Da ética na dialogicidade à dignidade da pessoa humana: o neoconstitucionalismo com vistas ao reconhecimento da alteridade no acesso à justiça

Resumo: Embora estejamos na Terceira Revolução Industrial, deparamo-nos com desigualdades econômicas, políticas e sociais brutais entre países centrais e periféricos, e entre riqueza e pobreza. Mesmo com o progresso material da humanidade ao longo dos últimos séculos das declarações dos direitos humanos fundamentais, a indigência, o preconceito, fruto da ação humana, de guerras, e principalmente de uma globalização econômica que exclui os mais vulneráveis. Os direitos humanos no século XXI têm como grande desafio a efetividade dos direitos fundamentais diante de um mundo da diversidade. E passa pelo reconhecimento da alteridade no acesso à justiça (condição humana), e, portanto, passa pelo campo ético e dialógico que eleve à dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Direitos Humanos Fundamentais. Ética. Dignidade Humana. Justiça

Abstract: Although we are in the Third Industrial Revolution, we are faced with economic inequalities, political and social brutal between central and peripheral countries, and between rich and poor, white and black, yellow and brown, fat and thin, young and old, with and without special needs. Even with the material progress of mankind over the last centuries of the statements of fundamental human rights, indigence, the result of human action, wars, and especially an economic globalization that excludes the most vulnerable.  Human rights in the twenty-first century have to challenge the effectiveness of fundamental rights, in a world of diversity. And includes the recognition of otherness in access to justice (the human condition), and therefore passes through the ethical and dialogical to elevate the dignity of the human person.

Keywords: Fundamental Human Rights . Ethics. Human Dignity. Justice.

Sumário: Introdução. 1. Raízes históricas da pobreza: do medievo à modernidade excludente. 2. Os direitos humanos fundamentais no século XXI e seus desafios: a pobreza, a negação da diversidade e a crise global do centro à periferia do capitalismo. 3. Da ética na dialogicidade à dignidade da pessoa humana: o neoconstitucionalismo como reconhecimento da alteridade. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

No mundo globalizado e impulsionado pela Revolução Técnico-Científico-Informacional, em que os problemas econômicos, políticos e sociais afetam a todos pelo modelo de exponenciação do capital a serviço das corporações mundiais, deparamo-nos com um dilema que atravessa as gerações ou as dimensões dos direitos ao longo do tempo: a pobreza, a rejeição do outro indesejado, a partir de preconceitos calcados num modo de vida consumista a partir de critérios estético-culturais. O não reconhecimento da alteridade seja por discriminação de cor, sotaque, cultural, estética, se faz presente no cotidiano. Vivenciamos uma globalização perversa.

O neoconstitucionalismo com vistas ao reconhecimento da alteridade na efetividade de direitos humanos fundamentais faz-se mister tendo a dignidade da pessoa humana como princípio fundante expresso nos artigos 1º (inciso III), 170 (III) e 226 (VII) da Constituição Federal, enquanto estrutura do Estado de Direito, como salienta Jacintho (2006). E perpassa, no campo principiológico as relações subjetivas, interpessoais e institucionais, envolvendo liberdades civis, étnicas e culturais, que dizem respeito às dignidades.

“Neste século XXI, partimos da consciência de que a supremacia da Constituição e a aplicabilidade direta de suas normas se fundam no princípio da democracia, que a tutela da autonomia da vontade não é suficiente para proteger a dignidade, especialmente em sociedade desiguais como as nossas, e que métodos aparentemente neutros e mecânicos como a subsunção servem a encobrir escolhas valorativas, inevitáveis a qualquer processo de interpretação”. (BODIN DE MORAES, 2008, p. 39).

Nessa perspectiva para além do “eu” e do “tu” a dignidade da pessoa humana é pautada no reconhecimento da alteridade pela pluralidade de atores que compõem nossa história, e a partir delas podemos estudar as formas de democracia enquanto construção republicana com instituições sociais justas e éticas, apesar da emblemática realidade de exclusão dos mais vulneráveis.

No contexto do processo de globalização nos moldes atuais produz e reproduz mais desigualdades sociais ou culturais, no entendimento de Milton Santos (2006), ‘globaritarismo’, visto que as decisões são tomadas nos países centrais a partir de interesses das empresas transnacionais. Nessa perspectiva, o poder econômico se sobrepõe ao político, ou seja, quem controla o Estado é a economia internacional (os grandes conglomerados internacionais).

Há, como nunca, a exponenciação do capital, multiplicado inúmeras vezes e esse processo se tornou possível pela Terceira Revolução Industrial, que permitiu a globalização nos moldes atuais, cujo Estado atua para socorrer o sistema financeiro em detrimento de políticas públicas (entre as quais a educação) voltadas ao social, como nos ensina Francisco de Oliveira (2007). 

A crise atual do sistema financeiro mundial, a partir da quebradeira de 2008, impulsionada pelos Estados Unidos da América, remete-nos à reflexão acerca da globalização econômica e do agravamento das questões sociais via negação da cidadania, precarização das condições de trabalho e salário e prevalência da mais-valia absoluta[1].

 “Esta é a questão central, se queremos esclarecer quais são os nexos que constituem a encruzilhada na qual o Brasil se encontra na transição do século XX ao XXI: desmonta-se o projeto do capitalismo nacional e instala-se o projeto de capitalismo transnacional. Esse o significado principal da ‘Reforma do Estado’, compreendendo a criação do “Estado mínimo”, isto é, desregulação, privatização, abertura de mercados, favorecimento de fusões e aquisições de empresas nacionais por transnacionais […].

[…] Simultaneamente, intensifica-se a privatização dos sistemas de ensino e da saúde, ao mesmo tempo em que se redefinem as relações de trabalho e as condições de funcionamento da previdência, de maneira a favorecer a transformação dessas esferas da ‘questão social’ em espaços de aplicação lucrativa do capital privado, no qual predominam as empresas, corporações e conglomerados transnacionais”. (IANNI, 2000, p.1).

Estima-se que hoje, no mundo, cerca de um bilhão de pessoas passe fome. Entre as possíveis formas de combate à pobreza estão as cooperativas agrícolas.

 “Cooperativas Agrícolas Alimentam o Mundo

[…] Este é o tema do Dia Mundial da Alimentação 2012. A celebração é promovida em todo o planeta pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), no dia 16 de outubro. Foi neste dia, no ano de 1945, que foi criada a FAO

[…] Estimativas recentes da FAO revelam que cerca de 1 bilhão de pessoas passam fome em todo o mundo. Embora o Brasil esteja cada dia mais perto de debelar o problema da fome, fruto do êxito de suas políticas públicas, muitos brasileiros ainda convivem com esse flagelo social.

Entre os objetivos do Dia Mundial da Alimentação estão: estimular uma maior atenção à produção agrícola em todos os países e um maior esforço dos países para acabar com a fome; estimular a cooperação técnica e econômica entre os países em desenvolvimento para acabar com a fome.

Outros objetivos são: promover a participação das populações rurais, em especial as mulheres camponesas e grupos mais vulneráveis, nas decisões e atividades que afetam as suas condições de vida; fortalecer a consciência política sobre o problema da fome no mundo.

A FAO também quer que os países promovam a transferência de tecnologias e fomentem o sentido de solidariedade interna e externa na luta contra a fome, a desnutrição e a pobreza, bem como celebrar os êxitos obtidos em desenvolvimento agrícola e alimentar […]”. (Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/consea/eventos/semana-mundial-da-alimenta cao-2012>. Acesso em: 29 set. 2012).

Refiro-me à questão da pobreza enquanto um tema que perpassa todas as revoluções, começando pelo medievo, continuando na modernidade até a contemporaneidade e diz respeito à dignidade humana como fundamento do estado democrático de direito no presente, em especial pelo garantia da participação política das populações na tomada de decisões pelas políticas públicas dos governos rompendo com autoritarismos das elites globais e locais.

A afirmação histórica dos direitos humanos no século XXI encontra novos desafios. A necessidade de reconhecimento do outro como cidadão e não como mero consumidor, para além da questão econômica encontramos a questão social da não visibilidade do pobre, indigente, embora todos os dias cruzamos com eles nas ruas, praças, esquinas. Ou mesmo refugiados fugindo de guerras, na luta contra a fome. A negação do outro assume viés ideológico e alcançam crenças, religiões, valores que afirmam ou negam o outro como pertencentes ou não ao mundo de padrões ético-estéticos e culturais formador de preconceitos, estereótipos de todos os tipos entre nações ricas e pobres e mesmo entre nacionais em seus países. O presente artigo discute desde as raízes históricas da pobreza no entendimento dos dilemas existenciais humanitários no novo milênio passando pela negação individualista dos sujeitos “indesejados” até a perspectiva neoconstitucional da ética na dialogicidade calcada na alteridade pelo reconhecimento na diversidade étnico-cultural e social. Em especial a luta pela efetividade da dignidade da pessoa humana como dimensão de direitos humanos fundamentais.

1. RAÍZES HISTÓRICAS DA POBREZA: DO MEDIEVO À MODERNIDADE EXCLUDENTE

No estudo da pobreza é importante recorrer à história enquanto contribuição dialética para refletirmos sobre o presente. Nesse sentido, o historiador Georges Duby (1993) atenta para algo que inquieta a espécie humana enquanto movimento cíclico no tocante à reflexão do passado ao longo de quinhentos anos. Trata-se da referência à questão da pobreza enquanto dilema existencial, o que o famoso historiador chama de segregação do pobre pelo corpo social.

Georges Duby, (1993), já no limiar do ano 2000, chamava atenção para o dilema cotidiano de povos famélicos migrando em busca da sobrevivência. Como exalta o referido autor, voltar ao passado (evolução da sociedade na Europa no medievo) é relevante para refletirmos sobre o presente:

“A Europa de 1 000 anos atrás não era menos exuberante que a de hoje nos países do Terceiro Mundo. Nada a limitava, a não ser a castidade imposta a uma parcela considerável da população masculina votada ao serviço de Deus. As práticas contraceptivas e abortivas não eram desconhecidas, apenas de uso extremamente restrito e severamente condenadas pelas instituições religiosas.

No entanto, essa exuberância era largamente corrigida pela alta mortalidade infantil, mais devastadora nos meios sociais baixos, e por ondas periódicas de escassez alimentar e epidemias. Devido a essa regulação natural, as taxas de crescimento demográfico mantinham aquém de 0,6% ao ano. Isto é, muito abaixo das que se verificam nos países mais pobres de hoje. Se os terrores do ano 1000 realmente existiram, o que duvido, é certo que não se apoiavam na percepção de uma demografia galopante e perturbadora.

Sem a menor dúvida, esse crescimento comedido foi o principal fator do progresso material contínuo que favoreceu a Europa daquele tempo. Pode-se afirmar que todas as conquistas da civilização européia, o impulso da ciência, o abandono da selvageria são frutos dele. Foi um fator de progresso porque se operava em espaços onde a densidade de ocupação do solo era pequena, comparável à da África negra de hoje.

O aumento de população encontrava facilmente onde se espalhar, e aí está a principal diferença da situação presente. O capital de que podiam dispor os homens se oferecia em abundância: era a terra. No meio de uma economia essencialmente rural, em que a mão-de-obra constituía o mais ativo agente de produção, o crescimento determinou a extensão do espaço cultivado e o aumento dos rendimentos”. (DUBY, 1993, p. 230-231).

Nesse período a fome, a indigência e a caça aos pobres não tinha se estabelecido, segundo o referido autor. Trata-se, no entanto, de uma sociedade camponesa que lidava com mecanismos de compensação e de solidariedade. Sob a instituição do domínio senhorial, portanto, a miséria não existia devido aos laços entre o senhor e os súditos.

Em meados do século XII, porém, como salienta Duby (1993), muda-se drasticamente o sentido da história humana. O mito do progresso ganha a consciência coletiva e se descobrem os miseráveis nas cidades, e estes passam a ocupar lugar de destaque do outrora mundo antigo:

“É nas cidades que servidores do conde de Champagne socorrem infelizes que não podem se alimentar sozinhos. É também nas cidades que se criam as primeiras fundações destinadas a aliviar o sofrimento dos mais pobres. Com excedentes da população rural sendo despejados nas periferias urbanas, e com o sistema de solidariedade tradicional incapacitado para atender todos, a questão do indigente tornou-se preocupação do conjunto do corpo social.

Os motivos não diferem substancialmente dos de hoje: fortunas até então fundiárias começaram a se desestabilizar e a riqueza tornava-se mais móvel, portanto também mais vulnerável – uma bolsa e mesmo um cofre se roubam mais facilmente do que um pedaço de terra. Os ricos não tardam em perceber a utilidade de atender às necessidades dos pobres, a fim de evitar que eles próprios tomassem a iniciativa”. (DUBY, 1993, p. 232).

Assim, portanto, nesse período o cristianismo, a partir da Igreja Católica, atenta para a caridade entre ricos e pobres. Ordens religiosas como a dos dominicanos e a dos franciscanos exaltam valores da partilha entre possuidores e despossuídos como sendo bom aos olhos do criador, sendo a pobreza colocada como valor fundamental, enquanto invocação da graça divina a caridade dos homens como ética humana. 

Com o crescimento demográfico e a produção no campo não dando conta de alimentar a população no mesmo ritmo, temos, já no século XIV, a falta de pão pela pouca produtividade da terra e a sua insuficiência para atender às necessidades sociais. Ocorre, porém, que a moral vigente impedia a segregação dos pobres, como salienta Duby (1993):

 “É verdade que a pobreza da época se mantinha diluída no corpo social. Não existia nas aglomerações urbanas uma segregação entre bairros abastados e os outros. Pobres e ricos moravam as mesmas ruas, nas mesmas edificações. Uma tal coabitação tornava mais eficaz o funcionamento do sistema caritativo. Os miseráveis ainda não formavam um grupo coeso, uma classe perigosa da qual fosse preciso proteger-se, cercando-a, expulsando-a.

Foi no século XIV que sucedeu a catástrofe, em conseqüência de uma súbita falha das defesas imunológicas diante da Ásia – a peste […] – talvez um terço da população tenha sido dizimado em alguns meses na maior parte das províncias européias. Um mecanismo natural inesperado restabelecia assim, de maneira trágica e violenta, os equilíbrios que o crescimento demográfico havia destruído.

O choque, no entanto, foi de tal envergadura, amplificado pelo retorno periódico da epidemia e agravado pelas convulsões políticas da época, que, num mundo ainda provido de recursos mas muito traumatizado, se pôs em marcha o processo que dura até hoje: instalou-se na consciência do corpo social a convicção de uma equivalência entre miséria, agressividade e perigo. Foi a grande moldura para o início da exclusão dos pobres. Na Europa do século XV tem início a sua marginalização. Riqueza vira sinônimo de virtude”. (DUBY, 1993, p. 234).

Por sua vez, com a modernidade observa-se um progresso social e jurídico que não atende à sociedade em seu conjunto, o que revela uma leitura distorcida do pensamento positivista de Augusto Comte. Comte pensou um progresso com base no iluminismo dos séculos XVII e XVIII, um progresso que eleve o homem a uma condição de evolução. Isso, porém, na prática, se traduziu num progresso para poucos:

“Os discursos sobre o crescimento e sobre os avanços vão se articulando, no fim do século XVIII, na forma de uma doutrina ou teoria do progresso. Segundo essa doutrina ou teoria: 1. a história é uma unidade regulada por leis que determinam os fenômenos individuais nas suas relações recíprocas e nas relações com a totalidade;

2. o progresso configura-se como uma lei da história; 3. o aumento da capacidade de intervir sobre o mundo e da capacidade de conhecer o mundo é identificado com o progresso moral e político; 4. este é posto numa relação de dependência com aquele aumento; 5. a luta (como ocorre em Spencer e no darwinismo social) é interpretada como elemento constitutivo ou como mola do progresso […]. (ROSSI, 2000, p. 114-115)

[…] Augusto Comte pensava que a origem de progresso humano fosse espontaneamente derivada do desenvolvimento gradual das diversas ciências positivas. Dessa ‘nascente aquele grande conceito se tinha progressivamente estendido ao movimento político da sociedade’. A existência de uma forma de saber dentro da qual se dão indiscutíveis melhoramentos e avanços é pensada como a origem e ao mesmo tempo a confirmação de uma filosofia da história que vê a história caracterizada não só por melhoramentos e avanços, mas por uma intenção racional.

A conjugação entre a visão ‘Baconiana’ do advancement e a ‘Comtiana’ do progresso foi adotada (com sinal invertido) não só pelos arautos do progresso, mas por todos os inúmeros críticos da ciência e da técnica […]

[…] a técnica-ciência é a essência da modernidade […]”. (ROSSI, 2000, p. 128-129).

2. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO SÉCULO XXI E SEUS DESAFIOS: A POBREZA, A NEGAÇÃO DA DIVERSIDADE E A CRISE GLOBAL DO CENTRO À PERIFERIA DO CAPITALISMO.

Em pleno século XXI nos deparamos com um problema que parece ser ignorado pelas potenciais mundiais: a fome, a indigência e, principalmente nas cidades, a pobreza em suas diversas formas, em especial pela negação da cidadania e pelo preconceito.

Paralelamente ocorrem os dilemas econômicos, políticos e sociais relacionados a pessoas desesperadas migrando em busca de abrigo, de comida, de emprego, enfim, de sobrevivência. São, por exemplo, pessoas fugindo da guerra, da fome, refugiados políticos no continente africano e no Oriente Médio devido às crises sociais denominadas de "primavera árabe". Mais recentemente tem-se notícia do que parecia improvável, uma nova onda de multidões no Velho Mundo saindo às ruas protestando por emprego, por previdência social, por justiça social na periferia europeia.

“Indignados' voltam às praças da Espanha em seu 1º aniversário

Nascido há um ano para protestar contra a crise, os políticos e os excessos do capitalismo, o movimento dos "indignados" volta às praças da Espanha neste sábado, no pontapé inicial de quatro dias de mobilizações para demonstrar que seu espírito continua vivo.

Sob o lema "Tomar as ruas", os ativistas, em sua maioria jovens mobilizados através das redes sociais, convocaram concentrações em 80 cidades, entre elas Madri e Barcelona”. (Disponível em: <http://www1. folha.uol.com.br/mundo/1089509-indignados-voltam-as-pracas-da-espanha-em-seu-1-aniversario.shtml>. Acesso em: 30 set. 2012).

Chegamos ao novo milênio com uma sociedade que assume características marcadamente excludentes do outro: “estranho, indesejado, suspeito, pobre”. Populações famélicas, refugiados de guerra, despossuídos de toda sorte.

“Sudão do Sul enfrenta crise humanitária com chegada de refugiados

[…] A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou nesta segunda-feira que a chegada de 30 mil novos refugiados ao Sudão do Sul provocou uma situação de emergência humanitária diante da escassez de água.

Em comunicado, a MSF informou que os novos desalojados somam 70 mil pessoas que já se encontram no estado sul-sudanês de Alto Nilo, onde os campos de refugiados atingiram a capacidade máxima e não dispõem de água potável suficiente”. (Folha de S. Paulo, 04/06/2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1100265-sudao-do-sul-enfrenta-crise-humani taria-com-chegada-de-refugiados.shtml>. Acesso em: 28 jul. 2012.

Na segunda década do século XXI, o combate à pobreza se configura como algo marcante em nossa sociedade globalizada. Nesse sentido, a história nos revela um dos maiores dilemas humanos e que ganha novas dimensões na atualidade, a pobreza se configura na questão central do espírito do próprio capitalismo em vigor, pela produção de riquezas em benefício de poucos, ou seja, pela acumulação exponencial do sistema financeiro mundial, pela negação da pluralidade cultural, pelo aumento das diferenças entre aqueles que estão dentro e fora dos padrões morais e de consumo burgueses – padrões de consumo destrutivos e insustentáveis ambientalmente (destruição das fontes primárias de recursos naturais, que leva ao esgotamento da própria vida). Esse capitalismo se reflete econômica, política e socialmente no mundo dito civilizado, que nega as liberdades e a dignidade humana para todos, sejam ricos e pobres, em especial pelos contrastes sociais gritantes.

Essas considerações iniciais são essenciais para refletirmos sobre o tema da pobreza enquanto questão social em suas múltiplas faces e diz respeito à afirmação histórica da dignidade humana como dimensão dos direitos fundamentais no século XXI a partir da negação da liberdade de viver dignamente aos mais vulneráveis econômica, cultural e socialmente.

Trata-se de “tempos líquidos” nas palavras de Zygmunt Bauman (2007). Nesse sentido, o individualismo enfraquece os vínculos humanos e de solidariedade, traduzindo-se numa globalização perversa:

 “O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos”. […]. (BAUMAN, 2007, p. 30).

André Berten (2011), em “Modernidade e Desencantamento”, aponta a subjetivação e individualização dos seres humanos na modernidade europeia como elemento importante que nos une no presente, mas nos separa historicamente da humanidade anterior aos tempos modernos. Antes a existência humana e o poder para governá-la eram concebidos como de origem divina, e assim se justificava a religião como fundamento da sociedade. Isso, com o encerramento do mundo europeu medievo, mudou e a relação do homem com Deus se individualiza, interioriza-se:

 “O traço mais característico deste desencantamento é a passagem de uma representação transcendente para uma representação imanente daquilo que funda a sociedade, a passagem de uma fundamentação externa para uma fundamentação interna. É o significado profundo da idéia de democracia: uma sociedade que se funda sobre ela mesma. […]”. (BERTEN, 2011, p. 32).

A separação do indivíduo do corpo social, em especial pelo modelo de utilitarista, imposto socialmente, se revela, na atualidade, um dos dilemas dos direitos humanos, em que na busca pelo “ter” se nega o “ser” e se realiza injustiças. O exemplo do trabalho análogo à escravidão (tão criticado e tão presente em nossa sociedade nos shopping centers das grandes avenidas das cidades ou nas plantações de cana-de-açúcar de nosso Estado, para dar dois exemplos significativos) revela que o imaculadamente jurídico caráter da lei pouco alcança os sujeitos deixados à margem da sociedade ou, quando alcança, é no sentido muito mais de retirá-los do corpo social, em especial pelas superlotações das prisões:

“[…] Corpo, Mente e Alma. Eu aludi anteriormente ao fato de que os territórios da mente e do corpo não são fixos – menos ainda fixos pela biologia – mas possuem limites sujeitos à negociação com sistemas particulares de valores, julgamentos e deveres. Este sentido do ego, uma totalidade dividida em capacidades e funções distintas, um corpo espiritualizado e uma mente encarnada, com freqüência mutuamente em desacordo, obviamente tem sido central às teorias éticas, aos códigos de jurisprudência, aos programas pedagógicos e, mais geralmente, às ideias do lugar do homem na natureza. Na verdade, pode-se dizer que as relações mente/corpo, e ainda mais as relações corpo/alma, não apenas constituem um problema interior à ética e à teologia, mas geram o verdadeiro ímpeto, com o mistério por trás delas, para suas profundas especulações. Os elos e as divisões entre mente e o corpo, a história das doenças e dos remédios, como testemunham as condições ‘psicossomáticas’ como a histeria e a hipocondria. Devemos nos lembrar de que as filosofias e as visões do mundo do homem e de sua natureza são em geral atributos de uma metafísica freqüentemente não mencionada do corpo humano. […]”. (PORTER, 1992, p. 322-323).

Do ponto de vista moral, as reações sociais ao isolamento dos indivíduos que estão fora dos padrões econômicos e de consumo social ou culturalmente aceitos acabam por gerar, muitas vezes, um suicídio moral e social. Esse mesmo suicídio provoca, porém, no grupo social que contribuiu para a sua realização uma dupla repulsa, por considerar que a vítima não contribuiu para a autorrealização, sendo, portanto, o fracasso culpa do próprio indivíduo. Acerca do suicídio, Durkheim (2008) observa: "O suicídio é, pois, reprovado porque revoga aquele culto pela pessoa humana sobre o qual repousa toda a nossa moral […]" (DURKHEIM, 2008, p. 123).

O Código Penal, quanto ao suicídio, no artigo 122 prevê apenamento a terceiros apenas nas hipóteses de terem auxiliado a vítima mediante indução ou instigamento ao cometimento trágico. Não há, porém, previsão criminal para outras formas de induzimento ao suicídio moral ou social, seja na legislação nacional, seja em tratados internacionais.

Caso essa legislação existisse, teria que tratar prioritariamente do caso da omissão dos Estados no trato com a fome como um dos crimes mais cruéis da humanidade praticados atualmente, além de outros, em especial contra os indivíduos indesejados aos padrões econômicos (falta de dinheiro ou queda no padrão de renda para o consumo), sociais (o indivíduo já nasce condenado a morrer na miséria pela sua condição social), culturais (intolerância religiosa, preconceito a partir da origem ou etnia, estética, de consumo, entre outros), de regiões, nações, países, ou mesmo em conflitos e guerras civis observados à distancia pelas potências mundiais, de que é exemplo dramático o caso do Sudão do Sul[2], no continente africano, onde milhares de refugiados estão jogados à própria sorte.

Certamente dispor dos elementos mínimos para uma vida digna é um direito elementar do cidadão; e o Estado deixá-lo na marginalidade, isso pode ser considerado, certamente, uma espécie de induzimento ao suicídio social, em especial quando lhe nega o mínimo para sobreviver. Em favor dessa afirmação, haja vista para o fato de que, ao negar ao cidadão um prato de comida, um lar, um trabalho e, portanto, a própria condição do ser humano à existência social, nega-se a própria vida. Não pode o Estado deixar que o indivíduo tenha que buscar o sustento nas ruas, pois isso diz respeito à chamada "lei da selva" e não a condições dignas de vida aceitáveis. Na medida em que o sujeito fica à margem da sociedade e excluído moral, cultural e socialmente, ele está sujeito a condições de vida não dignas, não aceitáveis e nisso se pode haver a falha do Estado quanto aos direitos humanos.

A legalidade como normalização enquanto garantia dos direitos humanos de um país significa, muitas vezes, excluir os sujeitos de outros países e/ou que não se encaixam nos padrões econômicos, sociais, culturais, ideológicos ou políticos de determinadas nações e que estão dentro ou fora das fronteiras desses países. Marx Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, explica que: “[…] o capitalismo atual, que veio para dominar a vida econômica, educa e seleciona os sujeitos de quem precisa, mediante o processo de sobrevivência econômica do mais apto” (WEBER, 2003, p. 50). 

Do ponto de vista prático, indaga-se como lidar com as diferentes formas de pobreza extrema. No Brasil fala-se em milhões de beneficiados com programas de transferência de renda, evitando assim que essas pessoas vivam em extrema pobreza. Embora se reconheçam os avanços, são políticas de governo e não de Estado, e que, portanto, ficam ao sabor de assistencialismo para que tenham sua continuidade. Assim, basta mudar o governo para que possam ser suprimidas.

 “Com base em estudos sobre pobreza, previdência e assistência social, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, destaca os avanços das políticas sociais no Brasil. Segundo ele, sem os programas de transferência de renda (aposentadorias e pensões e os programas Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), 40,5 milhões de brasileiros viveriam com menos de um quarto de salário mínimo”. (Disponível em: <http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/agos to/programas-de-transferencia-de-renda-evitam-que-40-milhoes-de-brasileiros –vivam-na-extrema-pobreza>. Acesso em: 30 set. 2012).

Essas pessoas são tratados como consumidores e não como cidadãos diante da vulnerabilidade social em que se encontram. Isso por não disporem de garantias quanto à manutenção da renda no estrato social alcançado. Há, portanto, uma concepção utilitarista de justiça, quando tratamos as pessoas não como cidadãos na efetivação de direitos sociais, ou seja, quando a relação entre o público e privado se reflete em clientelismos. Em outros termos, passando o pobre a ver em um governo a salvação para seus problemas, isso gera dependência, não autonomia. Não há garantias, portanto, ao direito ao mínimo existencial:

“[…] o utilitarismo é uma doutrina teleológica porquanto define a justiça por meio da maximização do bem para a maioria. Quanto a esse bem, aplicado a instituição, nada mais é que a extrapolação de um princípio de escolha construída no nível do indivíduo, segundo o qual os prazeres simples, as satisfações imediatas, deveriam ser sacrificadas em nome de prazeres ou satisfações maiores, ainda que distantes […]”. (RICOEUR, 2012, p. 66). 

Entre os oito objetivos do milênio a serem alcançados conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) até 2015 encontramos a diminuição da pobreza: 1) redução da pobreza; 2) atingir o ensino básico universal; 3) igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade na infância; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. (Disponível em: <http://www.pnud.org.br/ODM1. aspx>. Acesso em: 30 set. 2012).

Para além da liberdade de consumir, teríamos plena liberdade de viver com dignidade mediante um mínimo existencial com acesso a emprego, renda, moradia, educação de qualidade? A resposta é que vivenciamos muito discurso político, mas poucas reais mudanças sociais no Brasil, campo vasto de desigualdades em todos os sentidos, inclusive no campo de preconceitos contra os pobres.

Há três características do nosso tempo que marcam e apontam preocupações com o futuro da humanidade: “[…] o aumento incontrolado da população; o aumento incontrolado da degradação do ambiente; o aumento incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos […]” (BOBBIO, 1992, p. 49). Internamente, o Estado de direito estabelece os direitos do cidadão, o que é uma versão dos direitos humanos na ordem econômica e social do país, no entanto:

“Descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões aumentam a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade. Mas sabemos todos, igualmente, que a proteção internacional é mais difícil do que a proteção num interior de um estado de direito. Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contrastes entre as declarações solenes e sua consecução entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações”. (BOBBIO, 1992, p. 63).

Existe um descompasso muito grande entre a teoria e a prática do direito:

 “Uma coisa é um direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa é Ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é Ter um direito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembleia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção”. (BOBBIO, 1992, p. 83).

Por outro lado, os Estados utilizam dos discursos de defesa dos direitos humanos da população de seus países em detrimento dos demais, representados como uma ameaça que vai da economia, do social à política. Assim, concordando com Bobbio (1992), na atualidade é inegável a preocupação com o reconhecimento dos direitos humanos em qualquer instância de poderes que controlam o mundo, sejam eles políticos ou pesquisadores, porém como forma de manter desigualdades entre ricos e pobres, ou entre nacionais e estrangeiros.

Acerca da distância entre os direitos e a lei, identificamos as desigualdades sociais no nosso país, embora esteja previsto na Constituição Federal a dignidade da pessoa humana como princípio em seu art. 1º, inciso III. Tal dignidade inclui ao cidadão salário mínimo que dê condições dignas de vida para todos, moradia, educação, saúde, entre outros direitos – e aí vai a grande distância entre a realidade e os direitos garantidos em lei, no entanto temos hoje milhões de brasileiros que não tem acesso ao básico para sobreviver, enquanto precárias políticas de Estado.

Nosso orgulho nacional, no entanto, é ostentar o desenvolvimento econômico, como a sexta economia do mundo. Na realidade, o ‘crescimento econômico’ não fez diminuir o contingente populacional em situação de pobreza. Então, para transformar o país, implantamos instrumentos para promover avanços sociais na distribuição de renda, em especial pela política de crédito à população de baixa renda (crédito consignado), políticas de inclusão por meio do Prouni (Universidade para Todos) e diminuição da pobreza (bolsa família). Mesmo assim, passados anos dessas promoções, ainda representamos um dos países com maior concentração de renda por parte de uma minoria cada vez mais rica, em detrimento a um considerável percentual de miseráveis; ao mesmo tempo em que os latifúndios e os desmatamentos prosperam, falta uma reforma agrária que mantenha o homem fixado às suas raízes rurais, e um combate efetivo à pobreza extrema, enquanto mal enraizado em nossa sociedade que insiste em negá-la:

“As brutais diferenças sociais não são fruto só da concentração de renda. Outro fator importante é a má distribuição da terra e a falta de uma reforma agrária.

[…] Nesse tema ocorre uma grande contradição no discurso dos defensores da propriedade privada como um Direito Natural. Natural significa um direito do ser humano pelo simples fato de ser um ser humano. É prévio ao Estado e ao Direito. É algo assim como o respirar (em relação ao comer já se não pode mais falar), um direito essencial à própria vida. Ora, se realmente a propriedade é um Direito Natural então, dentro de sua lógica, seria um Direito de todos, pois já se acabou a época em que se afirmava, no discurso católico, não terem os negros alma e, portanto, não possuírem direitos. Não mais se pode aceitar serem algumas pessoas inferiores (como as mais variadas formas de escravos), sem personalidade jurídica, negando-se-lhes a qualidade de sujeitos do Direito Positivo e, também, de sujeitos do intitulado Direito Natural. Os dados apresentados, entretanto, demonstram o contrário, ou seja, ser este ‘direito natural’ só para uns poucos, e isto significaria serem uns mais naturais em relação aos outros”. (ANDRADE, 1996, p. 47).

Falar em direitos humanos, esquecendo-se de garantir uma política agrária efetiva, que dê ao homem do campo a terra para plantar e condições mínimas para o seu desenvolvimento social, como saúde, educação, moradia, renda mínima, sem que necessite se deslocar aos centros urbanos em busca de emprego, entre outros direitos, se constitui num falso direito. Assim, portanto, falarmos em direitos humanos sem justiça social, sem participação efetiva da maioria excluída no processo de sua construção, é um engodo. Direito é justiça social necessária ao desenvolvimento coletivo:

“Vê-se que, no dia a dia, a igualdade dos cidadãos, declarada em lei, não é observada sequer pela administração pública, na hora de oferecer os serviços pagos com o dinheiro dos contribuintes. Estes, como será visto, normalmente, não são os mais ricos, pois, mesmo sendo inaceitável, as pessoas mais aquinhoadas, no Brasil, acabam pagando menos impostos. Entretanto, recebem mais dinheiro do governo, não só através dos serviços públicos, mas, também, por intermédio de financiamentos subsidiados para suas empresas, para seus latifúndios e, até mesmo, para seus gastos supérfluos. Soma-se a isso uma outra poderosa forma de transferir dinheiro público para as contas bancárias dos achegados ao poder: a corrupção”. (ANDRADE, 1996, p. 58).

No caso brasileiro especialmente na grande metrópole como São Paulo a situação da pobreza se traduz num dilema pela precariedade nas políticas públicas local. Os dados obtidos a partir do Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo (2011) identificam 14.478 recenseados nesta condição social conforme Núcleo de Pesquisas em Ciências Sociais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP, (2012) em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

“A pesquisa do censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo recenseou, no ano de 2011, um total de 14.478 (quatorze mil quatrocentos e setenta e oito) indivíduos, sendo 6.765 (seis mil setecentos e sessenta e cinco) em situação de rua e 7.713 (sete mil setecentos e treze) em centros de acolhida da capital”. (FESPSP; PMSP, 2012, p. 11)

Na crença de que é possível um mundo globalizado, em que a informação impulsione não só o capital, mas também a distribuição da riqueza produzida, pelo acesso à justiça, a equidade. Defendemos a dignidade da pessoa humana como dimensão de direitos humanos fundamentais no século XXI pela necessidade de luta pela efetividade das políticas públicas de erradicação da fome, da indigência, e contra os preconceitos em suas diferentes formas, pela pluralidade social, étnica, cultural, religiosa. Dignidade humana que passa pela participação política na pólis com vistas à emancipação humana. A ética do humano passa pelo campo político-jurídico na interpretação pela ratio legis, especialmente nos casos difíceis.

3. DA ÉTICA NA DIALOGICIDADE À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O NEOCONSTITUCIONALISMO COMO RECONHECIMENTO DA ALTERIDADE

A efetividade dos direitos humanos fundamentais se realiza mediante o reconhecimento das relações dialógicas no pluralismo jurídico tendo diante da complexidade dos casos concretos a dignidade da pessoa humana como princípio fundante com vistas ao acesso à justiça.

Ética na dialogicidade entre o sujeito e a alteridade em instituições justas e legítimas, portanto ético-jurídico-políticas, como apresenta Paul Ricoeur[3] (2008).

Pensar o neoconstitucionalismo do ponto de vista filosófico envolve o pensamento aristotélico da ideia de justiça com equidade. Nesse sentido, ao intérprete na busca da ratio legis exige-se um distanciamento necessário pelo juízo prudencial, deontológico e reflexivo exercido pelo terceiro, representado pelo Estado enquanto instituição social. O justo numa perspectiva cíclica visa o bem da vida que se traduz na felicidade do corpo social pelo pensamento plural do bem comum.

Na perspectiva da hermenêutica constitucional situamos como reflexão filosófica o pensamento de Paul Ricoeur (2008) que traz dois eixos centrais voltados à ideia de justiça: (i) como regra moral e instituição e (ii) como justo, adjetivo usado na força do neutro grego: dikain (Em "Justiça e Verdade" e outros ensaios). Tendo como referência a “pequena ética” da obra "Soi-Même comme um Autre" ("O Si-Mesmo como um Outro",) a ideia de justo perpassa pelo sujeito e sua relação com a pluralidade de instâncias:

1) A prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da visada da vida boa, com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;

2) A necessidade, no entanto, para a visada ética de passar pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e

3) A legitimidade de um recurso da norma moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis: os hard cases do direito, da medicina ou da vida cotidiana.

[…] Nesta distinção entre visada da vida boa (visada ética) e obediência às normas (à norma moral), podemos facilmente reconhecer ‘a distinção entre duas heranças’: a herança aristotélica [‘a ética é caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fim)’]; e a herança kantiana [‘a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deontológico significando precisamente ‘dever’)]”. (MAGALHÃES, 2002, p. 104).

Uma concepção de justiça identificada na ética do humano pela revelação da vulnerabilidade existencial e que vai além da moral para o campo do viver bem em instituições legítimas tendo o “ser” como o centro das decisões se aproxima da visão kantiana do homem como “um fim em si mesmo”. Nesse sentido, para além da obrigação e da vinculação da norma, o sujeito responsável exerce papel social pela participação política na tomada de decisões (consciência, organização, reflexão e ação) na pólis com vistas à emancipação humana. A República diz respeito ao governo que inclua a todos e visa o bem da coletividade para além de determinados grupos e/ou clãs.

Os dilemas e os conflitos permeiam as histórias de vida. Valores e crenças muitas vezes são frustrados por sentenças de apenação (ditadas pelo agente judiciário em nome do Estado) que não fazem justiça, que não preveem o perdão, tampouco promovem a reabilitação, isso por causa da impossibilidade de mensuração do bem que se perdeu. As relações sociais deveriam ser permeadas pela ética do humano (ética aristotélica da virtude com equidade e ética kantiana das obrigações vinculadas à garantia da dignidade humana). Assim, portanto, mais que viver em instituições formalmente isonômicas, faz-se primordial o retorno ao “mito” na compreensão filosófica do direito: a linguagem como espaço de comunicação do “eu” com o “outro” pelo respeito à pluralidade cultural e social e pela formação de um campo da legitimidade política como espaço de inclusão das diferenças com vistas ao bem comum. Nesse sentido, as variáveis cíclicas rompem com as tradicionais relações patrimonialistas egocêntricas calcadas na tradição, família e propriedade privada dos meios de produção como centro de interesses e passa-se das relações do “ter” em direção às relações do “ser” na valorização à pluralidade étnico-cultural e social.

A efetividade dos direitos humanos fundamentais, portanto, passa pela legitimidade das instituições democráticas e superação da sua crise de poderes.

Com vistas à ideia de justiça e injustiça, em Aristóteles (2001) podemos refletir acerca das diferentes acepções do justo enquanto uma relação de poderes. É nas relações de poder entre as diversas instâncias de governo e deste com a comunidade que os homens se revelam (ARISTÓTELES, 2001, p. 93):

“[…]  ‘na justiça se resume toda a excelência’

Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo […].

[…] praticamente a maioria dos atos prescritos pela lei é constituída de atos prescritos tendo em vista a excelência moral como um todo; de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral, e as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como um todo […]. Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação mais desenvolvida. E já que o igual é o meio termo, o justo será um meio termo […]”.  (ARISTÓTELES, 2001, p. 93-95).

Assim, portanto, a ideia de justiça diz respeito, na concepção aristotélica, aos atos que produzem a felicidade da comunidade política, a excelência moral pela imposição da prática de certos atos e proibição de outros. É o bem dos outros. É também a justiça uma virtude intrínseca ao ser humano em busca do bem que lhe é próprio. A justiça, portanto, enquanto meio-termo, é proporcional (ARISTÓTELES, 2001).

Quem condena ou quem absolve, esse faz a justiça ou a injustiça dando ou retirando o que há de mais precioso na vida do homem: a dignidade. Esse operador da justiça, em geral, em vez de aplicar uma decisão adequada ao sujeito, acaba por subjugar a própria pessoa (geralmente o mais fraco) e, como resultado, as relações subjetivas, interpessoais e institucionais ficam ainda mais assimétricas.

A ideia de sujeito de direito capaz se expressa no plano moral, jurídico e político. Nessa perspectiva, a noção de identidade narrativa do sujeito capaz é associada ora à ideia ética de bem, ora à ideia de obrigação, a partir das ações julgadas como boas ou más, permitidas ou proibidas, enquanto sujeito de imputação. Há também um nexo mútuo entre autoestima e a avaliação ética das ações que visam à vida boa (concepção aristotélica), assim como há um nexo entre o autorrespeito e a avaliação moral das ações submetidas à prova da universalização das máximas da ação enquanto concepção kantiana. Assim, portanto, autoestima e autorrespeito definem a dimensão ética e moral do si-mesmo, como dimensão do homem sujeito de imputação ética, jurídica e política.

O princípio da observação aos pactos enquanto regra de reconhecimento engloba a todos os que vivam sob as mesmas leis. O meio, no entanto, para realização das potencialidades humana, é o âmbito político. Assim, podemos identificar algumas características norteadoras do campo ético-político. Entre as quais a democracia direta no plano social para além da democracia representativa, no liberalismo econômico. Outra seria a da política com papel norteador e civilizador, o que seria realizado por meio de instituições sociais adequadas a esse ideal. Tal política teria como centro a ética pública a partir de relações subjetivas, interpessoais e institucionais que conduzam à emancipação humana que passa pelo respeito à pluralidade étnico-cultural e social.

CONCLUSÃO

A afirmação histórica dos direitos humanos visa à autodeterminação dos povos, por meio da dignidade humana com fulcro nas liberdades públicas na construção do que somos e o que queremos para o presente e futuras gerações. Em especial diante da banalização da vida em suas diversas formas, inclusive quanto à fome, as desigualdades econômicas, sociais, culturais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, ricos e pobres.

Vale lembrar no contexto histórico em que foi criada a ONU serviu de baliza para que atrocidades do nazismo não voltassem a se repetir. No entanto a atual configuração do Conselho de Segurança é do contexto da Guerra Fria. Na atual configuração do mundo da Terceira Revolução Industrial precisa incluir novos atores sociais que possibilite superar a globalização perversa, e das políticas neoliberais que negam o mínimo existencial a todos, brancos e negros, africanos e europeus. Cristãos e muçulmanos.

As nações desenvolvidas e em vias de desenvolvimento têm papel central nesse novo contexto mundial, com destaque para o Brasil e sua tradicional cultura da paz.

A consciência histórica se revela como instrumento primordial da nossa identidade humana a partir dos direitos humanos ao longo da história. No respeito à pluralidade culturais e na luta contra as violações dos direitos fundamentais das diferentes etnias.

Na atualidade o maior dilema humano é a pobreza em todas as suas faces, em especial a realização de políticas públicas que possibilite a efetividade do acesso à justiça em sua plenitude. A justiça social pelas políticas públicas que transforme em realidade os direitos sociais: como o cidadão ter um prato de comida nas três refeições por dia, pela assistência social aos desamparados do sistema público de saúde no tratamento da dependência química e não o tratamento como caso de polícia, pela moradia digna, emprego e renda. Pelo direito à vida digna que passa pela ética com respeito às diversidades (reconhecimento da alteridade) com vistas ao acesso à justiça. É preciso, portanto a autoaplicabilidade do princípio da dignidade humana como mecanismo que vise não só assegurar mais garantir a efetividade dos direitos humanos fundamentais.

 

Referências
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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992.
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Notas:
 
[1] Cf. Sandroni (2010, p. 73). O aumento da mais-valia absoluta ocorre tanto pelo aumento da jornada de trabalho como pela intensidade com o que o trabalho se realiza.

[2] Sudão do Sul enfrenta crise humanitária com chegada de refugiados
[…] A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou nesta segunda-feira que a chegada de 30 mil novos refugiados ao Sudão do Sul provocou uma situação de emergência humanitária diante da escassez de água.
Em comunicado, a MSF informou que os novos desalojados somam 70 mil pessoas que já se encontram no estado sul-sudanês de Alto Nilo, onde os campos de refugiados atingiram a capacidade máxima e não dispõem de água potável suficiente. (Folha de S. Paulo, 04/06/2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1100265-sudao-do-sul-enfrenta-crise-humani taria-com-chegada-de-refugiados.shtml>. Acesso em: 28 jul. 2012.

[3] “RICOEUR, Paul (1913-2005). O francês (nascido em Valence) Paul Ricoeur, decano honorário da Universidade de Paris X (Nanterre) e presidente do Instituto Internacional de Filosofia, é um dos mais fecundos filósofos de nossa época. Preocupado em atingir e formular uma teoria da interpretação do ser, toma como seu problema próprio o da hermenêutica, vale dizer, o da extração e da interpretação do sentido. Convencido de que todo o pensamento moderno tornou-se interpretação, elabora uma grande simbólica da consciência, que se encontra na raiz mesma de todas as determinações históricas e espirituais do homem. Ao revisar a problemática hermenêutica, passa a entendê-la como a teoria das operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos. Para ele, é o símbolo que exprime nossa experiência fundamental e nossa situação no ser. É ele que nos reintroduz no estado nascente da linguagem. Por isso, elabora uma filosofia da linguagem capaz de elucidar as múltiplas funções do significado humano.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 241).


Informações Sobre o Autor

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho

Doutor em Direito – FADISP. Mestre em Políticas Sociais – UNICSUL. Advogado


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