Resumo: A jurisprudência brasileira atinente ao mandado de segurança certa impropriedade técnica na verificação da natureza jurídica do litisconsórcio quando há possíveis prejudicados pela concessão da segurança. O presente estudo tem como objetivo verificar as premissas técnicas para se analisar qual a natureza jurídica nesses casos, tendo por base a contraposição à jurisprudência pátria.
Sumário: 1. Introdução 2. Litisconsórcio 3. Da natureza jurídica do litisconsórcio formado no polo passivo no mandado de segurança, quando há possibilidade de eventuais prejudicados pela concessão da segurança 3.1. Da determinação da natureza jurídica: necessariedade e unitariedade 3.2. Casuística: Mandado de segurança em face de ato ilegal de banca de concurso: pedido de anulação de questões objetivas 4. Conclusão. Referências
1 INTRODUÇÃO
Percebe-se na jurisprudência brasileira atinente ao mandado de segurança certa impropriedade técnica na verificação da natureza jurídica do litisconsórcio quando há possíveis prejudicados pela concessão da segurança. Nota-se que em casos semelhantes, como, por exemplo, a anulação de questões objetivas em concurso público são dadas soluções diversas, utilizando-se argumentos de suporte fático restrito, de ordem muito mais política, do que jurídica.
O presente estudo tem como objetivo verificar as premissas técnicas para se analisar qual a natureza jurídica nesses casos, tendo por base a contraposição à jurisprudência pátria.
2 LITISCONSÓRCIO
Não há na doutrina brasileira, maiores discussões acerca do conceito de litisconsórcio. Segundo Arruda Alvim (2012, p. 599), trata-se da existência de pluralidade de partes no mesmo polo ou em ambos os polos da relação jurídica. Por sua vez, para Fredie Didier Jr. (2009, p. 319), é a reunião de duas ou mais pessoas assumindo simultaneamente, a posição de autor ou réu. Há, contudo, quem defenda que o litisconsórcio não se confunde com a mera cumulação subjetiva (MARINONI, 2001, p. 189). Somente há cumulação subjetiva, em seu entender, se os litisconsortes estiverem vinculados de algum modo, com certa afinidade.
Em que pese estarem em posições semelhantes, isso não significa que estejam submetidos a igual sorte no processo (DINAMARCO, 2004,p. 323), nem mesmo que defenderão necessariamente a mesma tese jurídica. Todos serão partes principais.
A doutrina traz algumas classificações acerca do litisconsórcio.
A primeira delas é quanto à análise do objeto litigioso, subdivide-se entre simples e unitário. Será unitário quando a decisão tiver que ser dada de modo uniforme a todos os litisconsortes. Esta hipótese se verifica quando haja uma relação jurídica indivisível (incindível) (DIDIER JR, 2009, p. 308; MARINONI, 2001,p.192; DINAMARCO, 2004, p. 350).
Quanto à obrigatoriedade da formação, o litisconsórcio pode ser necessário ou facultativo. Será indispensável (necessária) à integração do polo passivo por todos os sujeitos quando assim determinar a lei, ou , a natureza jurídica do direito for incindível (litisconsórcio unitário).
Outrossim, a doutrina debate sobre a possibilidade de haver litisconsórcio necessário no polo ativo. Existem duas posições principais. A primeira corrente admite o litisconsórcio necessário ativo. Porém, reconhecendo a oponibilidade ao direito de ação, determina a inclusão do litisconsorte como réu, uma vez que ninguém pode ser obrigado a demandar, caso não queira, nem ser impedido de demandar caso assim deseje(NERY JR; NERY, 2004, 476-477).
Já a posição oposta, entende com base no mesmo fundamento, que não há a possibilidade de litisconsórcio ativo necessário, e que a inclusão como réu pode gerar situações estranhas, caso este queira aderir à tese do autor. Neste caso, a parte seria ré, porém sem que qualquer pedido lhe tenha sido formulado (DIDIER JR., 2009, p. 321) Logo, de modo a guardar coerência lógica, mais interessante seria a intimação do litisconsorte para querendo adotar alguma posição jurídica no processo: seja aderir aos pedidos do autor, coadunar com a tese defensiva ou simplesmente se quedar silente(neutro).
3 DA NATUREZA JURÍDICA DO LITISCONSÓRCIO FORMADO NO POLO PASSIVO NO MANDADO DE SEGURANÇA, QUANDO HÁ POSSIBILIDADE DE EVENTUAIS PREJUDICADOS PELA CONCESSÃO DA SEGURANÇA
É necessário pontuar que, para ser feita a análise da natureza jurídica do litisconsórcio, é indispensável verificarem-se, no caso concreto, os elementos objetivos da demanda, ou seja, a causa de pedir e o pedido.
Consoante a doutrina clássica, o mandado de segurança tem como objeto corrigir o ato ou a omissão ilegal de autoridade, sempre que ofensivo a um direito individual ou coletivo, líquido e certo, do impetrante (MEIRELLES, 1996, p. 37) Dentro da classificação das tutelas, a tutela no writ é uma ordem (tutela mandamental) emanada do juiz ou tribunal para que determinada autoridade sane o vício (ilegalidade).
Ocorre, contudo, que por vezes tal ordem é dirigida para que se cumpra, mediatamente, uma prestação, um conteúdo declaratório ou mesmo que se considere nulo um determinado ato (conteúdo constitutivo). Nesse sentido, bem esclarece Pontes de Miranda(1998, p.73-74) que:
“A prestação jurisdicional, no mandado de segurança, é mandamento. O juiz ou tribunal manda; o que ele manda já é conteúdo dessa prestação: manda que se tenha como existente, ou como não existente[…].manda que se tenha como constituído, ou por desconstituído, algum ato jurídico, porque contra a Constituição, ou contra a lei […]. O juiz ou tribunal, que manda, não empossa, não reintegra, não admite, não faz cessar a infração; manda que se imposse, que se reintegre, que se readmita”
Ou seja, sua natureza jurídica é mandamental; sua eficácia é que pode ser constitutiva, declaratória ou condenatória[1].
Há que se ressaltar, outrossim, que mesmo após o advento da lei 12.016/2009, intitulada nova lei do mandado de segurança, por disposição expressa desta (art.24), continuam aplicáveis a este procedimento as normas do código de processo civil no que tange ao litisconsórcio.
3.1 Da determinação da natureza jurídica: necessariedade e unitariedade
Não há maior interesse na determinação da natureza jurídica do litisconsórcio naqueles casos em que a necessariedade do litisconsórcio dá-se por força da taxatividade da lei, uma vez que basta o intérprete aplicar o comando normativo. O mesmo não se pode afirmar acerca das situações em que a necessariedade erige-se em razão de a natureza jurídica da relação ser incindível, pois tal análise dependerá do caso concreto.
Com objetivo de estabelecer parâmetros para essas situações, a jurisprudência pátria assevera que, se a impetração do mandado de segurança tem por objetivo questionar um ato que beneficia outra pessoa em detrimento do impetrante, o beneficiário do ato deverá ser citado como réu[2].
Desta forma, pelo risco de influir nas relações jurídicas dos interessados, causando-lhe prejuízos, exige-se a formação do litisconsórcio, sob pena de nulidade, na intelecção do enunciado 631 da súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: ”Extingue-se o processo de mandado de segurança se o impetrante não promove, no prazo assinado, a citação do litisconsórcio passivo necessário”
Porém, não é qualquer prejuízo que é apto a determinar a exigência da presença do interessado no litisconsórcio. Apenas o prejuízo que afete a esfera jurídica é que pode ensejar a necessariedade do litisconsórcio, pois este existirá na maior parte das vezes que a lide tiver de ser decidida de forma uniforme a todos, por se tratar de uma relação jurídica indivisível. Note-se, portanto, que o requisito para a necessariedade não é a existência de prejuízo (consequência), mas sim a natureza jurídica da relação discutida (causa).
Ou seja, o requisito a ser visualizado pelo intérprete jamais deverá ser a consequência (prejuízo), mas, sim, de acordo com os pressupostos teórico-científicos do estudo de litisconsórcio, se o caso debatido em juízo é de uma relação jurídica indivisível .
3.2 Casuística: Mandado de segurança em face de ato ilegal de banca de concurso: pedido de anulação de questões objetivas
De modo a demonstrar a complexidade e a dificuldade da aplicação prática na jurisprudência, analisar-se-á um caso emblemático que diuturnamente surge nos tribunais pátrios.
Tema comum é a impetração de mandado de segurança em face de ato ilegal de banca de concurso público visando à anulação de questões objetivas. Nota-se sobre este tema uma divergência na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
O tribunal já entendeu que todas as vezes que a anulação de questões puder alterar a ordem de classificação ou as notas, faz-se indispensável a formação do litisconsórcio com os interessados:
“[…]2. Sempre que os efeitos da sentença atingem os candidatos já aprovados, alterando-lhes notas e ordem de classificação, devem todos eles integrar a lide na condição de litisconsortes necessários, em aplicação ao comando do art. 47 do CPC, sob pena de nulidade do processo a partir de sua origem.”[3]
Entrementes, o atual entendimento do tribunal é no sentido de que o pedido de anulação de questões objetivas, ainda que importe em alteração da ordem de classificação, não caracteriza caso de litisconsórcio necessário nos termos do artigo 47, do CPC:
“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DE QUESTÕES OBJETIVAS. PRELIMINAR. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. ART. 47 DO CPC. NÃO CARACTERIZAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NÃO CORRELAÇÃO COM A TEMÁTICA EXIGIDA NO EDITAL. PERTINÊNCIA PARCIAL ANULAÇÃO DA QUESTÃO Nº 17 DO CERTAME. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Em regra a anulação de questão de concurso pode afetar a lista de classificação. Na espécie, todavia, embora o item 14.6 do Edital preveja o acréscimo nas notas dos candidatos de questão anulada, a citação dos demais candidatos para integrarem a relação jurídico processual como litisconsortes passivos necessários, nos termos do art. 47 do CPC, não se mostra indispensável.”[4]
Esta conclusão baseia-se no argumento de que, no caso concreto, os candidatos têm uma mera expectativa de direito ao cargo, logo, sendo dispensável o litisconsórcio[5].
Para identificar-se se o caso é ou não de litisconsórcio necessário, deve-se identificar, num primeiro momento, qual a relação jurídica discutida e se esta é ou não indivisível. Na situação em evidência, a relação jurídica questionada é a violação ao direito a um processo seletivo hígido e desprovido de máculas, ou seja, conforme as regras editalícias (decorrência do princípio da publicidade). Este é um direito comum a todos aqueles que participaram do respectivo processo seletivo. A violação a este direito gera o dever de anular as questões objetivas que não observaram o previsto no edital (objeto do pedido).
O caráter mediatamente constitutivo do pedido do mandado de segurança (anulação) no plano da eficácia reveste-se indubitavelmente de indivisibilidade: não há como anular a questão objetiva para um (ou alguns) e não para todos, sob pena de ferir o princípio da isonomia[6]. Ao anular as questões, serão dados novos contornos ao processo público de seleção, afetando juridicamente o interesse de todos aqueles que tenham sua ordem de classificação alterada. Entender de forma diversa vai de encontro ao próprio fundamento político de existência do litisconsórcio que é o repúdio à invasão da esfera jurídica do sujeito sem a efetivação do contraditório (DINAMARCO, 2002, p. 552-553), com consequências diretas a outros direitos fundamentais como o direito de ação e o devido processo legal.
A tese da ausência de prejuízo em razão da mera expectativa de direito ao cargo público é falha por dois fundamentos. Em primeiro lugar, por não se deter que a relação jurídica questionada aí não é relativa ao direito ao futuro cargo público, mas sim, referente ao processo seletivo e a sua higidez, bem como o direito de classificar-se para a fase seguinte que havia sido conferido pela banca do concurso a determinados candidatos. Ou seja, sob a ótica técnico-científica, fora observada a relação jurídica outra que não a correta para o caso, bem como não se averiguou sobre a indivisibilidade ou não desta.
A jurisprudência baseia-se na clássica lição de Hely Lopes Meirelles (1985, p.368):
“Os candidatos, mesmo que inscritos, não adquirem direito à realização do concurso na época e condições inicialmente estabelecidas pela Administração; esses elementos podem ser modificados pelo Poder Público, como pode ser cancelado ou invalidado o concurso, antes, durante ou após a sua realização. E assim é, porque os concorrentes têm apenas uma expectativa de direito que não obriga a Administração a realizar as provas prometidas. Ainda mesmo a aprovação no concurso não gera direito absoluto à nomeação, pois que continua o aprovado com simples expectativa de direito à investidura no cargo disputado.”
Os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, todavia, devem ser melhor compreendidos. De fato, os candidatos mesmo após a inscrição no concurso não têm direito adquirido à realização do certame nos termos estabelecidos, pois é dado à Administração Pública, dentro do juízo de conveniência e oportunidade, revogar o concurso (ato lícito e legítimo) ou até mesmo mudar suas disposições para melhor atender o interesse público em razão de algum fato novo. Por isto, não gera o direito subjetivo de realizar as provas aos candidatos. Porém, o poder da administração não é absoluto. Por exemplo, uma vez tendo sido realizadas as provas, não pode a administração pública modificar o conteúdo programático previsto ou a forma de avaliação, pois o edital torna-se a lei do concurso. Até mesmo em razão da teoria dos motivos determinantes que vinculam a Administração.
No que tange à possibilidade de anulação (atos eivados de vício, portanto), apesar de existir posicionamento firme de a Administração Pública poder anular seus atos inválidos de ofício, porque deles não se originam direitos[7], tal entendimento deve ser revisto sob a perspectiva do neoconstitucionalismo[8], mormente quando estes apenas venham a ser questionados perante o poder judiciário, e não mediante autotutela do Estado. Ao entender o ato como válido, anunciar o gabarito correto e a ordem de classificação, o Estado chancela estes atos com a presunção de legitimidade e veracidade. Gera no particular a uma situação jurídica de legítima expectativa de que tudo se processará da forma prevista, consoante o princípio da boa-fé objetiva, e o direito de estar na próxima fase, caso ela ocorra. Logo, para o judiciário alterar esta situação jurídica que já ingressou no acervo jurídico do candidato, torna-se indispensável o contraditório.
Em segundo, apreciando a questão sob a ótica da teoria dos direitos fundamentais e da argumentação jurídica, equivoca-se por utilizar um suporte fático restrito para excluir determinada situação da regra geral no âmbito de apreciação um direito fundamental[9]. Este tipo de argumento baseia-se na exclusão prima facie de alguma ação ou posição jurídica no tocante à esfera de proteção de algum direito. Note-se que a jurisprudência do STJ, embora afirme que “em regra a anulação de questão de concurso pode afetar a lista de classificação”, ou seja, gerar de modo insofismável uma alteração no acervo jurídico daqueles que foram aprovados, de outro lado, tenta criar uma regra de exceção fora do âmbito de proteção da norma.
A discussão sobre a existência ou não de um direito ao cargo (mera expectativa de direito) em nada se relaciona com direito constitucional de ser ouvido em contraditório(fundamento do litisconsórcio) ante a afetação de sua situação jurídica (possibilidade de ter sua classificação alterada), com aptidão até mesmo de excluir alguns candidatos de seguir à próxima fase.
A posição adotada na definição da natureza jurídica do litisconsórcio pelos tribunais do caso elencado, tem como base muito mais um fundamento prático e político do que técnico-científico: a dificuldade e o tumulto de se trazer ao processo o enorme quantitativo de candidatos na qualidade de partes (realização de inúmeras citações de forma válida pelo cartório, logística para permitir o acesso aos autos e manifestações às partes, entre outros problemas). Porém, isto não seria suficiente para a não aplicação dos conhecimentos desenvolvidos pela ciência do direito sobre o tema litisconsórcio.
4 CONCLUSÃO
Tendo o litisconsórcio um importante escopo político de preservação do Estado Democrático de Direito, mediante o contraditório, é salutar a observância do quanto desenvolvido pela ciência processual para uma definição técnica dos casos em que haverá ou não litisconsórcio necessário, sem influência de outros vetores, sejam políticos, práticos, etc.
Outrossim, consoante demonstrado, o prejuízo, tido pelos tribunais como elemento caracterizador da exigência ou não da presença do interessado, não é suficiente para determinar a natureza jurídica do litisconsórcio, mormente por ter caráter de consequência por a decisão ter a aptidão de influir numa relação jurídica incindível(causa).
Por fim, há ainda que se atentar, na busca do legítimo exercício da jurisdição, para o não uso de argumentos de suporte fático restrito, tal como o da “mera expectativa de direito” ao processo seletivo de concurso público,
Informações Sobre o Autor
Isan Almeida Lima
Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Pós-graduado Lato sensu em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito/Jus Podivm. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Advogado sócio da Lima e Lima Advogados Associados. Professor de Direito Processual Civil e Direito Administrativo em cursos preparatórios da carreira jurídica. Aprovado em concurso para professor Auxiliar de Direito Civil e Direito Processual Civil da Universidade do Estado da Bahia- UNEB