Da desconstituição do ato jurídico perfeito da aposentação

Segundo o saudoso Desembargador Federal Jediael Galvão Miranda[1] a seguridade social é um sistema de proteção social constituído por um feixe de princípios e regras destinado a acudir o individuo diante de determinadas contingências sociais, assegurando-lhe o mínimo indispensável a uma vida digna, mediante a concessão de benefícios, prestações e serviços.

Nesta mesma linha, Sergio Pinto Martins[2] aloca que a seguridade social tem o condão de dar aos indivíduos e a suas famílias tranqüilidade no sentido de que, na ocorrência de uma contingência (invalidez, morte etc.), a qualidade de vida não seja significativamente diminuída, proporcionando meios para a manutenção das necessidades básicas dessas pessoas. 

Desta sorte, a seguridade social é um sistema de extensa proteção social que visa proteger as principiais necessidades da sociedade como um todo. Assegurando um mínimo essencial para a preservação da vida, tal preceito vai absolutamente ao encontro do que preceitua o artigo 1º, inciso III, da Lex Legum, ou seja, a proteção ampla e irrestrita da dignidade da pessoa humana. 

Tal conceito é um dos mais importantes do Estado Democrático de Direito, sendo que este se assemelha ao antigo conceito de la vida bona, ou seja, todos os seres humanos vivem em busca de uma vida boa, e não de uma boa vida. Assim, a nossa Lei Primária aloca que é papel do Estado proteger e propiciar os meios para que o cidadão tenha uma vida boa, ou melhor dizendo, tenha uma vida digna.

Contudo, tem-se que salientar que o sistema da Seguridade Social, adotado no Brasil, possui certas particularidades, posto que pela concepção brasileira apenas a assistência e a saúde são prestadas de forma irrestrita e sem contribuição, enquanto a previdência possui um caráter mais ligado ao de seguro do Direito Civil, posto que, para esta última, é necessário existir contribuições para que o cidadão possa receber sua proteção.

Tsutiya[3] aloca com bastante propriedade tal entendimento, ao narrar que o sistema denominado Seguridade Social idealizado pelo Lord Beveridge é universal. Todos têm direito à proteção social, independentemente de estarem contribuindo ou não. Por outro lado, o sistema do seguro social idealizado por Bismarck exige que o segurado faça uma contribuição, sem a qual fica excluído do sistema protetivo. 

Assim, para o direito comparado o Brasil adotou um sistema de Seguridade Social. Mas na verdade o sistema adotado, não poderia ser chamado de Seguridade Social, haja vista que a Previdência Social conserva ainda a ultrapassada idéia de seguro social.

Em sendo, assim a parte da Seguridade Social que nos interessa para o presente ensaio é a que diz respeito à Previdência Social, o qual como visto tem o condão de Seguro, um seguro público de natureza compulsória, para aquele que esta dentro das espeques legais de segurado obrigatório ou facultativo.

Desta sorte, todo segurado da previdência social, seja obrigatório ou facultativo, tem o direito incontestável de se aposentar, desde que para tanto preencha os requisitos formadores do Ato Jurídico Perfeito da Aposentadoria, sendo: pressupostos ensejadores legais + ato volitivo positivo do segurado. Senão vejamos:

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Como se pode facilmente perceber, o círculo representa o ato jurídico perfeito da jubilação, ao passo que todos os requisitos foram completados. Assim podemos afirmar com clareza solar que uma vez preenchidos os requisitos nasce o ato jurídico perfeito da aposentação, o qual possui natureza vinculativa para a Autarquia Previdenciária.


Posto que, sendo a lei quem estabelece as condições para que a mesma ocorra é mais que liquidante que a ocorrência da aposentação tenha como natureza constitutiva a de ato vinculado.


Sob outro prisma, uma vez que os requisitos foram cumpridos, e a vontade do agente tenha se positivado no sentido de se aposentar, a Autarquia Previdenciária não tem outra opção a não ser proceder à aposentadoria do segurado.


Por conseguinte, mais que imperioso concluir que a concessão da aposentadoria é um ato vinculado e não um ato discricionário – em que a autoridade que o prática tem certa iniciativa pessoal no que se refere à conveniência e oportunidade do mesmo.  Como se sabe, ato vinculado é aquele em que quase não resta iniciativa pessoal para a autoridade que o pratica, vez que regulado em Lei todos os minudencies.


Portanto, como ato vinculado, a aposentadoria é sim irrenunciável e irreversível, mas em relação apenas a Autarquia Previdenciária e não em relação ao pedido do segurado.


Posto que, como se sabe, um dos aspectos do fato gerador do direito aos proventos é a vontade do segurado, assim sendo fica claro que, embora vinculado para a Administração Pública o segurado tem o poder de analisar a conveniência e a oportunidade diretamente ligadas a sua vontade e interesse individual e escolher aposentar-se ou não. Do mesmo modo, o segurado pode optar em estando aposentado em pedir a desconstituição do ato de sua aposentadoria, uma vez que o ato volitivo que era positivo e era um dos elementos de formação do ato jurídico aposentadoria se transmudou em negativo, desaparecendo, do cenário de formação do núcleo do tipo da hipótese de incidência do ato jurídico perfeito, promovendo em reação transversa, o rompimento do ato, por falta de um dos elementos constituidores de sua formação. 


Logo, desaparecendo um dos elementos, o benefício deixa de ser devido, eis que para se sustentar o ato jurídico perfeito, todos seus elementos devem estar presentes, assim, no desaparecimento de quaisquer deles, o ato se dissolve, se rompe.


Neste sentido, o segurado pode optar pela desconstituição do ato da aposentadoria. Assim, desejando o segurado reconsiderar sua manifestação volitiva, para não mais continuar aposentado, o binômio constitutivo necessário para concessão da aposentadoria ficará novamente incompleto, posto que embora exista o preenchimento dos elementos legais (idade, tempo de contribuição e etc.), inexistirá o elemento vontade do agente; sendo assim, forçoso concluir que a Administração não poderá continuar a conceder o benefício, eis que o binômio constitutivo não mais existe.

Pois bem, poder-se-ia pensar que tal situação não fosse permitida ou mesmo vedada em lei, ocorre que a premissa aposta é completamente legal, ao passo que a atividade administrativa da Autarquia Previdenciária é na modalidade vinculada, ou seja, o INSS somente concede qualquer prestação após verificar a existência e validade de todos os elementos – vontade (pois os benefícios não são concedidos de ofício) e preenchimento dos pressupostos (ter idade, ter tempo de contribuição, estar inválido, ter tempo especial, dentre outros).


Assim, sua face reversa também deveria operar-se, ou seja, uma vez demonstrado perante a Autarquia Previdenciária, que um dos elementos constituidores do ato jurídico de aposentação desapareceu, nada mais crível que, o ato fosse desconstituído de plano pela Autarquia Previdenciária, posto que este não existe mais no mundo fenomênico dos benefícios.


Logo, se o elemento constituidor do ato que se transmudou fora a vontade do Segurado/Beneficiário em permanecer aposentado, onde este expressa claramente sua opção a não mais gozar do presente beneficio de aposentadoria, por se tratar de direito patrimonial disponível, não restaria outra opção ao INSS a não ser em operar a desconstituição do benefício de natureza aposentativa.


Convém narrar que aqui o que se está a discutir não seria a Renúncia ao Benefício com o retorno ao status quo ante, posto que, se assim o for, pacificado  restará  que para que se opera a renúncia ao benefício que o segurado promova a devolução dos valores por ele recebidos posto que o efeito que se opera na renúncia é o de devolução dos proventos recebidos enquanto perdurou a concessão do benefício. Na desconstituição o efeito que se opera é o rompimento do ato jurídico da aposentadoria, com efeito, ex nunc, posto que, muito embora o direito aos proventos não exista mais no mundo fenomênico pela ausência de vontade do agente, o mesmo, (agente/segurado) continua sendo titular do direito, podendo exercê-lo a qualquer tempo, pois o tempo de contribuição por ele realizado está consolidado ao seu patrimônio jurídico.

Data vênia, a desconstituição do ato de aposentação não gera devolução dos valores já recebidos. Assim, necessário a devida diferenciação entre a Renúncia do benefício e a Desconstituição deste, no primeiro opera-se desistência que caracteriza o ato unilateral com a integração de obrigação de repor o estado anterior, ensejando a respectiva devolução dos valores percebidos a título de benefício, já no segundo, realiza-se a desconstituição de ato administrativo vinculado, sendo necessário além da manifestação volitiva, por se tratar de um direito PATRIMONIAL DISPONÍVEL do segurado a necessidade de novo ato desconstituindo o outrora concedido sem a devolução de valores. 

Portanto, o que se tem em termos de reflexos jurídicos de cada opção é o caráter pecuniário, onde por uma vertente, a renúncia da aposentadoria gera devolução e na sua face diametral colateral, ou seja, na desconstituição não, ou seja, concedida a desconstituição do ato da aposentadoria os valores recebidos enquanto o beneficiário encontrava-se em gozo de benefício não devem ser restituídos, posto que: se não há irregularidade na concessão do benefício não há que se falar em necessidade de devolução  das parcelas percebidas, se a própria lei se silencia acerca da devolução e em não se tratando de renúncia e sim de quebra do ato pela desconstituição o segurado não esta obrigado a repor o status quo ante, sem contar que possuindo as parcelas pagas do benefício, trato alimentar, estas são indiscutivelmente devidas no tempo em que o benefício se perdurou, não havendo razão nem legitimação para sua devolução, pois a devolução feriria de forma visceral o princípio da irrepetibilitadade alimentar, intrínseca aos benefícios previdenciários.

SINTESE CONCLUSIVA:


Assim, ao se desconstituir o ato jurídico da aposentadoria todo o tempo de trabalho/contribuição retorna ao patrimônio jurídico do segurado, posto que, o ato jurídico perfeito (aposentadoria) foi quebrado. Desta sorte, não é sem óbice que a Lei 8.213/91, bem como a Constituição Cidadã acolhem o tema nas formas narradas. Posto que, a possibilitação de se utilizar do instituto da desconstituição do ato jurídico da aposentação, além de estar em total consonância com a Lei, representa, na verdade uma das formas de proteção social do indivíduo, nos termos da Lex Mater.




Notas:

[1] Direito da Seguridade Social, Elsevier, 2007, p. 9.

[2] Direito da Seguridade Social, Atlas, 2007, p. 19.

[3] Curso de Direito da Seguridade Social, Saraiva, 2007, p. 10


Informações Sobre o Autor

Carlos Alberto Vieira de Gouveia

Carlos Alberto Vieira de Gouveia é Mestre em Ciências Ambientais e Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais; Vice-Presidente para a área Previdenciária da Comissão Direitos e Prerrogativas e Presidente da Comissão de Direito Previdenciário ambas da OAB-SP Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Previdenciário da Faculdade Legale


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