A importância de algumas CPI’s tem sido apagada por frustrantes resultados apresentados em seu julgamento. Este breve artigo, baseado na Teoria Sistêmica e, mais detidamente, nos estudos derivados de Luhmann, pretende demonstrar (muito rápida e um tanto superficialmente) que tal resultado decorre da falta de comunicabilidade entre os sistemas[1] JUDICIÁRIO E COMISSÕES PARLAMENTARES DE INVESTIGAÇÃO.
1. Noções de sistema/meio, autopoiése e acoplamento[2]
Sistema é um “objeto complexo (ou totalidade) do qual toda componente (uma parte interna) está relacionada, no mínimo, com uma outra componente (outra parte interna).”[3]
Se autopoiése significa “fazer a si mesmo”[4], autopoiético é o sistema que se autodelimita, autodetermina, auto-regula, automantém; não é o meio ou qualquer outra forma de “energia” ou “operação” alheia ao conjunto interativo de seus elementos que os constituem, regem ou formam, mas ele mesmo. Na autopoiése, como explica MATHIS[5], ocorre um “fechamento operacional”, de modo que “um sistema complexo reproduz os seus elementos e suas estruturas dentro de um processo operacionalmente fechado com ajuda de seus próprios elementos.”
Em relação de fronteira com o sistema, está o meio; ou seja, este é tudo que circunda aquele. Importante notar que outros sistemas são também meio.[6]
Meio e sistema mantêm entre si relação de troca[7].
Entenda-se, no trecho que se segue de MATURANA e VARELA, o ser vivo como legítimo representante do sistema autopoiético:
“Nessa congruência estrutural, uma perturbação do meio não contém em si uma especificação de seus efeitos sobre o ser vivo. Este, por meio de sua estrutura, é que determina quais as mudanças que ocorrerão em resposta. Essa interação não é instrutiva, porque não determina quais serão seus efeitos. Por isso usamos a expressão desencadear um efeito, e com ela queremos dizer que as mudanças que resultam da interação entre o ser vivo e o meio são desencadeadas pelo agente perturbador e determinadas pela estrutura do sistema perturbado.”[8]
Este relacionamento desencadeia modificações no sistema e no meio. Tais trocas sistema/meio resultam da sua dupla contingência, segundo Humberto MARIOTTI, no prefácio do A Árvore do Conhecimento:
“se os considerarmos isoladamente são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.”[9]
Ora, devido à mútua interação meio/sistema, é possível deduzir a existência, de um processo evolutivo que exige múltiplos estados estruturais sucessivos, de acordo com a provocação do meio. Conforme cada momento, portanto, apresenta-se uma estrutura presente. Acoplamento nada mais é senão esse processo mutacional evolutivo continuado.
Bem, é evidente a transposição para o caso dos dois sistemas sociais em foco: Comissões Parlamentares de Inquérito e Judiciário são sistemas autopoiéticos, que se autodeterminam, se automantêm, se auto-regulam. Em sua identidade própria cada qual interage com o outro, que lhe é meio.
Possíveis são as trocas, das quais inevitavelmente surgirão mudanças de estado sucessivas em um e em outro, ou seja, haverá acoplamento.
A seguir analisar-se-ão alguns aspectos que envolvem tais acoplamentos.
2. Comunicação[10], complexidade, diferenciação e contingência
As operações elementares dos sistemas sociais, como as Comissões Parlamentares de Inquérito e Judiciário, são as comunicações. “Como observadores chamamos de comunicativos os comportamentos que ocorrem num acoplamento social, e de comunicação à coordenação comportamental que observamos como resultado dela.” (MATURANA e VARELA)[11]
Perceba-se que a comunicação deve ser vista como função do sistema, própria dele, identificadora dele, sendo como tal autogeradora, reprodutora de outras comunicações, que geram novos elementos e que, ao mesmo tempo dependem das operações anteriores e condicionam operações futuras.[12]
Em sendo uma operação interna e “não há comunicação entre sistemas sociais e o meio, assim como o sistema não recebe informação do meio. O que existe é comunicação do sistema, tendo como referência o seu meio. Nesse caso o sistema constrói internamente – através da observação – a sua informação sobre o meio.
“(…) nenhum sistema pode atuar fora de suas fronteiras. É válido ressaltar que o conceito da autopoiesis em nenhum momento vem negar a importância do meio para o sistema, pois, lembrando, sem meio não há sistema. Autopoiesis refere-se à autonomia, o que não significa autarquia.” (MATHIS)[13]
Mesmo em meio à co-evolução, atente o leitor que tanto Comissões quanto Judiciário apresentam estruturas próprias e seria exatamente o acoplamento estrutural que lhes importaria um sistema mais amplo e, ao mesmo tempo, garantir-lhes-ia a manutenção da diferenciação individual.
Transpondo as palavras de MATHIS[14] e levando em consideração que os sistemas em estudo são, evidentemente, sub-sistemas de nosso sistema social do poder público:
“As formas de diferenciação do sistema significam estados e possibilidades diferentes na evolução do sistema. Cada forma de diferenciação do sistema incorpora somente restritas possibilidades de desenvolvimento. Esgotadas essas possibilidades, a continuidade da evolução requer uma nova forma de diferenciação. Dentro de uma dada forma de diferenciação nenhum sub-sistema pode ser substituído por um outro, isso devido a necessária diferença entre os sub-sistemas como fator constitutivo. Para que, apesar disso, evolução se torne possível, precisa-se dentro do sistema, formas latentes de uma possível nova ordem. Formas que no decorrer da formação da sociedade podem se tornar dominante. Isso significa que evolução precisa de várias formas de diferenciação ao mesmo tempo, para germinar opções de seleção. Embora a evolução coloque a necessidade de várias formas de diferenciação ao mesmo tempo, existe sempre uma forma de diferenciação principal. Essa forma de diferenciação primária se destaca pela sua capacidade de regular as possibilidades das demais formas de diferenciação.”
Ressaltem-se as informações supra de que as complexidade e diferenciação apontam para formas latentes de “nova ordem”[15], que de per si, exige seleção, e de que a regulação das possibilidades de diferenciação será proveniente de uma diferenciação primária a determinar as demais.
Tanto mais perturbações (interações) tanto maior a complexidade das estruturas internas, tanto mais necessárias formas latentes geradora de nova ordem.
Numa transposição ao caso, prever-se-iam, por exemplo, nas Comissões elementos que recepcionassem o jargão ou as regras ou a hierarquia procedimental do Judiciário; do lado oposto, prever-se-iam no Judiciário elementos que igualmente recepcionassem, por exemplo, a democratização ou flexibilização nos procedimentos, formas probatórias menos rígidas etc. Desta feita, ter-se-ia garantida a possibilidade de uma diferenciação primária comum.
3. Contingência, ordenação pelo sentido e liberdade de escolha
Toma-se contingência por algo que não é necessário tampouco impossível, algo que é/está, era/esteve ou será/estará assim como e é/está no momento, mas poderia ser diferente. Esta múltipla possibilidade de atuação equivale a grau de liberdade de escolha entre as alternativas de atuação do próprio sistema, visto em si e por si mesmo.
Ora, por óbvio, para o outro sistema, o sistema meio e também observador, o grau de liberdade acarreta incerteza, é fonte de insegurança, ou, no miúdo das palavras cotidianas, eterna surpresa. Eis aí mais evidente a complexidade do meio, para a qual só há uma forma de superação, aumentar sua contingência, isto é, elaborar novas estruturas mais complexas, conseqüentemente, evoluir.
Ao contrário do que se cria, a evolução nada tem a ver com adaptação ao meio, mas com mudança nas estruturas devido a operações internas do sistema, ou seja, ele tem que ser/estar, conforme se viu na seção anterior, adaptado para evoluir. O meio perturba, desencadeia, mas é o sistema, conforme suas estruturas próprias, que percebe esta perturbação e se modifica. Nas palavras de MATHIS[16]:
“A seleção das variações geradas em conseqüência de uma comunicação ao separar o que tem daquilo que não tem sentido. Vale observar que ele é perturbação externa somente terá como resultado uma nova re-estabilização do sistema, se as novidades podem ser incorporadas dentro das características estruturais do sistema.”
O sentido é o elemento definidor dos sistemas, simplificando a complexidade da resultante da interação de outros fatores como normas, valores e metas. Por conseqüência, a ordem (ordenação) é criada na interação das preferências do sistema, resultando em um aparato simbólico de regulação diferenciativa, logo, valorativa.[17] Assim, o sistema ao mesmo tempo constitui sentido e é constituído por sentido. Em sua autológica, os sistemas estabelecem, para seu limite, o limite de sua significação. Vale dizer, os desencadeadores de comunicação são os sentidos de informação escolhidos.
No caso específico da comunicação, a diferenciação se dá pela funcionalidade de seus elementos ou subsistemas e conseqüente códigos binários[18].
A comunicação somente se realiza na compreensão da diferença entre mensagem e informação, e, seguindo a lógica sistêmica: comunicação produz comunicação e isso mantém o sistema.
4. Da precariedade de comunicabilidade entre os sistemas Comissões e Judiciário
Do exposto podem-se esboçar algumas conclusões pertinentes à problemática comunicacional dos sistemas focalizados.
Comissões Parlamentares e Judiciário são sistemas autopoiéticos, cada qual apresenta uma estrutura própria, mas passível de mutação (acoplamento) conforme interação entre eles, no entanto, dada a funcionalidade diversa, para o que há diferentes códigos binários de saída, isso não lhes permite uma visão totalitária, reduzida à diferença específica que um só código estabeleceria. A informação existe, mas a mensagem não chega: se para as Comissões a base binária é político/não-político, para o Judiciário é lícito/não-lícito.
Dado o enorme grau de complexidade de ambos sistemas, aumentam as possibilidades de “desapontamento, de indicação enganosa” por referir-se a algo inexistente ou inatingível.
Reforçando a idéia de Maturana e Varela sobre a comunicação antes vista, extraiu-se de A sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann:
“A visão do mundo de um sistema funcional é aquela que o seu código lhe permite ver. E como cada sistema funcional tem um código específico, cada sistema funcional tem sua versão específica do mundo, e consegue no máximo observar que existem em seu meio – nos outros sistemas funcionais – visões diferentes do mundo. A unidade da sociedade se constitui como poli-contexturalidade dos mundos específicos dos sistemas funcionais.”
reitera-se a informação de que a mútua observação dos sistemas se dará pelo filtro de si mesmos: só se observa o que se consegue enxergar. Só se consegue notar o que se distingue pelo código escolhido.
Pela força da Lei, temos que os sistemas Comissões Parlamentares de Inquérito são formados e se mantêm para realizar uma função específica que lhes projeta numa estrutura sui generis, qual seja, “terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”[19], podendo ser tomada como situação de acoplamento. A validade deste acoplamento se daria se o resultado que dela derivasse fosse de natureza jurídica, ou seja, comunicasse ao meio um resultado desta natureza jurisdicional, servindo ao seu prosseguimento, via julgamento pelo Judiciário.
Nas palavras de Lumahnn:
“Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se possa realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas, ou seja, que essa indicação poderia ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível ou algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não mais lá está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos.”
Assim, mesmo que a Lei estabeleça à parcela do Legislativo das Comissões uma tarefa jurisdicional e que esta tenha como extensão o julgamento pelo Judiciário, fato é que ambos não desenvolveram entre si a nova ordem comum, um código binário comum.
Inúmeras seriam as possibilidades (contingências) de novas estruturas, contando, inclusive, com a possibilidade de resultados (penas) políticos derivados do julgamento pelo Judiciário, como cassar, suspender, multar, ou ainda, contar com o voto popular em espécie de júri ou plebiscito. Mas isto significaria perda de liberdade de escolha interna dos próprios sistemas, transportando as palavras acima para simples reforço: “complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos.”
Informações Sobre o Autor
Rita de Cássia Mader Nobre Machado
Acadêmica de Direito, especialista em Língua Portuguesa