Da incongruência de um procedimento inquisitório no tribunal do júri

Resumo: A Constituição Federal de 1988 classifica o processo penal brasileiro como sendo o acusatório. Dessa forma, se espera que haja uma harmonia da legislação infraconstitucional com o sistema adotado. Nesta proposta, o presente trabalho se propõe a verificar, sob a ótica do sistema acusatório, a (in)coerência da utilização  do inquérito policial, procedimento de características inquisitórias, no tribunal do júri.


Abstract: The Constitution of 1988 classifies the criminal justice process as being accusatory. Thus, it is expected that there is harmony with the infra-constitutional legislation adopted system. In this proposal, this work intends to verify, from the perspective of the adversarial system, the (in) consistency of use of the police investigation, a procedure characteristic of inquiry, the grand jury.


Sumário: 1. Introdução; 2. Caracterizando o sistema penal brasileiro como acusatório; 3. A essência do Inquérito policial frente a um sistema acusatório; 4. A (im)possibilidade da leitura do Inquérito Policial  no Tribunal do Júri; 5. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO


O sistema processual penal brasileiro possui uma classificação condizente ao tipo de governo que rege o Estado e as respectivas características políticas do mesmo. Nesse sentido, o Brasil, por ter já passado por diversas fases e modelos políticos, consequentemente, já oscilou quanto à classificação do sistema penal, conforme doutrina vigente. Atualmente, como Estado com imponentes características democráticas, tem o seu processo penal classificado como acusatório pela Carta Magna.


Nesse sentido, por ser a Constituição Federal a lei maior que rege todo o ordenamento pátrio, presume-se encontrar toda e qualquer legislação em consonância com a mesma, do contrário não será assim recepcionada e, consequentemente, não adentrará ao conjunto legislatório que tem o condão de regulamentar o Estado. Com a eleição do sistema acusatório pela Carta Maior, a lei federal deve submeter-se às características enfatizadas pela Constituição, ao passo que, ao regulamentar a matéria penal, harmonize-se com a mesma, sob pena de não haver uma uniformidade processual e gritantes inconstitucionalidades.


Apesar da relevante constatação acima, identificamos no processo penal brasileiro alguns fortes traços do sistema inquisitório, embora predominantemente acusatório. Sendo ambos os sistemas (acusatório e inquisitório) tão antagônicos, que preconizam valores tão díspares, seria possível a convivência dos mesmos em um mesmo procedimento? Esta é a crítica que estabelece da identificação de tal ocorrência no âmbito das diretrizes do direito penal brasileiro quanto da unidade procedimental do mesmo.


Inegavelmente, a despeito de procedimento com características inquisitórias, o inquérito policial é o mais sobressalente, pois tem função apenas investigatória, que trata o acusado como mero objeto de inquirição, ausente as prerrogativas constitucionais de garantias e do contraditório. Apesar de ter viés inquisitivo, o inquérito policial integra os autos e pode influenciar, por vezes, a cognição do juiz quanto da valoração da prova em relação à oitiva das testemunhas em fase judicial, no sentido de comparação ao que foi colhido a critério de depoimento em fase pré-processual.


É cediço que o juiz não pode fundamentar sua sentença baseado na coleta de provas realizada no inquérito, mas não se pode afirmar que não será por elas influenciado quando da sua apreciação, pois não poderá excluir da sua cognição informações então já conhecidas, mesmo que coletadas na ausência das garantias constitucionais, já que se trata de fase ainda não processual. A carga probatória inevitavelmente persuade o juiz e passa a interferir no seu íntimo convencimento. Nesse sentido, busca-se auferir até que ponto o inquérito pode integrar os autos em se tratando de sistema processual acusatório, não acarretando uma incongruência procedimental.


A intenção do legislador constitucional ao regulamentar a matéria penal dentro do capítulo referente às garantias fundamentais, sem dúvida foi de reforçar a tutela ao indivíduo concedida no sentido de reprimir qualquer ato arbitrário que venha a atentar contra seus direitos. Nesse sentido, reafirma-se a idéia do protecionismo e garantismo penal que imanta o processo penal brasileiro. É a partir dessa idéia que o intérprete do direito deve fazer a leitura do direito penal, pois do contrário estaria a Carta Magna perdendo seu sentido de ser, uma vez que se constitui como instrumento de tutela dos direitos fundamentais do indivíduo.


O tribunal do júri é uma das máximas consagrações do sistema acusatório, por ter ínsito a si um viés plenamente democrático. Nele se tem a máxima exaltação das garantias conferidas ao acusado pela Carta Constitucional, entretanto é possibilitada a utilização das informações pré-processuais obtidas quando da apreciação do inquérito. Dessa forma, parece instituir-se um contra-senso ao passo que se busca a efetivação da democracia por ser o acusado julgado por seus pares, mas ao mesmo tempo os jurados realizam a votação podendo ter baseado seu convencimento nas provas colhidas sem a presença das garantias constitucionais na fase pré-processual através do inquérito policial, ademais que a sua decisão não necessita de motivação. Por essas (in)coerências é que dispõe-se a verificar se o inquérito policial cumpre sua função ou a extrapola sob a ótica dos valores acusatórios, principalmente quando se verifica que um instituto criado para assegurar um  procedimento justo como o tribunal do júri, possa estar sendo relativizado pela utilização inadequada de procedimentos inquisitivos na sua tramitação.


2. CARACTERIZANDO O SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO ACUSATÓRIO


A Constituição Federal de 1988, sem dúvida, foi um divisor de águas quanto às tratativas dos direitos e garantias fundamentais no sentido de conferir-lhes maior tutela. Sem dúvida alguma, estas garantias ganharam ampla força e a sua efetivação manifestou-se, em uma das formas, pela ampliação da liberdade do indivíduo e a restrição punitiva estatal.  Os reflexos do sistema repressivo vivenciado recentemente pela sociedade na época ditatorial e a flagrante ausência da democracia, ainda tão recente na memória dos cidadãos brasileiros, instigou o legislador a assegurar direitos e garantias fundamentais, sendo os mesmos consagrados a cláusulas pétreas, a fim de se evitar o renascimento de uma nova repressão já experimentada.


Sem dúvida alguma, tais mudanças afetaram a (re)leitura do processo penal brasileiro, uma vez que a Carta Magna dispõe a respeito do tema já no capítulo destinado as garantias fundamentais do indivíduo, pois  o direito penal dispõe de um dos direitos mais importantes do indivíduo, a saber a liberdade. Devido a este fato, se dá tal importância à matéria, ao ponto de ganhar redação constitucional, como meio de assegurar garantias fundamentais inerentes a proteção da liberdade do indivíduo.


Os sistemas penais definidos pela doutrina são dois: acusatório e inquisitório. A consagração de alguns princípios constitucionais, tais como o contraditório, a ampla defesa, a presunção da inocência, o devido processo legal, a publicidade dos atos processuais, dentre outros motivos, nos faz concluir que o sistema processual penal adotado pelo constituinte brasileiro é o acusatório. Além destas características, a distinção das funções de acusar, julgar e defender verificadas no processo, o caracterizam e classificam como acusatório, embora não haja expressamente essa determinação através de algum dispositivo legal.


Sob essa ótica, o processo penal é verificado como sendo um processo de partes, no qual a acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições[1], tendo a mesma equivalência perante um juiz imparcial. Sob outra caracterização, não há uma iniciativa probatória por parte do juiz, cabendo as partes produzirem todas as provas que julgar necessárias ao convencimento daquele, que se mantém, ressaltando-se ainda mais uma vez, em uma postura imparcial.


É conferida plena publicidade a todo procedimento, que em regra é predominantemente oral. As decisões são expostas às partes para que livremente as impugnem e as submetam ao duplo grau de jurisdição através dos recursos.


Se desta forma o acusatório assim se caracteriza, o inquisitório por sua vez reúne as funções de julgar, acusar e defender em uma única pessoa. O réu passa, então, a ser um mero objeto do processo, perdendo a sua prerrogativa de parte. Desta forma, não há contraditório, cabendo a investigação apenas ao juiz inquiridor, inexistindo debate entre acusação e defesa. A tortura passa a ser o instrumento preterido para ser utilizada no intuito de se obter a rainha das provas, a confissão. 


Nesse sentido, parece um tanto óbvio que o sistema inquisitório é incompatível com o Estado Democrático de Direito, uma vez que este sistema transpira características de um regime autoritário e o acusatório, por sua vez, remete a primazia pela democracia. Contudo, sabemos que a idéia de regimes puros já é ultrapassada, e a existência dos mesmos uma ficção. Portanto, é cediço que o sistema penal brasileiro não é totalmente acusatório, tendo resquícios inquisitórios, principalmente no que diz respeito à fase do inquérito policial, que é regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o acusado como mero objeto de investigação.


Mesmo com fortes traços inquisitórios, ainda assim, o inquérito policial integra os autos processuais. Inclusive, o juiz ao tomar depoimento judicial de uma testemunha, analisa-o comparando ao que a mesma relatou no inquérito, que é produzido baseado na coleta de provas sem a presença do contraditório.[2] Contudo, mesmo assim o processo penal brasileiro é predominantemente acusatório, devido as caracterizações já anteriormente mencionadas e que se coadunam à idéia de um Estado Democrático de Direito.


Dessa maneira, questiona-se no processo, a existência de procedimentos que não estejam albergados pelo manto do sistema acusatório, uma vez que já se concluiu que a Carta Magna de 1988 elegeu este para classificar o processo penal brasileiro. Com isso, surge a crítica quanto a (in)conformidade do processo penal a luz da ótica constitucional, por identificarmos alguns diplomas legais que encontram-se em desacordo com o sistema acusatório. Sem dúvida, para que haja harmonia no processo penal como um todo, é necessário que a lei federal esteja em consonância com a norma constitucional, por estar esta no topo do ordenamento.


Embora o sistema penal brasileiro tido como acusatório traga ranços e resquícios do sistema inquisitório, o operador do direito deve fazer uma interpretação do processo penal a luz da constituição, pois é esta a norma que rege todo ordenamento e toda lei infraconstitucional, em contradição a ela, pela mesma não é recepcionada, sendo sequer tida como adentrada ao sistema legal consolidado.


 Luigi Ferrajoli ensina-nos que:


“Uma Constituição pode ser avançadíssima pelos princípios e direitos que sanciona, entretanto não passar de um pedaço de papel se carece de técnicas coercitivas – de garantias – que permitam o controle e a neutralização do poder  e do direito legítimo”[3].


Os sistemas processuais mencionados são frutos do período político de cada época, sendo que quanto mais as características do governo são autoritárias, mais assemelhadas são com o inquisitivo e, conseqüentemente, diminuem as garantias do acusado. Entretanto, quanto mais o Estado torna-se garantista e democrático, mais se aproxima do acusatório e reafirma-se como Estado Democrático de Direito[4]. Sendo assim, por ser o Brasil um Estado que desta forma é consagrado a nível constitucional, deve dispor de meios para garantir cada vez mais a efetivação do sistema acusatório ao processo penal como forma de  tutela e concretização  às garantias e direitos fundamentais ao indivíduo.


3. A ESSÊNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL FRENTE A UM SISTEMA ACUSATÓRIO


É sabido que o inquérito policial integra a fase pré-processual, pois são os elementos colhidos antes de ser instaurado um processo, antes do nascimento da ação penal. Diante da fase pré-processual, vislumbra-se que, até então, não estamos tratando com réu ou acusado, e sim, com suspeito ou indiciado, devendo este ser tratado como tal.


Ao ser instaurado um inquérito, ainda não há parte, inexistindo relação processual. Ademais, a instauração de um inquérito investigatório, diferentemente do processo em si, não visa declarar alguém culpado ou inocente, mas evidenciar a existência ou não do fumus commissi delicti, isto é, revelar os indícios suficientes de autoria e provas da materialidade delitiva. O objetivo do inquérito é colher elementos suficientes a fim de ser, com isso, instaurada a ação penal. Este “faz referência ao conjunto de conhecimentos adquiridos no sentido jurídico de atividade de cognição e reflete a existência de uma concatenação de atos logicamente organizados, um procedimento”[5].


Ausente o processo, presume-se, equivocadamente, que não há garantias, uma vez que não há parte. Entretanto, embora inexista parte passiva, existe um cidadão que está sendo investigado, este dotado dos direitos primordiais de um Estado Democrático de Direito, mesmo inexistindo o processo. Ora, direito de defesa é existente nesta fase, uma vez que se trata de um direito personalíssimo, não sendo necessário o cidadão “ser parte”, sendo direcionada a ele pelo simples fato de lhe ser uma garantia individual a todos os cidadãos deste país. Conforme relata Paulo Rangel, “o investigado é objeto de investigação, porém isso não significa dizer, como comumente se diz, que não tem direitos previstos na Constituição”[6].


Destaca-se uma evidencia procedimental: sem processo é inviável a existência do contraditório, vez que, como se vê, ausente está o pólo passivo da ação, sendo inócuo dar vista a outra parte, pois esta não existe. Assim, a essência do procedimento pré-processual é meramente informativa, como aduz Paulo Rangel, “o inquérito tem valor apenas informativo. Não visa nenhum juízo de valor sobre a conduta do autor do fato, que, apontado no inquérito como tal, passa a ser tratado como indiciado”. Por fim, assegura que: “sua finalidade é preparar os elementos necessários que possibilitem o titular da ação, a descrição correta na peça exordial”[7].


No que concerne o valor probatório desta fase preparatória da ação penal, deve-se considerar inúmeros vícios e nulidades que tal instrumento pode trazer para o devido processo legal, além do que, como se viu, tal procedimento é pré-processual, nascendo para complementar ou instigar o convencimento da parte ativa da relação processual, pura e tão somente. Importante trazer à baila que a investigação preliminar já contém, por si só uma nulidade absoluta, uma vez que não respeita uma garantia constitucional, o contraditório. Porém, como tal inobservância existe pelo fato de se tratar de um procedimento aquém do processo penal, com isso, não pode ser alegada nulidade processual.


Entretanto, os vícios existentes nesta fase podem ser refletidos no processo, se lhe for admitido como espécie de prova, podendo, com isso, trazer uma condenação ou absolvição errônea. Quando já existente o processo, existe a manifestação do sistema acusatório que, por sua vez, tem a forma, o procedimento, como uma garantia ao acusado. Assim, a prova deve ser colhida perante o estado-juiz, amparada pelo contraditório e a publicidade dos atos, rechaçando o sistema unilateral e, muitas vezes, secreto, vislumbrado em fase policial.


A prova, para Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, “se identifica com a atividade probatória, isto é, com a produção dos meios e atos praticados no processo visando a convencer o juiz sobre a veracidade ou a falsidade de uma alegação sobre um fato[8]”. Assim, as evidências colhidas em fase investigatória não têm valor de prova, pois não são provas. A prova, como visto, é um elemento que visa o convencimento do julgador e, além do mais, é levada ao conhecimento da outra parte, vez que é amparada pelo contraditório. Diferentemente, é as declarações e demais atos colhidos em fase investigatória, que buscam apontar um suspeito, referem-se a uma hipótese, e não a uma afirmação[9].


Diante do exposto, é invalido reconhecer o inquérito policial como prova e, por conseguinte, basear uma sentença exclusivamente em tal elemento informativo. Este é o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vejamos:


“EMENTA:  APELAÇÃO CRIME. DELITO DE CIRCULAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. FRAGILIDADE DA PROVA A AMPARAR A ABSOLVIÇÃO DO RÉU. Não havendo prova escorreita que bem defina a culpabilidade do réu, o corolário lógico é a proclamação da inocência, mormente quando, ainda, persiste dúvida, sendo que esta se resolve, também, em benefício do acusado. Fere o princípio do contraditório a sentença condenatória apoiada exclusivamente no inquérito policial. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO EM DECISÃO UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70008498016, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Hirt Preiss, Julgado em 17/06/2004).” (grifo nosso).


 De mais a mais, com o advento da Lei 11.690/2008, o artigo 155 do Código de Processo Penal passou a dispor:


“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”(grifo nosso).


 Diante disso, nota-se que a Lei supramencionada veio dar força ao entendimento que já era, praticamente, uniforme na jurisprudência e doutrina brasileira, qual seja, o inquérito policial é uma peça informativa, não podendo ser o fundamento de uma decisão judicial, uma vez que vai contra a sua origem, pois não foi instaurado com este fim.


4. A (IM)POSSIBILIDADE DA LEITURA DO INQUÉRITO POLICIAL NO TRIBUNAL DO JÚRI


O Tribunal do Júri foi disciplinado primeiramente em nosso contexto jurídico no ano de 1822, a fim de julgar os crimes de imprensa. Não obstante, no ano de 1824, com a promulgação da Constituição Imperial, ampliou-se a competência deste instituto, o qual passou a abranger causas cíveis e criminais. Ainda, a importante constituição de 1946, restabeleceu a soberania do júri, uma vez que o reintroduziu entre os direitos e garantias.


Na atual Constituição, este instituto está previsto no art. 5º, XXXVIII, e é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo embasado em princípios como: a plenitude do direito a defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos. Assim, quando um indivíduo, dentro deste país, comete um crime doloso contra a vida de outrem, será submetido a julgamento pelos seus pares, afastando-se, assim, a decisão do juiz, propriamente dito. É uma instituição que corrobora a existência de um sistema acusatório, visto que é delegada aos jurados a discricionariedade acerca do delito, pois está expresso, art. 5º, XXXVIII, alínea c, da Constituição Federal, a existência da soberania dos vereditos.


Para Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró:


“Outra característica histórica do processo acusatório anglo-americano é o julgamento pelo júri, que representa o máximo de oralidade e concentração, com partes em igualdade de condições e um juiz passivo e neutro”[10].


Nota-se que o Tribunal do Júri, também chamado de tribunal popular, é uma das evidentes manifestações que apontam o nosso sistema como acusatório. Contudo, sob pena de macularmos este instituto, devemos observar algumas particularidades do mesmo, no que concerne seu procedimento. Primeiramente, cabe ressaltar que a prova não é produzida perante o corpo de jurados que se encontra no Tribunal, sendo somente apresentada ou simplesmente lida para estes. Destaca-se ainda, que grande parte destes jurados desconhece a distinção de um inquérito policial e de um procedimento judicial, de uma prova e de um ato investigatório, tendo em vista que são pessoas idôneas, mas leigas acerca dos procedimentos e das “regras” do processo penal.


Quando do debate oral entre as partes, poderá ser usado tudo que está dentro do processo, como enfatizou Lenio Luiz Streck: “O momento do debate, em plenário, concentra todos os elementos da construção do processo, num dado ponto, como se estivesse congelado, preconcebido”[11]. Ora, até mesmo o brocado latino “quod non est in actis non est in mundo”, isto é, o que não está nos autos não está no mundo manifesta que somente, pura e tão somente o que é parte do processo, deve ser lido e apresentado perante os juízes leigos.


Evidente incongruência ao devido processo legal se flagra no momento em que o inquérito policial é lido aos jurados, pois, como já oportunamente relatado, não se trata de uma fase do processo, mas de uma fase pré-processual, tendo objetivos distintos ao daquele. Como referido anteriormente, no procedimento comum não é admitida a sentença baseada exclusivamente em elementos colhidos da fase investigatória, vez que este é uma fase inquisitória, quando ainda é ausente o contraditório.


É o entendimento de Aury Lopes Junior:


[…] no Tribunal do Júri, qualquer esperança de ser julgado a partir da prova judicializada cai por terra, na medida em que não existe a exclusão física dos autos do inquérito policial e tampouco há vedação de que se utilize em plenário os elementos de fase inquisitorial”[12].


Uma das características das decisões dos jurados é que estes não precisam justificar o porquê do veredicto, vez que há, segundo Aury Lopes Jr., “absoluta falta de motivação do ato decisório[13]”. Assim, diferentemente do juiz togado, que precisa fundamentar sua sentença, os jurados condenam e absolvem pelo seu livre convencimento, vez que sua decisão é soberana. Além do mais, diante de um processo com evidente insuficiência de provas, pode a acusação embasar-se somente no inquérito policial e, com isso, convencer os jurados a condenar o acusado, pois, que para estes juízes leigos chamados jurados, não há distinção entre o que é ou não processo. Contudo, nota-se que tal condenação é uma decisão inquisitorial e desrespeitosa ao procedimento penal e Constituição, vez que estamos (ou deveríamos estar) garantidos pela cláusula pétrea, referida no art. 5º LIV da nossa Lei maior: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.


É indiscutível que o uso do inquérito policial traz uma nulidade processual absoluta, diante da latente inobservância a uma garantia individual, sendo que o devido processo legal não foi respeitado. Nesse sentido, enfatiza Ada Pelegrini Grinover:


“[…] a gravidade do ato viciado é flagrante e, em regra, manifesto o prejuízo que sua permanência acarreta para a efetividade do contraditório ou para a justiça da          decisão; o vício atinge o próprio interesse público de correta aplicação do direito”[14].


 Ademais, não poderia o juiz, como fiscal das garantias constitucionais do acusado, pronunciar o réu, se ausentes as provas, propriamente dita. É o entendimento do Tribunal do Rio Grande do Sul:


EMENTA:  CÓDIGO PENAL. CRIMES CONTRA A VIDA. JÚRI. IMPRONÚNCIA MANTIDA. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ART. 155. PROVA TESTEMUNHAL. Nova redação do art. 155, CPP. Se o Juiz de Direito não pode fundamentar sua decisão exclusivamente com os elementos levantados no inquérito policial, tudo está a indicar também não possa, no momento de decidir ou não pela pronúncia, remeter o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri, com base em prova da mesma qualidade. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO. POR MAIORIA.” (Apelação Crime Nº 70033847302, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 25/03/2010).


Mostra-se, no mínimo, plausível o pedido de destacar do processo o inquérito policial. Não se trata de um apelo defensivo, mas de um respeito às “regras do jogo”, de observância aos princípios que a Constituição, como cláusulas pétreas, garantia a todo e qualquer cidadão, independentemente do crime por este cometido. Nesse sentido, deve o processo amoldar-se a Constituição Federal e não o contrário. É inadmissível em um Estado Democrático de Direito que uma pessoa seja condenada por meras presunções ou hipóteses levantadas em uma fase inquisitória. Assim, o direito caminhará no sentido de proteger o cidadão das barbáries presenciadas em outras épocas, garantindo processos justos e evitando que o indesejado sistema inquisitório volte a atormentar nossos processos.


5. CONCLUSÃO


O sistema processual hodierno traz ínsito a si um viés inegavelmente protetivo em decorrência das barbáries já vivenciadas em épocas de regimes políticos repressivos e autoritários na qual relata nossa pregressa história, enquanto Brasil. Tal medida foi tomada no intuito de estabelecer previamente cautelas profiláticas de repressão contra possíveis atos arbitrários que venham a colocar em risco os direitos fundamentais dos indivíduos, como a exemplo daqueles experimentados na época do regime da ditadura militar.


A consagração de tais garantias em nível de status constitucional não pode ser relativizada, uma vez que a proposta da Carta Magna de 1988 é estabelecer ao Brasil um modelo político democrático, que preserve um padrão protetivo de direitos. Nesse propósito que este Estado, como sendo Democrático de Direito regula a matéria penal com cautela e um teor bastante amplo de asseguramento de direitos, proporcionando ao acusado a tutela necessária para que goze de um processo amparado pelas devidas garantias, prevenindo decisões arbitrárias.


O sistema processual brasileiro, embora predominantemente acusatório, mantém traços inquisitivos. Porém a presença de tais resquícios não justifica a possibilidade de prejudicialidade ao réu, enquanto da imputação de uma condenação arbitrária que resultaria em cerceamento indevido de sua liberdade pela utilização de instrumentos que vão contra os princípios acusatórios. Tal consequência nos remeteria aos atos autoritários oriundos do Estado em épocas de repressão. A admissão desta situação seria um retrocesso quanto aos avanços já conquistados pela democracia no Brasil.


No tribunal do júri, que representa a máxima expressão de um processo democrático, tem-se, ao mesmo tempo, a presença de um procedimento puramente inquisitivo, a saber, a possibilidade da leitura do inquérito policial. Por óbvio, que o contato dos jurados com as provas obtidas na fase pré-processual no tribunal do júri, remete-nos uma idéia de incoerência procedimental, pois são características de sistemas penais paradoxais que se encontram convivendo dentro de um mesmo momento processual.


Ao passo que se busca conferir uma maior proteção ao indivíduo, de outro lado o sistema prejudica o seu direito de defesa, uma vez que permite que os jurados formem seu convencimento a partir de provas obtidas sem as garantias processuais. Sem falar que a decisão proferida é isentada de qualquer fundamentação, fato que só vem a reforçar ainda mais a presença dos ranços do inquisitório no procedimento do júri. Neste sentido, perde-se o objeto da função do inquérito policial e intenta-se atribuir a ele função judicial probatória, sendo uma aberração e um desrespeito ao processo.


A leitura do inquérito como meio de exploração de prova, poderá persuadir os jurados e interferir negativamente em relação ao réu quando do veredicto, pelo fato de que os mesmo são pessoas leigas, da sociedade, que, em regra, desconhecem o direito e as regras processuais, não sabendo, portanto, que o inquérito, a priori, não poderia influenciar na sua decisão. Por este fato, relativiza-se o direito do réu a uma prova judicializada. A única solução que parece mais coerente, segundo Aury Lopes Jr., seria “o sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação dos jurados pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial[15]”.


Com esse entendimento nos filiamos, por entender que o processo penal como um todo deve ser uniforme, pautado pelos princípios constitucionais a ele imputados. Assim sendo, o tribunal do júri atingirá o propósito a ele destinado no momento em que delimitar a exposição dos fatos feitos pelas partes aos jurados relativamente às provas produzidas em juízo. O contato dos juízes leigos com o processo deve ser limitado ao que está produzido judicialmente, sob pena de serem contaminados com oitivas não submetidas ao contraditório, caracterizando uma afronta aos princípios acusatórios, que visam assegurar ao acusado um procedimento democrático e, portanto, livre de qualquer atentado aos seus direitos e garantias fundamentais. Até o momento não temos vivido essa realidade, pois no Brasil milhares e milhares de acusados tem tido sua defesa prejudica pelo contato dos jurados com o inquérito, mas almeja-se que um dia o legislador atente para esta incongruência e, então, dê a devida conformidade ao processo penal no tocante ao procedimento do Tribunal do Júri de acordo com o sistema eleito pela Carta Magna.


 


Referências

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BRASIL,Tribunal de Justiça do Estado do RS. APELAÇÃO CRIME. DELITO DE CIRCULAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. FRAGILIDADE DA PROVA A AMPARAR A ABSOLVIÇÃO DO RÉU.  Apelação Crime Nº 70008498016. Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Hirt Preiss, Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris >. Acesso em 06 de junho de 2010;

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FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría Del Garantismo Penal. Madrid:        Trotta, 1955;

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LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional – vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009;

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STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Símbolos e rituais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1993.

 

Notas:

[1] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.Pg. 102.

[2] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Iuris, 2008, pg.50.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría Del Garantismo Penal. Madrid: Trotta, 1955, p.852.

[4] Ibidem, pg. 51.

[5] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional volume 1, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, pg. 225

[6] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Iuris, 2008, pg. 68.

[7] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Iuris, 2008, pg. 68.

[8] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Pg. 158.

[9] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional volume 1, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, pg. 295.

[10] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pg. 111.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Símbolos e rituais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1993, pg. 60.

[12] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional volume 2. Rio de Janeiro:  Editora Lumen Juris, pg. 336

[13] Ib id.,  pg. 336.

[14] GRINOVER, Ada Pellegrini;  GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, Pg. 19.

[15] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional – vol. 2.Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, pg. 335.


Informações Sobre os Autores

Áquila de Paula Postiguilhone

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA

Leonardo Sagrilo Santiago

Acadêmico de Direito do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA


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