Da criminalização da pobreza à visibilidade das alianças transnacionais subalternas

Resumo: A globalização não é fenómeno novo. Este discurso já não é novidade. Assim, o que vamos aqui teorizar é acerca da resistência à globalização hegemónica, objetivando demonstrar que a globalização hegemónica não está definitivamente consolidada, na medida em que tem na sociedade civil global o seu contraponto e o revés de sua moeda, estabelecendo o que se convencionou chamar de globalização contra-hegemônica, sendo esta desafiadora da própria hegemonia liberal, sendo as por meio alianças transnacionais subalternas e de suas ações que os grupos sociais subalternos alcançam visibilidade. Para este estudo, os referenciais teóricos que nos embasaram foram as teorias de Gramsci, Boaventura Sousa Santos e Norman Fairclough.


Palavras-chave: Globalização – Resistência – Aliança – Criminalização – Visibilidade.


Abstract: Globalization is not new phenomenon. This speech is not new. In this article we theorize about the resistance to hegemonic globalization, aiming to demonstrate that globalization is not hegemonic definitely consolidated, to the extent that global civil society has in its counterpoint and the defeat of its currency, establishing what is conventionally called of counter-hegemonic globalization, which is challenging the very liberal hegemony, and the subaltern through transnational alliances and their actions that the subordinate social groups achieve visibility. For this study, the theoretical frameworks that were in the stand upon the theories of Gramsci, Boaventura Sousa Santos and Norman Fairclough.


Keywords: Globalization – Resistance – Alliance – Criminalization – Visibility.


Sumário: 1. Notas preliminares. 2. Globalização: desterritorialização,  reterritorialização e a criminalização da pobreza. 3. A globalização contra-hegemônica e as alianças transnacionais. 4. Conclusão.


1. Notas Preliminares


Aos setores que se opõem à globalização contra-hegemônica, que lutam sistematicamente pela diminuição entre as expectativas e as experiências que são experimentadas, tendo em vista pertencerem à esfera da sociedade civil incivil e, de certa forma, da estranha, foram relegados nada mais nada menos que a criminalização da pobreza, cabendo aos mesmos o rótulo de perigosos.


Assim, para fazer frente à dominação hegemónica, é importante para a luta subalterna, a formação de um bloco contra-hegemônico, pois necessário fazer uso das mesmas “armas” e estratégias dominantes.


Não podemos olvidar que a crise mundial experimentada ao redor do mundo é reflexo da própria globalização hegemónica e só a mobilização social e popular pode vir em resposta à mesma. Entretanto, por mais diferentes que sejam os grupos em luta pela inclusão social e contra a hegemonia dominante, sejam eles nacionais ou estrangeiros, a capacidade de resistência é algo que possuem em comum.


2. Globalização: desterritorialização,  reterritorialização e a criminalização da pobreza


Se de um lado a modernidade criou novas oportunidades, por outro encarregou-se de engendrar um lado sombrio e opressor. Marx & Engels (2000, p. 38) já demonstravam que a globalização não é fenómeno novo, ao menos em um dos seus aspectos, quando ao escreverem o Manifesto Comunista, em 1848, apontavam:


“Mediante a exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países (…) As antigas indústrias nacionais (…) são superadas… por indústrias que não empregam mais matérias-primas indígenas, mas matérias-primas vindas das mais longínquas regiões do mundo e cujos produtos não só se consomem no próprio país, mas em todas as partes do globo. (…) No lugar do antigo isolamento das regiões e das nações que se bastavam a si mesmas, se estabelece um intercâmbio universal, uma interdependência universal das nações”.


Trata-se de previsão dos autores quanto ao momento atual? Naturalmente não, mas mera constatação daquele momento histórico, que em muito se assemelha ao atual, o que atesta que o processo não é recente. O que o processo de globalização hegemónica trouxe, acentuado pelas novas tecnologias, foram diversas formas de manifestação de dominação.


Este processo traz em si duas visões comumente uniformes, conforme afirma Ruivo (1999, p. 173): a de que o Estado enquanto unidade geomorfológica não mais subsiste e a de que os aspectos político e social vem cedendo espaço ao económico. Esta segunda afirmação, em especial nos limites sociais, principalmente na sua capacidade de mobilização e resistência, é que se coloca neste artigo.


É conhecida a afirmação de Marx e Engels (2000) sobre o fim do capitalismo e sempre foi dito que a previsão estava errada e que o mesmo não se sucederia. Entretanto, como muitos afirmam, o processo de globalização é extremamente contraditório, inserindo em si sua própria instabilidade, surgindo, neste prisma novas oportunidades de luta (Wood, 2001, p. 105). Com a crise mundial hoje experimentada, ainda não sabemos o destino, mas com certeza podemos observar que a situação não está como dantes, totalmente controlada. Os abalos contra-hegemônicos também são muitos e pode-se verificar que a força vem de todo o lado, das cidades e dos campos.


A globalização hegemónica tem na sociedade civil global[1], segundo Taylor et. alli. (2002, p. 05), o seu contraponto e viés equilibrador e suavizador, engendrando formas de ação coletiva nos diversos níveis (local, nacional e global). Como afirma Amin   (2001, pp. 32-33), este modelo hegemónico dominante é, na realidade, frágil, posto que sustentado na aceitação permanente de que o povo aceitará as más e vis condições ininterruptamente ou, se caso manifestarem o farão de forma isolada e sem impor risco ao sistema dominante.


Para responder a estas questões, além dos pensamentos de hegemonia e contra-hegemonia, de Gramsci, e de regulação/emancipação, das linhas abissais e sociologias da emergência e ausência, de Boaventura Sousa Santos, que são valiosos neste trabalho, temos os entendimentos de Fairclough (2001, p. 122), que trata de algumas concepções acerca da hegemonia, que aqui valem ser trazidas:


1. é tanto liderança quanto exercício de poder, em vários domínios de uma sociedade, quais sejam o económico, político, cultural e ideológico;


2. é a manifestação do poder de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais sobre a sociedade como um todo, porém nunca alcançando, senão parcial e temporariamente, um equilíbrio instável;


3. é a construção de alianças e integração através de concessões (mais do que a dominação de classes subalternas);


4. é, finalmente, um foco de luta constante sobre aspectos de maior volubilidade entre classes e blocos, a fim de construir, manter ou mesmo a fim de romper alianças e relações de dominação e subordinação que assumem configurações económicas, políticas e ideológicas.”


Cumpre trazer neste artigo algumas definições acerca da globalização, necessárias para uma melhor compreensão da questão. Assim, comecemos pelo entendimento de Santos (2007b, p. 06) que define o processo de globalização[2] como um “fenômeno múltiplo, com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas, que se entrelaçam de modo bastante complexo”. Afirma mais. Determina globalização como sendo “um processo através do qual uma determinada condição ou entidade local amplia seu âmbito a todo o globo e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar como locais as condições ou entidades rivais” (Santos, 2007a, p. 16; 2007b, p. 16). Compartilho deste pensamento de Santos, para quem sempre haverá, em qualquer circustância global, um forte componente local e de cunho cultural, lembrando que a globalização é muito mais do que uma ideologia, posto que, na verdade, as várias formas de globalização hegemônica é que são promovidas como ideologia, segundo Sklair (2005, p. 55).


Já Nagaraj (2001, p. 277 e ss.) entende e limita o conceito de globalização ao aspecto económico, com reflexo na cultura e recursos locais dos países mais fortemente atingidos pelos seus efeitos negativos.


No campo social, verifica-se a emergência da classe capitalista transnacional[3], a qual Boron (2001, p. 44) chama de elite global, afirmando que a mesma é


“uma classe mundial constituída por gigantescos monopólios que controlam crescentemente os mais diversos setores da produção, das finanças, do comércio, dos meios de comunicação de massa e toda uma amplíssima gama de serviços e cuja lógica de acumulação condena crescentes segmentos da população do mundo à miséria e ao despotismo dos mercados”.


Esta classe é composta, segundo Sklair (2005, p. 59) por quatro frações: a fração corporativa, que inclui as empresas multinacionais; a fração estatal, que liga-se aos Estados globalizados e seus políticos e burocratas; a fração técnica, referente aos profissionais globalizados; e, como última fração, a consumerista, composta pelos meios de comunicação.


Aparentemente, a globalização pode gerar a falta de competição no mercado, mas Wood (2001, p. 107) afirma ser efetivamente o oposto[4], onde o próprio monopólio e concentração de capital é uma de suas expressões, havendo destruição das pequenas empresas e novas formas do que o autor denomina macrocompetição, que envolve os Estados nacionais.


Segundo Boron (2000, p. 118), as empresas transnacionais são planetárias quanto à extensão de suas atividades e interesses, mas são e sempre foram dependentes dos Estados. Há ainda quem coloque em questão a internacionalização da produção, afirmando que só há, na realidade, corporações de base nacional com alcance transnacional, conforme nos esclarece Wood (2001, pp. 101-102). Assim, demonstra-se que, na verdade, não há efetiva separação entre o Estado e o político como hegemonicamente se faz crer.


Enquanto a globalização hegemônica impõe aos diversos países ajustes estruturais na área econômica, no campo social produzem desajustes estruturais, traduzido em um aumento das desigualdades sociais, com uma intensificação da concentração de riquezas. A produção globalizada produz uma incrível concentração de poder econômico no plano mundial, razão pela qual as firmas multinacionais vêm se transnacionalizando[5]. Entretanto, tal fato ocasiona profundas mudanças na estrutura social do mundo. A globalização é produtora de riquezas, mas também contribui para a criação e acirramento de enormes desigualdades sociais e formas de exclusão social, levando várias comunidades à miséria, à fome.


As conseqüências sociais advindas do processo desigual de globalização, conhecidas como ajuste estrutural, são inúmeras, citando, a título de exemplificação, aumento da desigualdade social, achatamento do salário, aumento do desemprego, aumento da exclusão social e espacial, concentração maior de renda, flexibilização dos direitos sociais, degradação ambiental, e outras demais implicações. Todo este quadro se tornou palco extremamente propício à criminalização da pobreza[6], com o consequente encarceramento dos miseráveis. Restam aos pobres, excluídos do sistema, a criminalização de suas condutas ou, em grau leve, ações de assistencialismo, por parte do Estado ou entidades privadas de toda a sorte, camufladas pelo véu da responsabilidade social.


Desta maneira, Polanyi (1980, p. 34) identifica um duplo movimento no processo histórico do livre mercado. De um lado, há uma liberação das forças do mercado de todo controle social, o que ocasiona uma ruptura na coesão social, e de outro, e em contrapartida, a sociedade, aos poucos e por intermédio da política, vai tentando atenuar os efeitos nocivos do mercado e introduzir, na economia, um certo controle social. É o duplo movimento de hegemonia e de contra-hegemonia que se pode perceber neste contexto.


O processo de globalização muda nossa relação com o espaço e com o tempo[7]. A ação à distância, que se relaciona com o advento de meios de comunicação globais e instantâneos, favorecidos pelas inovações tecnológicas, é um efeito do processo de globalização, que trata da efetiva transformação do espaço e do tempo. Santos (2007b, p. 17) afirma que a compressão espaço-tempo consiste “no processo social mediante o qual os acontecimentos se aceleram e se estendem ao redor do mundo”. Há simultaneamente fatos acontecendo em espaços distantes no globo e que para além de comprimido, esta relação encontra-se também segmentada e fracionada em zonas civilizadas e selvagens (Santos, 1999, p. 31), e a mídia se encarrega de facilitar e promover a conexão entre as localidades.


Neste sentido, Giddens (2002) define globalização como sendo “a intensificação das relações sociais que vincula localidades distantes, de tal modo que os acontecimentos locais são marcados por eventos que tem lugar a milhas de distância e vice-versa”[8]. Sim, a globalização aproxima pessoas e eventos que talvez nunca viessem a ter contato se não fosse o aprimoramento e o desenvolvimento da tecnologia e a internet, que deu forte propulsão aos processos globalizatórios, tanto hegemônicos quanto contra-hegemônicos. Sim, a globalização não é de todo má, até porque os mesmos instrumentos e meios que utiliza para dominar, também são úteis para os movimentos subalternos rebelarem-se contra a opressão e lutar pela sua inclusão ou diminuição das desigualdades advindas do mesmo processo.


Acompanhando Bauman (1999, p. 08), não podemos deixar de pensar que o processo globalização abre uma enorme clareira entre aqueles que tem e os que não tem e não se pode pensar que somos todos globais, pois uns são mais globais que outros. Há acentuação da localidade para uns e mobilidade[9] para outros. Os efeitos da globalização são diferentes sobre cada grupo, na medida em que uns indivíduos são plena e verdadeiramente globais enquanto outros são locais e a localização[10], enquanto ausência de possibilidade de movimentação nos espaços, é sinal de privação e degradação social. Na relação espaço-tempo, quando se trata de globalização, ao mesmo tempo se fala em global e também em local.


A anulação das distâncias temporais e espaciais, em razão dos avanços tecnológicos, tende a polarizar a condição humana. Para uns, garante uma liberdade, uma mobilidade sem precedentes; enquanto para outros, gera uma impossibilidade de desterritorializar-se e, ao mesmo tempo de apropriar-se da localidade da qual tem pouca chance de sair. Face à fluidez das informações, a elite pode exercer seu poder à distância, tornando-se extraterritorial. A globalização igualmente implica, em termos de espaço, no que se pode chamar de desterritorialização ou reterritorialização. A globalização traz em si as várias formas de localização, na mesma medida em que a desterritorialização proveniente deste processo global também carrega a reterritorialização.


Se por um lado, num mundo onde o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão além do controle dos governos nacionais, a compressão de tempo/espaço trazida pelo processo de globalização, possibilita que alguns objetos, como a economia, movam-se mais rápido do que outros sendo possível inferir, como Bauman (1999, p. 10), que o significado mais profundo transmitido pela idéia de globalização é o caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais, isto é, há uma ausência de centro (controle). A globalização é, pois, segundo Jouitt, uma “nova desordem mundial”. Desta forma, mantém-se os habitantes locais como locais e permite aos globais viajarem, se locomoverem de consciência limpa.


Segundo Gramsci (1971), há na sociedade civil uma enorme variedade de instituições não-coercitivas, que se constituem em estruturas e atividades exteriores ao Estado e ao mercado, como sindicatos, escolas, associações profissionais, educativas e culturais, que são palco tanto de manutenção da ordem hegemônica quanto da emergência de contra-hegemonia. Assim, podemos ver os movimentos sociais, tanto quanto assinalado por Giddens (2005, p. 112), no sentido de que os mesmos podem direcionar significativamente as possíveis transformações vindouras.


Há um certo estilo de vida e pensamento hegemônico que se difunde e que se impõe como sendo universal, silenciando outros modos de vida, idéias e saberes. Nesta medida, setores da sociedade civil são cooptados pelas forças hegemônicas para dar aparência de identificação com a ordem mundial hegemônica. Santos (2001a, p. 74) igualmente menciona o risco de movimentos sociais, inicialmente contra-hegemônicos, serem cooptados e nesta medida tornarem-se hegemônicos, por atenderem a estes interesses.


É o risco da cooptação na medida em que o poder hegemônico utiliza-se de movimentos, que a partida seriam contra-hegemônicos, permitindo certa forma de expressão, não por liberdade e democracia do espaço hegemônico, mas sim para dar esta aparência e informar à sociedade o tom de consenso de seus ideais. Neste sentido, igualmente nos informa Houtart (2001, p. 96) ao afirmar que nem todas as resistências são necessariamente anti-sistêmicas, isto é, contrárias ao sistema capitalista.


Deve-se ter em mente, que os ideiais hegemônicos, para serem efetivamente dominantes, não impõem somente interesses que lhes são próprios. Para dominar, acabam incorporando alguns aspectos, aspirações, ideologias e interesses dos grupos subalternos para assim se fazerem aceitos e, nesta medida, se tornaram consenso. Segundo Bauman (2007, p. 49), a dominação política e econômica dominantes, para assim se manterem, apoiam-se, também, em uma hegemonia espiritual. Neste sentido, ainda, esclarece Hunt (1990, p. 321) que uma “hegemonia exitosa necessita congregar valores e normas que contribuam para os padrões mínimos de vida social (…) um bloco hegemônico incorpora, de certa forma, um compromisso auto-consciente para reunir alguns elementos do grupo subordinado” (tradução nossa). [11]


Neste processo, a sociedade civil assimila idéias que vê como potencialmente perigosas, e deste modo cria consenso cultural e político, segundo Cox (2002). É permitido uma certa margem de atuação pelos grupos dominados, mantendo a aparência de aceitação continuada das relações de forças presentes, a que Katz (2006, p. 335) chama de revolução passiva e avança afirmando que


“a sociedade civil à la Gramsci é também de onde emerge a liderança e os movimentos da base, quando a privação se mobiliza através da conscientização, e a revolução pode ser preparada. A hegemonia necessita da contra-hegemonia – a hegemonia e a contra-hegemonia devem ser vistas como “movimentos duplos simultâneos” formados em reciprocidade – a hegemonia dá forma à contra-hegemonia, e os esforços contra-hegemônicos levam as forças hegemônicas a realinharem-se e a reorganizarem-se”.


Para alterarem a forma de dominação e cooptação, necessário aos grupos contra-hegemônicos se portarem de forma complexa e associativa de modo global, formando também, na mesma medida e utilizando a terminologia já neste trabalho mencionada de Katz, um bloco histórico contra-hegemônico, sendo para o autor, esta a primeira condição de mudança do quadro hegemônico.


Segundo Rupert (1993, p. 20), é a formação de um bloco histórico contra-hegemônico que conduzirá a uma luta integrada intelectual e política, numa variedade de escalas, do local ao global e que lentamente vai construindo um novo regime, sendo importante registrar, conforme Santos (2000, pp. 103, 258-269), que só haverá emancipação verdadeiramente no momento em que se conseguir inverter os topoi da regulação capitalista e seus espaços estruturais, garantindo-lhe seu oposto, visto ser justamente os espaços silenciados em cada um desses processos, e que estes mesmos tópicos encontrem tradução em cada uma das comunidades dos sistema-mundo, bem como torne-se geral, pois esta é a chave mestra da dominação, com a qual os processos emancipatórios devem atuar.


Santos (2000, p. 33 e ss.) chega a afirmar que as classes dominantes já superaram a fase do consenso, posto que alcançaram o objetivo da adesão aos seus ideais e projetos, passando a assentar na idéia de resignação. Convém, atualmente, com o quadro de crise mundial que se apresenta, bem como as formas contra-hegemônicas de atuação, pensar que pode sim haver um retorno à esta necessidade de consenso imposta pela classe hegemônica, visto que neste período de instabilidade os projetos e objetivos hegemônicos podem acabar ruindo.


A globalização hegemônica, quando não encontra forte resistência, acaba ampliando grave desigualdade na distribuição da riqueza, o que veio a gerar a crise mundial que vivemos atualmente, que segundo Amin (2001, p. 27) é a expressão do “acúmulo cada vez maior de capitais que não encontram escoamento na expansão do sistema produtivo”.


Boron (2001, p. 41) aduz que o sistema capitalista se consolidou no mundo, sobrepujando-se e fazendo a sociedade como refém, de modo que “a ditadura dos mercados na fase da globalização neoliberal não reconhece nenhum limite”, engendrando uma verdadeira derrota no campo popular, expressas no “desmantelamento prático dos direitos dos cidadãos nos países da periferia e no enfraquecimento do impulso democrático e redistribucionista que havia caracterizado aos capitalismos keynesianos no centro sem chegar, claro, aos extremos conhecidos na América Latina” (idem, ibdem). Entretanto, o autor compreende a transitoriedade do sistema capitalista e afirma que cada vez mais a camada popular se mobiliza, colocando o neoliberalismo em posição defensiva. A resposta à crise é, também, a força de frentes populares.


Devemos perceber que os momentos de crise refletem também um momento de mudança, um momento de oportunidade de virada histórica. Na mesma medida em que o projeto neoliberal entrou em crise e não consegue desenvolver novas linhas de desenvolvimento e nem absorver a camada de excluídos, entra em pauta os projetos populares, que podem vir a alterar as estruturas de poder.


Quanto maior a crise que se vive, maior será a reorganização mundial, que pode ser positiva ou não. Isso não se sabe. Sabe-se apenas que é um momento de oportunidade de virada.


Do mesmo modo que o pronunciado por M. Thatcher (“There is no alternative”), referindo-se a impossibilidade de haver retorno à globalização e o modo capitalista, podemos nos apropriar desta mesma frase e afirmar que não há outra alternativa que não a associação entre a teoria e prática emancipatória, fazendo com que as estruturas dominantes sofram o necessário abalo da mudança. Verifica-se na América Latina uma forte atuação, tanto dos movimentos sociais quanto dos intelectuais ativistas, se assim podemos denominá-los.


3. A globalização contra-hegemônica e as alianças transnacionais


Vivemos em um período em que o poder encontra-se difuso e difundido em diversas esferas e setores, como os fluxos financeiros, nas escolas, nos hospitais, nos presídios, na família, no trabalho, nas tecnologias, nos meios de comunicação. Nesta medida, a tomada de poder já não é solução para o equilíbrio entre o mercado livre e o mundo fragmentado das culturas, mas sim recriar a sociedade, reinventar a democracia e tentar superar o grave distanciamento entre os incluídos e os excluídos.


O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), ao mesmo tempo que fomentam a economia mundial hegemônica e podem interessar aos grandes grupos e aos meios de comunicação, são também os promotores da pobreza do mundo globalizado. Boron (2001, pp. 45-46) denomina estes organismos como cães de guarda do neoliberalismo e ainda inclui neste rol a Organização Mundial do Comércio (OMC), para além das fundações empresariais como sendo determinantes também na reprodução de ideologias e programas de governo neoliberais, estando mesmo a serviço dos Estados Unidos e de seus aliados. Neste mesmo sentido, temos Chomsky (2000) que perfila um conjunto, criado após a Segunda Grande Guerra, de instituições intergovernamentais direcionadas à preservação dos interesses hemegônicos dos americanos do norte.


Segundo Seoane & Taddei (2001, p. 178), dois consensos contra-hegemônicos foram estabelecidos no primeiro Fórum Social Mundial (FSM): o primeiro, no sentido de que a lógica neoliberal acirra “inevitável e sistematicamente as desigualdades de todos os tipos e a destruição do meio ambiente”; o segundo relaciona-se aos organismos internacionais, como FMI, BM e OMC, como “partes de uma estrutura de poder mundial que representa exclusivamente os interesses dos poderes financeiros e transnacionais e serve para levar adiante políticas que os beneficiam”.


O centro de política econômica hegemônica saiu dos Estados para órgãos como FMI e BM. Não é por acaso que esta política financeira tem sido conhecida como “Consenso de Washington” e que gera, nos diversos pontos do sistema-mundo, reações e manifestações contra-hegemônicas. Entretanto, com a crise mundial atualmente vivenciada, os Estados acabam retornando com mais força e sendo mais necessários, mas imperativo que seja um novo Estado.


O que é preciso, segundo Bello (2001, p. 234), é não se pensar em reforma de instituições multilaterais, como o FMI, BM e OMC, mas sim ser necessário “desempoderá-las, se não para aboli-las e criar intituições totalmente novas que não tenham a marca da ilegitimidade, fracasso institucional e mentalidade jurássica”, sendo este um fim estratégico. É neste sentido que nos socorremos da fala do Padre Jardim Moreira (2006, p. 89), ao afirmar que


“É urgente que os cidadãos actuem com determinação de modo a reafirmarem a necessidade da construção de uma nova sociedade mundial fundada na reinvenção da cidadania social, na promoção de bens comuns mundiais (como a água, a terra, a saúde, a educação etc.) e o esforço de criar instituições mundiais alternativas ao FMI ao Banco Mundial e à Organização Mundial do Comércio”.


Arruda & Boff trouxeram o termo globalização cooperativa como proposta alternativa à globalização econômica hegemônica e centra-se no desenvolvimento dos potenciais dos membros da comunidade, sendo os únicos agentes deste desenvolvimento, tendo como valores principais a cooperação, a partilha, a reciprocidade, a complementaridade e a solidariedade, valorizando a diversidade como elemento importante no desenvolvimento, entre outras[12].


Seguindo Gramsci (1971, pp. 144, 332-337), para que o “elemento subalterno não seja uma coisa (objeto ou reificação), mas uma pessoa histórica”, ele tem que ser um sujeito ativo e as alianças desenvolvidas devem ir além das classes, na direção mesma em que caminham os novos movimentos sociais, temática que será adiante tratada, mas no sentido de uma resistência unificadora, mas não homogeneizadora.


Na linha da contra-hegemonia, Santos (2007b, p. 18) nos ensina que esta luta se desenvolve a partir de uma consciência de novas oportunidades de criatividade e solidariedade transnacional, intencionando substituir trocas desiguais por trocas de autoridade partilhada (Santos, 2006; 2007b, p. 73). É, ainda, “o cruzamento de lutas progressistas locais com o objetivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais” (Santos, 2006, p. 74). Pensando que há uma classe capitalista transnacional, que fomenta a globalização hegemônica, podemos conceber a existência de uma classe ativista transnacional, que vai na contra-mão desta linha. Como afirma o autor (Santos, 2002b, p. 457) em outro lugar, a globalização hegemônica vem sendo enfrentada por


“resistências, iniciativas de base, inovação comunitária, e movimentos populares que procuram reagir à exclusão social, abrindo espaço para a participação democrática, para a edificação da comunidade, para alternativas às formas dominantes de desenvolvimento e de conhecimento, em suma, para a inclusão social”.


O processo de globalização gera um fenómeno de desterritorialização, não obstante as lutas de resistências serem cada vez mais localizadas, ainda que pensadas em termos globais, pois é nesta escala que se encontram as forças hegemónicas atuais. É neste sentido que Estanque (1999, p. 93) afirma que


Apesar dos fenómenos da globalização estarem a levar à erosão a ideia tradicional de “local”, e ainda que as lutas e protestos locais se dirijam a forças que se inscrevem numa lógica global (…), hoje as lógicas de rebeldia que parecem emergir um pouco por todo o lado apelam cada vez mais aos vínculos regionalistas e bairristas, reafirmando novamente a ideia de comunidade.


As comunidades são muito heterogéneas, mesmo dentro de uma certa classe social, mas há, segundo Santos (1995), algo em comum: a capacidade de resistência. Para efetivar suas contraposições à ordem hegemónica, necessário se faz aos grupos sociais invisibilizados, aqueles pertencentes à sociedade civil incivil, criar estratégias que retirem o pano da invisibilidade e chamem atenção às suas questões e necessidades. Para isso os meios de comunicação devem ser mais um espaço de luta e não só de dominação.


As formas contra-hegemônicas[13] se opõem e resistem à globalização dominante, mas também demonstram que o interesse geral apresentado por este processo hegemônico, é, na verdade,  o grande fazedor de desigualdade e de humilhação social. “É a morte do respeito e da dignidade da pessoa”. Assevera Santos (2003, pp. 28-29) que a luta contra-hegemônica assenta no combate à exclusão social e ao fascismo social, com a criação de alternativas. As lutas cosmopolitas anseiam a emancipação das classes dominadas (Santos, 2001: 74), afinal, onde há opressão, há pelo menos resistência.


Neste sentido, para Gómez (2000), é por meio da sociedade civil global que surgem iniciativas de responsabilização dos Estados e do sistema internacional, bem como a mobilização de solidariedades políticas, que desafiam a estrutura do poder nacional, internacional e global, além de configurar o que se denomina globalização por baixo, que redefine e amplia os limites do espaço político democrático e, com isso, as ações de baixo para cima tomam consistência e se tornam cada vez mais visíveis. Gómez (2000) salienta que a cidadania global, combinada com uma política de multiculturalismo, torna menos possível a exclusão, a hierarquização da vida e a violência institucionalizada, que permeia as relações internacionais[14].


Conforme nos transmite Houtart (2001, p. 97), as alternativas ainda estão sendo percorridas, de forma coletiva e permanente, por meio da utopia, considerando ela própria uma das alternativas, que tem uma dimensão ética e base plural, devendo situar-se em um contexto pós-capitalista e, a longo prazo, abandonar a condição utópica e galgar a realidade. Para isso se realizar, segundo o autor, o agir coletivo é imperioso.


Todas as alianças transnacionais e lutas nas diversas escalas planetárias fazem com que a linha abissal que divide os dois mundos mexa-se, entre em movimento, no dizer de Santos (2007b, p. 15), sofra um abalo tectônico. Aqueles que não podiam atravessar a linha e que eram invisibilizados, agora são transgressores compulsivos (termo utilizado por Santos, 1988, p. 164) deste abismo, desta linha tão imaginária quanto real[15] e para tal transgressão nada mais resta do que a resposta na lógica da apropriação/violência, pois este binário ainda não se conseguiu vencer. Para se ultrapassar a linha, deve haver uma forte aliança, em escala global, entre as experiências subalternas, por meio de ligações locais-globais (Santos, 2007b, p. 33) e os meios de comunicação são poderosos instrumentos.


A sociologia das emergências é a abordagem dada por Santos (2002a, 2007b; 2003, p. 35) para interpretar de forma extensiva as iniciativas, movimentos ou organizações contra-hegemônicas, que oferecem alternativas à exclusão social. Por meio da sociologia das emergências, os movimentos sociais conseguem alcançar visibilidade e garantem credibilidade às ações que estariam escondidas.


Os movimentos contra-hegemônicos não são homogêneos e nem lutam todos pela mesma causa. Há uma enorme variedade e diversidade cultural, de objetivos e anseios entre eles, mas tem todos o neoliberalismo e a globalização hegemônica como inimigo comum e “sua natureza contraditória é uma fonte de força, mais do que uma fraqueza” (Castells, 2003, p. 184).


4. Conclusão


Segundo Houtart (2001, p. 92), as lutas contra-hegemônicas se ampliaram tendo em vista que progressivamente tem-se um número mais pessoas atingidas pela fúria neoliberal. Não é de se estranhar que os movimentos contra-hegemônicos provenham originalmente do Sul, posto serem os países periféricos e os semi-periféricos os que mais sofrem os efeitos negativos da globalização hegemônica. Por isso, não se pode pensar em uma teoria única, que diga e dite sobre os movimentos sociais. Deve-se sim, tendo em vista a diversidade de interesses ao redor do globo, se propugnar por uma teoria da tradução (Santos, 2003, p. 33) que habilite a uma compreensão das diversas formas de ver o mundo sem que haja homogeneização.


Não basta que tenhamos uma teoria crítica, sendo necessária uma prática emancipatória, no cediço sentido ditado por Paulo Freire da necessidade de uma praxis libertária, onde a força da ideologia, primando pelos valores essenciais, positivos e de luta transformativa, com sua efetivação no plano político, devem prevalecer para a vitória sobre o neoliberalismo, levando-se em conta que uma luta social somente pode ser efetiva e eficaz se associada entre si e entre o Estado. Se assim não for, luta social e força política, não se consegue implementar a transformação necessária (Sader, 2001, p. 134 a 137). É o fim da ruptura Estado/sociedade, onde seu vazio político dá azo para a cooptação.


 


Referências
Amin, Samir. (2001). Capitalismo, Imperialismo e Mundialização. In José Seoane & Emilio Taddei (Ed.), Resistências mundiais. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
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Notas
[1]
Katz afirma que a sociedade civil global encontra-se em transição, afirmando haver dois modelos. O primeiro pressupõe que a sociedade civil global é cooptada pela hegemonia capitalista e elites políticas, e promove interesses hegemônicos ao espalhar os valores neoliberais; enquanto um segundo modelo garante à sociedade civil global uma infra-estrutura por meio da qual a resistência contra-hegemônica desafiará a hegemonia neoliberal.

[2] Vários são os conceitos de globalização trazidos pelos diversos autores. Por não ser aqui o foco principal deste trabalho, limito-me a mencionar alguns deles neste espaço. Assim, não deixo de discorrer sobre os mesmos. Um conceito importante é o trazido por Gómez (2000, p. 09) que define globalização como sendo a “transformação da organização espacial das relações sociais e privilegiamento das relações e exercício de poder à distância, entre, dentro e para além dos estados nacionais, numa complexa e contraditória desterritorialização e reterritorialização do poder econômico, político e social”. Já Laïdi  conceitua o mesmo processo como sendo “o momento de compressão do espaço, no qual os homens vivem, se movem e trocam, com todas as conseqüências que esse processo tem sobre suas consciências de pertencimento ao mundo” (Laïdi, 1997, p. 294).

[3] Afirma Santos que neste processo de compressão espaço-tempo, temos de um lado a classe capitalista transnacional, onde as empresas transnacionais são as maiores representantes dentro da globalização

econômica, e de outro temos a classe ou grupo subordinado, que lutam por meio de associações, ONGs, movimentos sociais e outros.

[4] Mendes (2001, p. 58) igualmente afirma que a globalização acirra a competição, mas entende que o poder político pouco atua e deixa frouxo o mercado.

[5] Neste período em que vivemos, as empresas transnacionais marcam uma nova era, impondo e liderando uma nova economia mundial, que se pode chamar de globalização da produção, com uma nova divisão internacional do trabalho.

[6] Para saber mais, ver Wacquant (2005).

[7] Giddens nos lembra que na vida pré-moderna, havia uma simbiose entre tempo e espaço, na medida em que só se podia situar no tempo ao se relacionar com o espaço, tendo sido o relógio mecânico o responsável pela separação entre as duas escalas (Giddens, 2005, p. 12).

[8] No mesmo sentido, ver Santos (2007a, p. 305)

[9] Em um mundo globalizado, a mobilidade tornou-se o fator de estratificação mais poderoso, formando novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais. A mobilidade adquirida pelos investidores garante uma nova desconexão do poder face às obrigações (com os trabalhadores, com os jovens, gerações futuras etc.), ficando livres do dever de contribuir para a vida cotidiana e perpetuação da comunidade.

[10] Santos (2001b, p. 77) conceitua localização como sendo “o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas”.

[11] O texto é inglês é: “a sucessful hegemony needs to incorporate values and norms wich contribute to securing the minimum standards of social life (…) a dominant bloc engages in a more or less self-conscious ´compromise’ to incorporate some element of the interests of a subordinate group”

[12] As outras características que podem ser apreendidas em Arruda, M. & Boff (2000, p. 164).

[13] Santos nos fala do cosmopolitismo e da herança comum da humanidade. Para saber mais ver Santos ( 2001c).

[14] Segundo Evans (apud Santos, 2001, p.39) alguns fatores podem ter contribuído para que o modelo de desenvolvimento no Leste Asiático tenha produzido menos desigualdades do que na América Latina, entre eles, a maior autonomia do Estado, a eficiência da burocracia estatal, a reforma agrária e a existência de um período inicial de protecção em relação ao capitalismos dos países centrais.

[15] Santos (2007b, pp. 12-14) nos fala do regresso do colonial, que anteriormente somente avançava à metrópole quando por iniciativa do colonizador (como escravo, por exemplo) e que, agora, assume três figuras: o terrorista, o imigrante indocumentado e o refugiado.


Informações Sobre o Autor

Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)


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