saraiva, 1949.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rev, atual. e aument. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
ROPPO, Enzo. O contrato, trad. port. de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Il contrato. Coimbra: Almedina, 1988.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
Páginas da internet:
SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS (SUSEP). Circular SUSEP/DETEC/GAB nº 08/2007. Disponível em: <https://www2.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=23107>. Acesso em: 28 mar. 2020.
Legislação:
BRASIL. Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 28 mar. 2020.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 28 mar. 2020.
Jurisprudência:
STJ – Recurso Especial: 1665701/RS, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 09/05/2017, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/05/2017.
STJ – Recurso Especial: 1738247/SC, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 27/11/2018, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/12/2018.
[1] Advogado. Mestre em Direito (com bolsa CAPES) pela Universidade Católica de Santos. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor no Curso Proordem/Santos. Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. E-mail: marcus.filipe92@gmail.com.
[2] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 129-130.
[3] ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do Contrato – Teoria Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 77.
[4] _____. Aspectos da Evolução da Teoria dos Contratos. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 42.
[5] ROPPO, Enzo. O contrato, trad. port. de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Il contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 314-317.
[6] Ibdem, p. 316.
[7] Ibdem, p. 317.
[8] FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 69.
[9] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.552.
[10] STJ – Recurso Especial: 1738247/SC, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 27/11/2018, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/12/2018.
[11] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 489.
[12] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 728.
[13] GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rev, atual. e aument. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 511.
[14] Disponível em: <https://www2.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=23107>. Acesso em: 28 mar. 2020.
[15] STJ – Recurso Especial: 1665701/RS, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 09/05/2017, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/05/2017.
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