Capacidade Contributiva e a Verificação de seus Paradoxos
1.Nota Introdutória[1]
Vislumbrou-se que não basta o tributo ser legal, há também de ser legítimo. Neste capítulo buscamos aferir se as normas tributárias infraconstitucionais incorporaram plenamente o Princípio da Capacidade Contributiva.
Compulsando os conceitos formulados pelos mais renomados doutrinadores, o princípio da capacidade contributiva subordina-se à idéia de justiça distributiva. Esse princípio objetiva legitimar a tributação e graduá-la de acordo com a riqueza de cada qual, de modo que os ricos paguem mais e os pobres, menos.
Ao discorrerem sobre o princípio da capacidade contributiva, os doutrinadores realçam veementemente que o princípio de que se trata deve preservar, eximindo de tributação, a riqueza mínima necessária à sobrevivência digna do ser humano, sob pena de, em não sendo assim, a tributação constituir-se numa violência à liberdade, valor maior da natureza humana, tutelada no Estado de Direito.
Nesse sentido, José Marcos Domingues de Oliveira constrói o entendimento de que “essa riqueza só poderá referir-se ao que exceder o mínimo necessário à sobrevivência digna, pois até este nível o contribuinte age ou atua para manter a si e aos seus dependentes, ou à unidade produtora daquela riqueza”.[2]
Destarte, com fartura, a doutrina alerta que a tributação não pode se tornar excessiva, proibitiva ou confiscatória. Exigir mais do que o contribuinte pode pagar, asfixiando-o ou diminuindo-lhe a sua capacidade produtiva é, por analogia a uma conhecida fábula, matar a galinha dos ovos de ouro. Assim,
Essa tributação, ademais, não pode se tornar excessiva, proibitiva ou confiscatória, ou seja, a tributação, em cotejo com os diversos princípios e garantias constitucionais (direito ao trabalho e à livre iniciativa, proteção à propriedade), não poderá inviabilizar ou até mesmo inibir o exercício de atividade profissional ou empresarial lícita nem retirar do contribuinte parcela substancial de propriedade.[3]
Nos últimos anos, os meios de comunicação têm dedicado enorme destaque ao tema da carga tributária brasileira. Estudos e pesquisas estatísticas informam que a carga tributária se revela, ano após ano, cada vez mais elevada.
O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), organização privada, em recente pesquisa divulgada no Caderno de Economia do Jornal do Comércio, de 06/06/2007, noticiou que a “carga tributária pesa mais para a classe média”.[4]
Segundo o IBPT, a carga tributária brasileira é uma das mais altas do mundo e, pelos serviços públicos prestados ao cidadão, é também uma das mais injustas. Além disso, informou o que se segue:
Mas para a classe média, a parcela da população que tem renda mensal entre R$ 3 mil e R$ 10 mil mensais, os tributos são ainda mais perversos. Isso porque esta é a faixa de renda que mais paga impostos no Brasil, mais ainda do que aqueles que ganham acima de 10 mil.[5]
Ora, se a pesquisa aponta que a classe média é que suporta a maior carga tributária, é lógico concluir-se que os mais ricos suportam uma carga, relativamente, menor. Por conseguinte, pode-se também concluir que o princípio da capacidade contributiva está sendo maculado e que o seu subprincípio da progressividade não foi adequadamente manejado.
Em nosso cotidiano prático-profissional, no âmbito da contabilidade, deparamo-nos com diversos paradoxos que adiante detalharemos. Em nosso entendimento, esses paradoxos negam a efetividade do princípio da capacidade contributiva.
Desde já esclareça-se que os paradoxos que adiante serão apresentados não ferem o princípio da capacidade contributiva, necessariamente, por prescreverem uma tributação excessiva, proibitiva ou confiscatória. Ressalte-se, ainda que não ferem o referido princípio por tributarem, necessariamente, a riqueza mínima necessária à sobrevivência digna do ser humano.
Referimo-nos, sim, aos paradoxos que aquinhoam, que abonam, que infundadamente discriminam, que concedem isenções, quase sempre, aos mais abastados, maculando a capacidade contributiva e os subprincípios (proporcionalidade, progressividade, personalidade e seletividade).
Nesse contexto, visualiza-se um fosso, cada vez mais fundo, que separa uns poucos que a cada dia acumulam mais posses do resto (a maioria) que, paulatinamente, tornam-se cada vez mais depauperados, retrato nítido do efeito atroz da indigna, aética, injusta, nefasta, indesejada e imoral concentração de renda que se verifica, de forma cada vez mais destoante, nos países que adotam a chamada cartilha neoliberal, donde o Brasil é campeão.
Para melhor aferirmos se alguns normativos tributários respeitam ou afrontam princípios tributários constitucionais e para buscarmos responder à questão problema deste trabalho abordaremos situações concretas, casos práticos, aqui denominados paradoxos.
1.1.Paradoxo 1:
Rendimento de Aluguéis Percebidos por Pessoas Físicas Versus Rendimento de Aluguéis Percebidos Por Pessoas Jurídicas.
Em relação aos rendimentos de aluguéis percebidos por Pessoa Física, o Imposto de Renda (IRPF) será apurado com base na Tabela Progressiva a que são submetidos os rendimentos do trabalho, abaixo reproduzida, como forma de facilitar a visualização dos desdobramentos práticos.
Base de cálculo mensal em R$ | Alíquota % | Parcela a deduzir do imposto em R$ |
Até 1.313,69 | – | – |
De 1.313,70 até 2.625,12 | 15,0 | 197,05 |
Acima de 2.625,12 | 27,5 | 525,19 |
Numa descrição simples, no que pertine aos rendimentos de aluguéis percebidos por Pessoa Jurídica, que seja optante pelo lucro presumido e cujo objeto contemple a atividade de locação de imóveis próprios, o Imposto de Renda (IRPJ) e os demais tributos (PIS, COFINS e CSLL) serão apurados da seguinte forma:
1. Sobre o faturamento trimestral de até R$ 30.000,00
Tributo | Base de cálculo | Alíquota | Adicional IR | % s/o faturamento |
IRPJ | 16,00% | 15,00% | 0,00% | 2,40% |
CSLL | 32,00% | 9,00% | 0 | 2,88% |
PIS | Faturamento | 0,65% | 0 | 0,65% |
COFINS | Faturamento | 3,00% | 0 | 3,00% |
Carga total |
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| 8,93% |
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2. Sobre o faturamento trimestral de R$ 30.000,01 até R$ 187.500,00
Tributo | Base de cálculo | Alíquota | Adicional IR | % s/o faturamento |
IRPJ | 32,00% | 15,00% | 0,00% | 4,80% |
CSLL | 32,00% | 9,00% | 0 | 2,88% |
PIS | Faturamento | 0,65% | 0 | 0,65% |
COFINS | Faturamento | 3,00% | 0 | 3,00% |
Carga total |
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| 11,33% |
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3. Sobre o faturamento trimestral que exceder a R$ 187.500,00
Tributo | Base de cálculo | Alíquota | Adicional IR | % sobre o faturamento |
IRPJ | 32,00% | 15,00% | 10,00% | 8,00% |
CSLL | 32,00% | 9,00% | 0 | 2,88% |
PIS | Faturamento | 0,65% | 0 | 0,65% |
COFINS | Faturamento | 3,00% | 0 | 3,00% |
Carga total |
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| 14,53% |
Não é necessário possuir um intelecto privilegiado para perceber a flagrante distorção que as tabelas acima, por si só, revelam. Inicialmente, pode-se verificar que os rendimentos são da mesma natureza, qual seja: aluguéis. Não é sem motivo que proprietários de imóveis para renda têm constituído sociedades, mediante a incorporação de seus bens imóveis ao capital. É uma prática lícita, cuja denominação é elisão fiscal.
A título exemplificativo, tem-se a seguinte situação: se um determinado proprietário de imóveis, pessoa física, auferisse alugueres no valor mensal de R$ 62.500,00, o seu ônus tributário mensal corresponderia a R$ 16.662,31 a título de imposto de renda de pessoa física -IRPF.
Ao revés, se esse mesmo proprietário constituísse uma sociedade empresária, incorporando ao capital da sociedade os mesmos imóveis que lhe rendiam os aluguéis que percebia, na qualidade de pessoa física, sobre esses mesmos aluguéis, agora auferidos pela pessoa jurídica, incidiria o IRPJ, a CSLL, o PIS e a COFINS, num montante de R$ 7.081,25.
No exemplo supracitado, verifica-se uma elisão no patamar de R$ 9.581,06, por mês. Ao permitir que esta elisão fiscal ocorra, estaria a nossa legislação atendendo, só para exemplificar, os princípios da isonomia, da proporcionalidade, da progressividade e da capacidade contributiva? Inegavelmente, a elisão fiscal é legal, mas até que ponto pode ser considerada legítima?
Neste paradoxo, restou óbvio que os rendimentos são de natureza idêntica, ou seja, alugueres. O fato de passarem a ser percebidos por pessoa jurídica não lhe altera a natureza. Para um rendimento da mesma natureza, o legislador concedeu à pessoa jurídica uma tributação muito menos onerosa se confrontada com a devida pela pessoa física.
Não há se falar, nesta hipótese, que a pessoa jurídica suporta gastos superiores aos da pessoa física. No paradoxo sob enfoque, a sociedade empresária constituída para administrar e alugar seus próprios imóveis não é demandada em nenhum gasto que não seja devido, também, pelo proprietário locador pessoa física.
Se uma lei contém lacunas legais que permitem, mediante a elisão fiscal, afrontar ou até mesmo ignorar os consagrados princípios tributários, indispensáveis à persecução da justiça tributária e, por efeito, a própria justiça social e a justiça distributiva, não seria razoável supor que esta mesma lei padece de inconstitucionalidade?
Firmamos um entendimento positivo à indagação suscitada. Notadamente no âmbito tributário, pode-se entender o espírito da lei pelos seus efeitos. A verdadeira intenção que move um ser humano a agir, revela-se nos efeitos ou nas conseqüências que o seu ato provoca. Por conseguinte, à luz do princípio da capacidade contributiva, os seus efeitos teleológicos estão sendo maculados.
Analogicamente, pode-se asseverar que a verdadeira intenção do legislador, ao formular o corpo normativo da legislação tributária está umbilicalmente atrelado aos efeitos dessa lei, leia-se: aos próprios efeitos práticos arrecadatórios.
E é certo que assim o seja. Por óbvio, não se cria uma lei, no âmbito tributário, que não vise a efeitos tributários. Dessa maneira, pode-se dizer que, se uma determinada lei agrava ou desonera determinado grupo ou categoria de contribuintes é porque assim o pretendia o legislador.
Não temos a pretensão de provar a intenção deliberada ou subliminar com que age o legislador. Entretanto, parece-nos oportuno trazer este tema à reflexão. Se uma lei, ao criar tributos ou ao oferecer desonerações, não levar em conta os princípios que perfazem a justiça tributária não é razoável supor que a intenção deliberada ou subliminar do legislador não estivesse eivada de interesses diversos dos princípios norteadores da justiça tributária, capitaneados pelo princípio da capacidade contributiva.
Vislumbra-se neste paradoxo que, embora tratando da tributação de rendimentos de capital (alugueres), incidentes sobre pessoas diversas – quais sejam: pessoas físicas e jurídicas – sua natureza é a mesma. Portanto, o legislador, deliberada ou subliminarmente, subverteu o subprincípio da progressividade e ignorou, por conseguinte, o princípio da capacidade contributiva.
Fala-se muito do avanço da concentração de renda em nosso país e dos malefícios dela decorrentes. Pouco se fala a respeito das causas que a fomentam. Muito menos se tem notícias de propostas ou projetos que visem corrigir essas distorções.
No meu quotidiano prático, exercendo a profissão de contador, ouvem-se freqüentes reclames do contribuinte pessoa física que, auferindo rendimentos de aluguéis depara-se com a “pesada” tributação de até 27,50%. Ouvem-se, com muito mais ênfase, os mesmos reclames dos representantes das pessoas jurídicas que, graças ao planejamento tributário (elisão fiscal) suportam, para rendimentos de até R$ 10.000,00 por mês, uma carga de 8,93%, para a mesma espécie de rendimentos (aluguéis).
Isso denota que nem toda a manifesta insatisfação em torno da elevada carga tributária é fundada. Quase sempre, os mais aquinhoados e que pouco contribuem para o erário público são os que sustentam o coro e vociferam um grito de indignação contra a elevada carga tributária que quase não os atinge.
Nesse paradoxo, parece-nos configurada a subversão do princípio da capacidade contributiva. Se assim o é, não estaria eivada de inconstitucionalidade a legislação que a permite? Sabemos que é legal, mas, não pode ser considerado lícito ou legítimo o pomposo instrumento denominado planejamento tributário (elisão fiscal) que, em última análise permite que, quase sempre, os mais aquinhoados paguem menos tributos que os que têm menos.
1.2.Paradoxo 2: A Natureza Tributável dos Lucros no § 5º, Artigo 2º, da Lei Nº 10.101/2000 Versus A Natureza Isenta dos Lucros no Artigo 10, da Lei Nº 9.249/1995.
Conforme disciplina o artigo 153, inciso III, da Constituição da República, a instituição do Imposto de Rendas e Proventos de qualquer natureza é de competência da União. Depreende-se, ainda, que o Imposto de Renda (IR) deverá ser informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei. Eis o teor in verbis do dispositivo normativo:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: …
III – renda e proventos de qualquer natureza;
§ 2º – o imposto previsto no inciso III:
I – será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade na forma da lei.
O Código Tributário Nacional (CTN), alude à normatividade do Imposto de Renda e Proventos nos seguintes termos:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou a combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior;
§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização,condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.
Art.45. Contribuinte do imposto é o titular da disponibilidade a que se refere o art. 43, sem prejuízo de atribuir a lei essa condição ao possuidor, a qualquer título, dos bens produtores de renda ou dos proventos tributáveis.
Nestes termos, o Código Tributário Nacional, informa que o imposto de renda incide sobre a renda e proventos de qualquer natureza e tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda. Entenda-se por renda o produto do capital, do trabalho ou a combinação de ambos.
Nos termos do art. 10 da Lei 9.249/95, regulamentada pelo artigo 51 da Instrução Normativa 11/96, da Secretaria da Receita Federal – IN SRF 11/96 – os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.
À luz do exposto, transcreve-se o conteúdo do artigo 10, insculpido na Lei nº 9.249/1995.
Art. 10º Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.
Desta feita, não estão sujeitos ao imposto de renda os lucros e dividendos pagos ou creditados a sócios, acionistas ou empresário individual (artigo 10, Lei 9.249/95) gerados a partir 01 de janeiro de 1996. Reitere-se, por oportuno, que essa não-incidência independe do regime tributário da pessoa jurídica, leia-se: lucro real, presumido ou arbitrado. Além disso, a isenção independe também do valor distribuído. Os lucros, portanto, independentemente do valor, serão isentos.
O artigo 10 da Lei nº. 9.249/95 converteu a natureza tributária dos lucros. Os lucros, que até então, via de regra e com alíquotas variáveis, eram tributáveis, foram isentados do imposto de renda. Conforme exposto, a referida mudança de natureza passou a viger a partir de 1º de janeiro de 1996.
Compreendemos que o lucro é um produto ou fruto do capital, representando para quem o aufere a aquisição de uma disponibilidade econômica, uma renda. Nesse contexto, o lucro está, indiscutivelmente, inserto na hipótese de incidência do artigo 43 do Código Tributário Nacional.
Em contraponto, aos trabalhadores está assegurado o direito à participação nos lucros ou resultados, de acordo com o artigo 7º, inciso XI da nossa Carta. Antes da regulamentação por lei ordinária, muito se discutiu acerca da auto-aplicabilidade deste dispositivo constitucional.[6]
Após a promulgação da Constituição de 88 foram editadas várias medidas provisórias, que não se converteram em leis. A primeira medida provisória que regulamentou a matéria foi a de nº 194, em 1994. Após esta Medida Provisória, foram editadas mais treze sobre o assunto, com poucas alterações.
Somente com a edição da lei nº 10.101, em 2000, foi que se pôs fim à discussão acerca da auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional, pois passou a regulamentar a participação do trabalhador nos lucros ou resultados da empresa. Após essa Lei, a participação nos lucros ou resultados passou a ser obrigatória, pois consiste em um direito previsto na Constituição.
Assim, a Lei nº. 10.101/2000, alude ao que se segue:
Art. 2o A participação nos lucros ou resultados será objeto de negociação entre a empresa e seus empregados, mediante um dos procedimentos a seguir descritos, escolhidos pelas partes de comum acordo: …
§ 5o As participações de que trata este artigo serão tributadas na fonte, em separado dos demais rendimentos recebidos no mês, como antecipação do imposto de renda devido na declaração de rendimentos da pessoa física, competindo à pessoa jurídica a responsabilidade pela retenção e pelo recolhimento do imposto.(grifamos)
Na tentativa de definir a natureza jurídica desta forma de participação, surgiram três teorias. A primeira atribuía-lhe natureza salarial; a segunda, por sua vez, considerava-a um contrato de sociedade; e a terceira, por fim, entendia que se tratava de uma figura sui generis, que representava uma forma de transição entre o contrato de trabalho e o contrato de sociedade.
A doutrina, influenciada pelo artigo 457 da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, posicionou-se pela natureza jurídica salarial da participação mencionada. A jurisprudência também defendeu a natureza salarial, dando origem à Súmula 251 do Tribunal Superior do Trabalho – TST, cuja redação é a que se segue: “A participação nos lucros da empresa, habitualmente paga, tem natureza salarial, para todos os efeitos legais.”
A referida Súmula 251 foi cancelada pelo TST, por meio da Resolução nº 33, de 27 de julho de 1994, em razão de a Constituição da República asseverar em seu artigo 7º, inciso XI, que a participação nos lucros ou resultados seria desvinculada da remuneração.
A teoria que atribuía à participação em tela natureza de contrato de sociedade não subsistiu porque não há affectio societatis entre o empregado e o empregador e os riscos da atividade empresarial são de exclusiva responsabilidade do último.
Hodiernamente, segundo a doutrina dominante, a participação nos lucros ou resultados caracteriza-se por ser uma figura sui generis, não constituindo um contrato, mas um efeito que decorre do contrato de trabalho. A Lei nº 10.101/2000, que regulamentou o dispositivo constitucional que trata da participação nos lucros ou resultados, além de estabelecer a natureza não-salarial da participação, dispôs sobre a periodicidade do pagamento, que não poderá ser inferior a um semestre civil.
Pelo exposto, tanto os lucros de que trata o artigo 10 da Lei nº 9.249/95, quanto a participação nos lucros ou resultados da empresa de que trata o artigo 7º, inciso XI da Constituição de 88, regulamentado pela Lei nº. 10.101/2000, constituem-se em aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda para os seus beneficiários.
E não é só. A vigente Carta Magna ao referir-se ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, no inciso I, § 2º, do artigo 153, expressa que o imposto de renda “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei”.
Depreende-se do exposto que o artigo 10 da Lei nº. 9.249/95 ignorou, a um só tempo, os três critérios constitucionais formadores do imposto de renda. Ao estabelecer a isenção de imposto de renda sobre os lucros, desconsiderou o critério da generalidade, da universalidade e da progressividade.
Por óbvio, também, feriu de morte o princípio da capacidade contributiva. Não se pode ignorar que muitos empreendedores vêm cumulando verdadeiras fortunas oriundas de lucros auferidos sem qualquer tributação.
O legislador afrontou vários princípios ao estabelecer isenção tributária para os lucros. Em que fundamento ou princípio maior se baseou o mesmo para tal afronta? Seria de cunho econômico, ético, filosófico, axiológico?
Admita-se que o fator determinante para tornar os lucros isentos de tributação tenha a insustentável alegação de que se estaria incorrendo em bitributação ou, o que parece ter sido mais decisivo, a pressão dos investidores estrangeiros e dos capitalistas pátrios.
Sem essa isenção, nossas elites abastadas não se sentiam suficientemente recompensadas. Ameaçavam remeter (e não ficou só na ameaça) seus capitais para os paraísos fiscais. Por seu turno, os investidores estrangeiros (na maioria das vezes meros especuladores) não se disporiam a investir (“apostar”) seus capitais num país dito de economia instável. O risco era muito alto e, assim, tornou-se imprescindível que os lucros fossem excepcionais e livres de tributação. O legislador, portanto, submissamente, captou e acolheu os ditames do “mercado”.
Ao instituir a isenção, justificou-se que os lucros não poderiam ter natureza tributável sob pena de se incorrer em bitributação. Eis que os lucros são frutos da atividade empresarial já devidamente tributada e se os mesmos fossem tributados na pessoa física, estar-se-ia bitributando a mesma riqueza. Essa é a sustentação dos que defendem a natureza não tributável dos lucros.
Tergiversando sobre o assunto, pareceu-nos do muito cômoda e depreciativa essa conclusão. Cômoda para os empresários que foram agraciados com a desoneração. E depreciativa para os cofres públicos, tendo em vista a enorme perda arrecadatória que isso representa para o Estado. A conseqüência direta desta realidade fática é o aumento da carga tributária para os demais contribuintes, vez que o Estado não tem conseguido reduzir seus gastos.
Os lucros são resultados econômicos positivos da atividade empresarial. Assim, os lucros pertencem à empresa. Se, ao investir os lucros em sua própria atividade ou na expansão da empresa, a ativação desses lucros fosse tributável, por certo, estar-se-ia diante de uma flagrante bitributação.
Porém, ocorre que, no paradoxo ora abordado, os lucros mudam de titularidade. Saem da esfera patrimonial da pessoa jurídica que os gerou para ingressar no patrimônio da pessoa física, dos sócios. E, diante disso, concluir que os lucros devem ser considerados isentos, sob pena de incorrer-se em bitributação, não se configura razoável.
Se razoável fosse, por analogia, ter-se-ia que admitir que os salários, esses sim, legítimos frutos do trabalho, também deveriam ser de natureza isenta. Ora, sabe-se que tanto o capital quanto o trabalho são fatores de produção de uma empresa. Então, se os frutos do capital (lucros) devem ser isentos de imposto de renda, por quê os frutos do trabalho (salários) não o são?
Mas, o que foge ao razoável e para nós se afigura incompreensível, é o fato de que mesmo ente político ao legislar sobre a participação do trabalhador nos lucros ou resultados da empresa, no § 5o, do art. 2o da Lei nº. 10.101/2000, prescreveu que:
“As participações de que trata este artigo serão tributadas na fonte, em separado dos demais rendimentos recebidos no mês, como antecipação do imposto devido na declaração de rendimentos da pessoa física, competindo à pessoa jurídica a responsabilidade pela retenção e pelo recolhimento do imposto.” (Grifamos)
Desta feita, o legislador não se mostrou suficientemente sensível para captar ou acolher os anseios dos trabalhadores, no sentido de isentar de tributação a participação nos lucros ou resultados da empresa.
Não é fácil conceber em que fundamentos, em que princípios, o legislador fez incidir imposto de renda sobre os parcos lucros atribuídos aos trabalhadores, que notoriamente dispõem de menor capacidade contributiva, e, ao arrepio dos mais sagrados princípios tributários, isentou os, quase sempre, galhardos lucros atribuídos aos sócios que, via de regra, detém uma maior capacidade contributiva.
Ademais, embora não se possa questionar a constitucionalidade da Lei nº 9.249/95, sob seu aspecto formal, não parece aceitável que esse mesmo instituto torne os lucros isentos de tributação, com fundamento no que se segue: traíram-se os critérios preconizados no inciso I, § 2º, do artigo 153 da Constituição de 88, o qual alude que o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade na forma da lei”.
Menosprezaram-se, ainda, os artigos 43 a 45 do Código Tributário Nacional uma vez que o Imposto de Renda incide sobre a renda e proventos de qualquer natureza e tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda.
O lucro é um produto ou fruto do capital, representando para quem o aufere, a aquisição de uma disponibilidade econômica, uma renda. Enquadra-se, portanto, na hipótese de incidência do artigo 43 de Código Tributário Nacional. E, se por algum fundamento, os lucros devem ser isentos de imposto de renda quando distribuídos aos sócios, em regra, detentores de uma maior capacidade contributiva, com maior justiça, deveriam ser isentos do mesmo imposto de renda ao serem pagos aos empregados a título de participação nos lucros ou resultados da empresa.
1.3.Paradoxo 3: Renúncias Tributárias em Favor da Renda do Capital
Aludiu-se nos paradoxos anteriores que se vem taxando, mais significativamente, a renda dos trabalhadores assalariados e as classes de menor poder aquisitivo, via tributação sobre o consumo, ao longo dos últimos anos. Além disso, pode-se afirmar que o Estado brasileiro vem abrindo mão de receitas tributárias importantes em favor da renda de capital.
Uma dessas renúncias fiscais é a dedução dos juros sobre o capital próprio das empresas do lucro tributável do Imposto de Renda – IR e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL. Esse entendimento encontra fundamento na Lei nº 9.249/95, em seu artigo 9º.
Assim, desde 1996, passou-se a permitir às pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real, que remuneraram as pessoas físicas ou jurídicas, a título de juros sobre o capital próprio, a considerar tais valores como despesas para fins de apuração do IRPJ e da CSLL. Trata-se, na verdade, de uma despesa fictícia.
À luz do exposto, observa-se que a remuneração paga aos acionistas, a título de juros sobre o capital próprio, é considerada despesa. E, sendo contabilizados como despesa, os juros sobre o capital próprio, por óbvio, reduzem o lucro. O mesmo montante dos juros sobre o capital próprio distribuído aos acionistas redundará, em igual montante, em redução do lucro da Sociedade. Ora, reduzido o lucro, reduzida será a tributação a titulo do IRPJ e da CSLL.
O artigo 9º, da Lei 9.249/95, beneficia despudoradamente, as sociedades mais lucrativas, possibilitando que, ao remunerarem seus acionistas com juros sobre o capital próprio, reduzam, no mesmo quantitativo, os lucros que seriam apurados.
Em termos práticos, a fim de elucidar esse dispositivo, constata-se o seguinte: o art. 9º da Lei 9.249/95 permite que as grandes sociedades, as mais lucrativas, deixem de recolher aos cofres públicos 25% (15% + 10% de adicional) a título de IRPJ e 9% a título de CSLL. É verdade que os juros sobre o capital próprio são tributados na pessoa do beneficiário, porém, à alíquota exclusiva de 15%. Observa-se que, para os mais aquinhoados, o governo renuncia, abre mão de arrecadar 34% para contentar-se com apenas 15%.
De acordo com dados da Unafisco Sindical, somente em 2005, a distribuição de juros sobre capital próprio implicou uma renúncia tributária de R$ 3,7 bilhões. Esse mecanismo permitiu, por exemplo, que os cinco maiores bancos do sistema financeiro nacional – que apresentaram um lucro histórico em 2005 – distribuíssem a título de juros sobre capital próprio aos seus acionistas um montante de R$ 6 bilhões.[7]
Assim, o valor distribuído de Juros sobre Capital Próprio proporcionou uma redução nas despesas com encargos tributários desses bancos no montante de R$ 2,1 bilhões, implicando uma renúncia tributária do Estado a favor dos bancos no total de R$ 1,2 bilhão.[8]
Entre os privilégios tributários concedidos ao grande capital, especialmente os bancos, está a isenção de imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior (art. 10, Lei 9.249/1995).
De acordo com a UNAFISCO SINDICAL[9], dados do Banco Central revelam que as remessas líquidas de lucros e dividendos de multinacionais bateram recorde em 2005, atingindo US$ 12,7 bilhões, maior montante desde 1947. Essa situação só é possível em função da alta rentabilidade com os juros reais, o câmbio apreciado e a isenção de imposto de renda sobre remessas para o exterior e a isenção de lucros e dividendos distribuídos[10].
Convertendo o valor de US$ 12,7 bilhões à taxa de câmbio de R$ 2,34 (30/12/2005), chega-se ao montante de R$ 29,7 bilhões, que se fossem tributados com uma alíquota de 15% (que vigorou até 1996) possibilitaria uma arrecadação tributária de R$ 4,5 bilhões.
Não bastasse, recentemente o governo editou a Medida Provisória – MP nº 281, de15/02/2006, convertida pelo Congresso Nacional na Lei n. 11.312, de 27/06/2006, reduzindo a zero as alíquotas de IR e de CPMF para investidores estrangeiros no Brasil. As operações beneficiadas pela MP são cotas de fundos de investimentos exclusivos para investidores não-residentes, que possuam, no mínimo, 98% de títulos públicos federais.
Osiris Lopes Filho que secretariou a Receita Federal nos anos de 1993 e 1994, em entrevista concedida aos jornalistas Tina Evaristo e Hugo Studart da Revista “Isto é” – Dinheiro, disponível na internet,[11] à pergunta: “Até que ponto é verdade a tese de que rico não paga muito imposto?” Respondeu:
“Também acho isso. Quando fui secretário da Receita, mandei começar a fiscalização pelos ricos. Era uma ação de marketing efetiva e eficiente. Os fiscais ficaram todos assustados, já que não tinham o hábito de incomodar as elites. Peguei quem tinha iate e avião. Alguns mostraram as notas fiscais orgulhosos. Então fomos checar se tinham renda pessoal declarada para comprar o iate. Daí batemos em suas residências para verificar se o motorista e a empregada estavam registrados como funcionários das empresas. E o aluguel? Novo rico não tem casa própria, mora tudo de aluguel em nome da empresa. Essa foi uma pequena amostra do sistema injusto no Brasil, no qual os empregados da classe média são os que mais pagam impostos. As megaempresas costumam ter esquemas para não serem efetivamente fiscalizadas. As pequenas estão na informalidade. São as médias que estão pagando o pato.
Na mesma entrevista, perguntado se “Os grandes lucros dos bancos têm alguma relação com o sistema tributário?” Manifestou:
“Sim, no Brasil você tem um paraíso para o rendimento do capital. Na minha opinião, ainda é um resquício da sociedade escravocrata do século XIX, como se o trabalho devesse ser explorado. Há um claro privilégio para os rendimentos obtidos do capital. A cada bilhão de lucro, o banco paga R$ 150 milhões, quando deveria pagar R$ 250 milhões.”
Verifica-se, portanto, que os brasileiros, notadamente a classe média trabalhadora, além de suportar uma das maiores cargas tributárias, vêem o Poder Público renunciar ou amenizar a tributação dos capitalistas pátrios ou para atrair os capitais especulativos estrangeiros, numa prática mais refinada que a dos mais atraentes paraísos fiscais.
Segundo Evilásio Salvador, [12] a atual legislação tributária trata de forma benevolente a renda do capital, comparativamente a dos trabalhadores, ferindo a isonomia tributária dentre as diferentes espécies de renda, conforme disciplina a Constituição de 88. A legislação atual não submete à tabela progressiva do IR os rendimentos de capital, que são tributados com alíquotas inferiores aos demais rendimentos.
Novamente, os grandes beneficiados pela benevolência tributária do Brasil são os capitalistas, os mais aquinhoados, os que detêm uma maior capacidade contributiva e os especuladores estrangeiros. Novamente, macula-se o princípio da capacidade contributiva.
1.4.Resumo
Ao discorrerem sobre o princípio da capacidade contributiva, os doutrinadores realçam veementemente que o princípio de que se trata deve preservar, eximindo de tributação, a riqueza mínima necessária à sobrevivência digna do ser humano, sob pena de, em não sendo assim, a tributação constituir-se numa violência à liberdade, valor maior da natureza humana, tutelada no Estado de Direito.
Nesse sentido, José Marcos Domingues de Oliveira constrói o entendimento de que “essa riqueza só poderá referir-se ao que exceder o mínimo necessário à sobrevivência digna, pois até este nível o contribuinte age ou atua para manter a si e aos seus dependentes, ou à unidade produtora daquela riqueza”.[13]
O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), organização privada, em recente pesquisa divulgada no Caderno de Economia do Jornal do Comércio, de 06/06/2007, noticiou que a “carga tributária pesa mais para a classe média”.[14] Segundo o IBPT, a carga tributária brasileira é uma das mais altas do mundo e, pelos serviços públicos prestados ao cidadão, é também uma das mais injustas.
A pesquisa aponta que a classe média é que suporta a maior carga tributária, é lógico concluir-se que os mais ricos suportam uma carga, relativamente, menor. Por conseguinte, pode-se também concluir que o princípio da capacidade contributiva está sendo maculado e que o seu subprincípio da progressividade não foi adequadamente manejado.
Em nosso cotidiano prático-profissional, no âmbito da contabilidade, deparamo-nos com diversos paradoxos que adiante detalharemos. Em nosso entendimento, esses paradoxos negam a efetividade do princípio da capacidade contributiva.
Desde já esclareça-se que os paradoxos que adiante serão apresentados não ferem o princípio da capacidade contributiva, necessariamente, por prescreverem uma tributação excessiva, proibitiva ou confiscatória. Ressalte-se, ainda que não ferem o referido princípio por tributarem, necessariamente, a riqueza mínima necessária à sobrevivência digna do ser humano.
Referimo-nos, sim, aos paradoxos que aquinhoam, que abonam, que infundadamente discriminam, que concedem isenções, quase sempre, aos mais abastados, maculando a capacidade contributiva e os subprincípios (proporcionalidade, progressividade, personalidade e seletividade).
Paradoxo 1: Rendimento de Aluguéis Percebidos por Pessoas Físicas Versus Rendimento de Aluguéis Percebidos Por Pessoas Jurídicas.
Inicialmente, pode-se verificar que os rendimentos são da mesma natureza, qual seja: aluguéis. Não é sem motivo que proprietários de imóveis para renda têm constituído sociedades, mediante a incorporação de seus bens imóveis ao capital. É uma prática lícita, cuja denominação é elisão fiscal.
Neste paradoxo, resta óbvio que os rendimentos são de natureza idêntica, ou seja, alugueres. O fato de passarem a ser percebidos por pessoa jurídica não lhe altera a natureza. Para um rendimento da mesma natureza, o legislador concedeu à pessoa jurídica uma tributação muito menos onerosa se confrontada com a devida pela pessoa física.
Não há se falar, nesta hipótese, que a pessoa jurídica suporta gastos superiores aos da pessoa física. No paradoxo sob enfoque, a sociedade empresária constituída para administrar e alugar seus próprios imóveis não é demandada em nenhum gasto que não seja devido, também, pelo proprietário locador pessoa física.
Não temos a pretensão de provar a intenção deliberada ou subliminar com que age o legislador. Entretanto, parece-nos oportuno trazer este tema à reflexão. Se uma lei, ao criar tributos ou ao oferecer desonerações, não levar em conta os princípios que perfazem a justiça tributária não é razoável supor que a intenção deliberada ou subliminar do legislador não estivesse eivada de interesses diversos dos princípios norteadores da justiça tributária, capitaneados pelo princípio da capacidade contributiva.
Vislumbra-se neste paradoxo que, embora tratando da tributação de rendimentos de capital (alugueres), incidentes sobre pessoas diversas – quais sejam: pessoas físicas e jurídicas – sua natureza é a mesma. Portanto, o legislador, deliberada ou subliminarmente, subverteu o subprincípio da progressividade e ignorou, por conseguinte, o princípio da capacidade contributiva.
Nesse paradoxo, parece-nos configurada a subversão do princípio da capacidade contributiva. Se assim o é, não estaria eivada de inconstitucionalidade a legislação que a permite? Sabemos que é legal, mas, não pode ser considerado lícito ou legítimo o pomposo instrumento denominado planejamento tributário (elisão fiscal) que, em última análise permite que, quase sempre, os mais aquinhoados paguem menos tributos que os que têm menos.
Paradoxo 2: A Natureza Tributável dos Lucros no § 5º, Artigo 2º, da Lei Nº 10.101/2000 Versus A Natureza Isenta dos Lucros no Artigo 10, da Lei Nº 9.249/1995.
Não estão sujeitos ao imposto de renda os lucros e dividendos pagos ou creditados a sócios, acionistas ou empresário individual (artigo 10, Lei 9.249/95) gerados a partir 01 de janeiro de 1996. Reitere-se, por oportuno, que essa não-incidência independe do regime tributário da pessoa jurídica, leia-se: lucro real, presumido ou arbitrado. Além disso, a isenção independe também do valor distribuído. Os lucros, portanto, independentemente do valor, serão isentos.
A participação nos lucros ou resultados, por sua vez, caracteriza-se por ser uma figura sui generis, não constituindo um contrato, mas um efeito que decorre do contrato de trabalho. A Lei nº 10.101/2000, que regulamentou o dispositivo constitucional que trata da participação nos lucros ou resultados, além de estabelecer a natureza não-salarial da participação, dispôs sobre a periodicidade do pagamento, que não poderá ser inferior a um semestre civil.
Pelo exposto, tanto os lucros de que trata o artigo 10 da Lei nº 9.249/95, quanto a participação nos lucros ou resultados da empresa de que trata o artigo 7º, inciso XI da Constituição de 88, regulamentado pela Lei nº. 10.101/2000, constituem-se em aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda para os seus beneficiários.
E não é só. A vigente Carta Magna ao referir-se ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, no inciso I, § 2º, do artigo 153, expressa que o imposto de renda “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei”.
Depreende-se do exposto que o artigo 10 da Lei nº. 9.249/95, ignorou, a um só tempo, os três critérios constitucionais formadores do imposto de renda. Ao estabelecer a isenção de imposto de renda sobre os lucros, desconsiderou o critério da generalidade, da universalidade e da progressividade.
O artigo 10 da Lei nº. 9.249/95 converteu a natureza tributária dos lucros. Os lucros, até então tributáveis, foram isentados do imposto de renda. Conforme exposto, a referida mudança de natureza passou a viger a partir de 1º de janeiro de 1996.
Compreendemos que o lucro é um produto ou fruto do capital, representando para quem o aufere a aquisição de uma disponibilidade econômica, uma renda. Nesse contexto, o lucro está, indiscutivelmente, inserto na hipótese de incidência do artigo 43 de Código Tributário Nacional.
Os lucros são resultados econômicos positivos da atividade empresarial. Assim, os lucros pertencem à empresa. Se, ao investir os lucros em sua própria atividade ou na expansão da empresa, a ativação desses lucros fosse tributável, por certo, estar-se-ia diante de uma flagrante bitributação.
Porém, ocorre que, no paradoxo ora abordado, os lucros mudam de titularidade. Saem da esfera patrimonial da pessoa jurídica que os gerou para ingressar no patrimônio da pessoa física, dos sócios. E, diante disso, concluir que os lucros devem ser considerados isentos, sob pena de incorrer-se em bitributação, não se configura razoável.
Se razoável fosse, por analogia, ter-se-ia que admitir que os salários, esses sim, legítimos frutos do trabalho, também deveriam ser de natureza isenta. Ora, sabe-se que tanto o capital quanto o trabalho são fatores de produção de uma empresa. Então, se os frutos do capital (lucros) devem ser isentos de imposto de renda, por quê os frutos do trabalho (salários) não o são?
Desta feita, o legislador não se mostrou suficientemente sensível para captar ou acolher os anseios dos trabalhadores, no sentido de isentar de tributação a participação nos lucros ou resultados da empresa.
O lucro é um produto ou fruto do capital, representando para quem o aufere, a aquisição de uma disponibilidade econômica, uma renda. Enquadra-se, portanto, na hipótese de incidência do artigo 43 de Código Tributário Nacional. E, se por algum fundamento, os lucros devem ser isentos de imposto de renda quando distribuídos aos sócios, em regra, detentores de uma maior capacidade contributiva, com maior justiça, deveriam ser isentos do mesmo imposto de renda ao serem pagos aos empregados a título de participação nos lucros ou resultados da empresa.
Paradoxo 3: Renuncias Tributárias em Favor da Renda do Capital
Aludiu-se nos paradoxos anteriores que se vem taxando, mais significativamente, a renda dos trabalhadores assalariados e as classes de menor poder aquisitivo, via tributação sobre o consumo, ao longo dos últimos anos. Além disso, pode-se afirmar que o Estado brasileiro vem abrindo mão de receitas tributárias importantes em favor da renda de capital.
Uma dessas renúncias fiscais é a dedução (como despesa) dos juros sobre o capital próprio pagos pelas empresas aos acionistas. Esse entendimento encontra fundamento no artigo 9º da Lei nº 9.249/95.
Entre os privilégios tributários concedidos ao grande capital, especialmente os bancos, está a isenção de imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior (art. 10, Lei 9.249/1995).
Não bastasse, recentemente o governo editou a Medida Provisória – MP nº 281 (15/02/2006), reduzindo a zero as alíquotas de IR e de CPMF para investidores estrangeiros no Brasil. As operações beneficiadas pela MP são cotas de fundos de investimentos exclusivos para investidores não-residentes, que possuam, no mínimo, 98% de títulos públicos federais.
Verifica-se, portanto, que os brasileiros além de pagar uma das maiores cargas tributárias do mundo, vêem o Poder Público amenizar e ou mesmo renunciar a tributação, num franco favorecimento aos mais abastados ou para atrair os capitais especulativos estrangeiros, numa prática mais refinada que a dos mais atraentes paraísos fiscais.
A atual legislação tributária trata de forma benevolente a renda do capital, comparativamente a dos trabalhadores, ferindo a isonomia tributária dentre as diferentes espécies de renda, conforme disciplina a Constituição de 88. A legislação atual não submete à tabela progressiva do IR os rendimentos de capital, que são tributados com alíquotas inferiores aos demais rendimentos.
O Brasil é um verdadeiro paraíso fiscal para o rendimento do capital. É um claro resquício da sociedade escravocrata do século XIX, como se o trabalho devesse ser explorado. A Casa Grande que tudo possuía, tudo dispunha, com a Lei Áurea foi herdada pelos “coronéis” que continuaram ditando as regras por um longo período. Hodiernamente está em poder do soberano “mercado”. Entenda-se por “mercado” a nova ordem internacional também conhecida por globalização, neoliberalismo, capitalismo selvagem.
A Senzala, nada possui, nada dispõe. Quem nada possui e nada dispõe não passa de um escravo moderno, fruto do capitalismo dito selvagem. A esses escravos modernos, cada vez mais numerosos, resta disputar a falta de moradia, a falta de emprego, a falta de comida, a falta de educação condizente, a falta de saúde, a falta de decência, a falta de vergonha, a falta de respeito, a falta de ética, a falta de perspectiva…. Ainda assim, nosso sistema tributário privilegia os rendimentos oriundos do capital. Em contraponto, tributa desmedidamente os rendimentos e o consumo dos que menos ou nada possuem, os escravos.
Notas:
[1] Como Professor de Monografia I e II, da Universidade Católica de Pernambuco, tenho entrado em contacto com alguns trabalhos de pesquisa extremamente interessantes, e, por vezes, que adotam perspectivas inéditas. É este caráter quase inédito que o aluno-pesquisador chama de paradoxos práticos. São apresentados exemplos contundentes de como o direito tributário brasileiro vem violando o princípio constitucional da capacidade contributiva, invertendo pragmaticamente o comando constitucional.
Informações Sobre os Autores
Hélio Silvio Ourem Campos
Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutorado. Juiz Federal Titular da 6ª Vara/PE, havendo composto a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais em Brasília (2003-2007). Desembargador Federal em exercício no TRF da 5ª Região. Professor Titular da Universidade Católica do Estado de Pernambuco. Ex-Procurador Judicial do Município do Recife, Ex-Procurador Judicial do Estado de Pernambuco, Ex-Procurador Federal
Arlindo Marostica
Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco