Resumo: Um olhar sobre as normas que regem a comercialização de medicamentos fracionados e sobre a criticável RDC nº 80/2006 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Sumário: 1 – Introdução, 2 – Da vedação à venda de medicamentos fracionados, 3 – Da possibilidade de comercialização de medicamentos fracionados quando houver autorização do Ministério da Saúde para tanto, 4 – Da crítica à RDC n° 80 de 2006 da ANVISA em face do desrespeito ao § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76, 5 – Conclusão
1) Introdução
Não é novidade para o mercado consumidor o comércio de medicamentos fracionados, entendidos estes como àqueles comercializados fora de suas embalagens originais, em quantidades menores que as que são disponibilizadas pelos fornecedores.
Assim, à guiza de ilustração, não é incomum o consumidor adquirir apenas dois ao invés de 24 comprimidos que constassem de uma eventual embalagem original do fabricante.
Entretanto, apesar de até certo ponto ser banalizada, a conduta de comercializar medicamentos fracionados é uma infração sanitária a ser devidamente coibida pelos órgãos de fiscalização.
Conforme veremos neste artigo, não é a comercialização de medicamentos fracionados completamente repelida pelo nosso ordenamento jurídico, havendo a possibilidade de, mediante autorização do Ministério da Saúde, a mesma poder ser efetivada.
Por fim, salientamos que também abordaremos o desprezo da RDC n° 80 de 2006 da ANVISA às cominações legais que versam sobre a comercialização de medicamentos fracionados.
2) Da vedação à venda de medicamentos fracionados
A legislação sanitária é deveras clara quando repele a comercialização de medicamentos fracionados, vez que ela inadmite que a venda se dê de forma diversa que não seja na embalagem original:
“Lei Federal nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973 – Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências.
XI – Drogaria – estabelecimento de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais;
Lei Federal No 6.360, de 23 de setembro de 1976 – Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências.
Art. 11 – As drogas, os medicamentos e quaisquer insumos farmacêuticos correlatos, produtos de higiene, cosméticos e saneantes domissanitários, importados ou não, somente serão entregues ao consumo nas embalagens originais ou em outras previamente autorizadas pelo Ministério da Saúde.
Decreto Federal nº 79.094, de 5 de janeiro de 1977
Art. 164 As drogas, os produtos químicos e os produtos inscritos na Farmacopéia Brasileira, serão vendidos em suas embalagens originais, somente podendo ser fracionados, para revenda, nos estabelecimentos comerciais, quando sob a responsabilidade direta do respectivo responsável técnico.
Resolução SVS/MS nº 328/99, item 5, subitem 5.4.1 do Regulamento Técnico que institui as Boas Práticas de Dispensação para Farmácias e Drogarias:
É vedado à farmácia e drogaria o fracionamento de medicamentos.”
Ainda trazendo a lume o que é preconizado pela legislação aplicável à espécie, há de ser dito que comercializar medicamentos fracionados (e portanto fora de sua embalagem original) é uma infração sanitária:
“Lei Federal Nº 6.437 de 20 de agosto de 1977
Art. 10. São infrações sanitárias:
IV – extrair, produzir, fabricar, transformar, preparar, manipular, purificar, fracionar, embalar ou reembalar, importar, exportar, armazenar, expedir, transportar, comprar, vender, ceder ou usar alimentos, produtos alimentícios, medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos, produtos dietéticos, de higiene, cosméticos, correlatos, embalagens, saneantes, utensílios e aparelhos que interessem à saúde pública ou individual, sem registro, licença, ou autorizações do órgão sanitário competente ou contrariando o disposto na legislação sanitária pertinente:
Pena – advertência, apreensão e inutilização, interdição, cancelamento do registro, e/ou multa.”
Expor à venda medicamentos fracionados normalmente acarreta uma comercialização que priva do consumidor as informações devidas sobre o produto, tais como: data de fabricação, data de validade, lote, assim com o próprio nome do medicamento, posologia e indicação. Ademais, a prática do fracionamento, além de atentar contra o princípio da informação (direito básico do usuário, conforme prevê o art. 6º, I, do Código do Consumidor), também pode ocasionar retenção de umidade e aporte de microorganismos contaminadores, bem como alterações físico-químicas do princípio ativo do medicamento.
E privar o consumidor das informações necessárias para o bom consumo do produto por ele adquirido é considerado crime pelo art. 66 do Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 66 – Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:
Pena – Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
§ 1º – Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta.”
Vender medicamentos fracionados, por ser uma conduta vedada pela legislação sanitária, pode ainda ser considerado crime contra as relações de consumo, pois o fracionamento do medicamento, à luz do Código de Defesa do Consumidor, torna-o IMPRÓPRIO PARA O CONSUMO:
“Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 6° São impróprios ao uso e consumo:
II – os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;”
E, estando impróprio para o consumo (vez que está em desacordo com a legislação sanitária), o medicamento fracionado, NÃO PODE SER VENDIDO, sob pena de, como já dito, configurar-se a prática de crime contra as relações de consumo:
“Art. 7° da Lei Nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 – Constitui crime contra as relações de consumo:
IX – vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;
Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II, III e IX pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a de multa à quinta parte.”
3) Da possibilidade de comercialização de medicamentos fracionados quando houver autorização do Ministério da Saúde para tanto
Como exceção à proibição de comercialização de medicamentos fracionados, a legislação sanitária prevê que …
“Lei Federal No 6.360, de 23 de setembro de 1976 – Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências.
Art. 11 (… omissis ….)
§ 1º – Para atender ao desenvolvimento de planos e programas do Governo Federal, de produção e distribuição de medicamentos à população carente de recursos, poderá o Ministério da Saúde autorizar o emprego de embalagens ou reembalagens especiais, que, sem prejuízo da pureza e eficácia do produto, permitam a redução dos custos.”
Assim, devidamente autorizada pelo Ministério da Saúde, a venda de medicamentos fracionados pelo Ministério da Saúde tem por fito favorecer o acesso da população aos medicamentos, pois fracionados eles certamente não custarão o mesmo preço que teriam se fossem vendidos em suas embalagens originais.
Como exemplo dos chamados “planos e programas do Governo Federal, de produção e distribuição de medicamentos à população carente de recursos” referidos § 1° do artigo 11 da Lei Federal No 6.360/76 trazemos à colação a Resolução nº 338 de 06 de maio de 2004 do Conselho Nacional de Saúde que preconiza no inciso I do seu artigo 1º o seguinte:
“I – a Política Nacional de Assistência Farmacêutica é parte integrante da Política Nacional de Saúde, envolvendo um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde e garantindo os princípios da universalidade, integralidade e eqüidade;”
O fracionamento de medicamentos, quando devidamente autorizado pelo Ministério da Saúde, é, portanto, benéfico, vez que possibilita um acesso integral e universal dos medicamentos por parte da população em razão da diminuição dos seus preços.
4) Da crítica à RDC n° 80 de 2006 da ANVISA em face do desrespeito ao § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76
Antes de adentrarmos na crítica à RDC n° 80 de 2006 da ANVISA, teceremos algumas considerações das legislações que a precederam, vez que, no nosso entendimento, tais também não respeitavam (ou ainda não respeitam) o que é preconizado no § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76.
Como exemplo do afirmado a pouco, esclarecemos que o Decreto nº 5.348/05 que deu nova redação aos arts. 2º e 9º do Decreto nº 74.170/74 (que por sua vez regulamenta a Lei nº 5.991/73), estabelece que:
“Art. 1º Os arts. 2º e 9º do Decreto nº 74.170, de 10 de junho de 1974, passam a vigorar com a seguinte redação:
`Art.2º(… omissis ….)
XVIII – Fracionamento: procedimento efetuado por profissional farmacêutico habilitado, para atender à prescrição preenchida pelo profissional prescritor, que consiste na subdivisão de um medicamento em frações menores, a partir da sua embalagem original, sem o rompimento da embalagem primária, mantendo os seus dados de identificação.`
`Art.9º(… omissis ….)
Parágrafo único. As farmácias poderão fracionar medicamentos, desde que garantidas as características asseguradas na forma original, ficando a cargo do órgão competente do Ministério da Saúde estabelecer, por norma própria, as condições técnicas e operacionais, necessárias à dispensação de medicamentos de forma fracionada.” (grifo nosso)
Resta patente o confronto entre o Decreto nº 74.170/74 (com a redação conferida pelo Decreto nº 5.348/05) e o que está disposto no § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76, pois este último só permite o fracionamento em caráter excepcional, quais sejam: Os casos de produção e distribuição de medicamentos à população carente de recursos para atender ao desenvolvimento de planos e programas do Governo Federal, ao passo que o primeiro não faz tal ressalva.
O “órgão competente do Ministério da Saúde para estabelecer por norma própria as condições técnicas e operacionais necessárias a dispensação de medicamentos de forma fracionada” mencionado no Decreto nº 74.170/74 (com a redação conferida pelo Decreto nº 5.348/05) é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que, através da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 135 de 2005, estabeleceu sobre o tema (fracionamento de medicamentos) o seguinte:
“Art. 11 A atividade de fracionamento de medicamentos de que trata esta resolução é privativa de farmácia licenciada e autorizada perante os órgãos de Vigilância Sanitária competentes, segundo a legislação vigente. (… omissis ….)
Art. 16 Apenas pode ser fracionada a apresentação do medicamento, a partir de sua embalagem original para fracionáveis, para possibilitar um atendimento exato da prescrição, mediante dispensação de frasco-ampola, ampola, seringa preenchida, flaconete, sachê, envelope, blister, strip, que contenha comprimidos, cápsulas, óvulos vaginais, drágeas, adesivos transdérmicos ou supositórios, sem rompimento da embalagem primária.
Parágrafo único. É proibido fracionar as apresentações e formas farmacêuticas não identificadas no caput deste artigo.
Art. 17 Após o fracionamento, o farmacêutico deve acondicionar a embalagem primária fracionada em embalagem secundária para fracionados, adequada à manutenção de suas características específicas, na qual deve conter rótulo referente ao medicamento fracionado.
Parágrafo único. A embalagem primária fracionável remanescente deve permanecer acondicionada em sua embalagem original para fracionáveis.
Art. 18 Cada embalagem secundária para fracionados deve acondicionar apenas um item da prescrição e conter uma bula do respectivo medicamento.” (grifo nosso)
Aqui mais uma vez se desrespeitou o que está disposto no § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76, já que o artigo 11 da RDC n° 135 de 2005 da ANVISA apenas impõe como requisito para a atividade de fracionamento de medicamentos a expedição da licença sanitária por parte do órgão de vigilância sanitária competente, ao passo que, como já dito a Lei Federal 6.360/76 só permite o fracionamento quando este se der após autorização do Ministério da Saúde (que só o conferirá quando o fracionamento de medicamentos for necessário para o atendimento de planos e programas do Governo Federal voltados para o facilitamento da aquisição de medicamentos pela população carente).
Quando o artigo 11 da RDC n° 135 de 2005 da ANVISA faz menção apenas da necessidade de emissão de licença sanitária para que se possam fracionar medicamentos, ele olvida completamente da excepcionalidade que é reservada por lei (no caso a Lei Federal 6.360/76) para a adoção de tal medida (casos de produção e distribuição de medicamentos à população carente de recursos para atender ao desenvolvimento de planos e programas do Governo Federal).
Outra inadequação da RDC n° 135 de 2005 da ANVISA está na usurpação da competência definida na Lei Federal n° 6.360/76 para autorizar o fracionamento de medicamentos, pois enquanto a lei exige que a mesma seja conferida pelo Governo Federal, a RDC apenas exige para a realização do fracionamento o licenciamento por parte dos órgãos de vigilância sanitária (licenciamento este que presume a verificação do atendimento de outras exigências vertidas na legislação sanitária inclusive as demais referidas na própria RDC n° 135 de 2005 da ANVISA).
É incontroverso que nem o Decreto nº 74.170/74 (com a redação conferida pelo Decreto nº 5.348/05) nem a RDC n° 135 de 2005 da ANVISA, por serem emanações do Poder Executivo, poderiam se sobrepor ao exposto na Lei Federal n° 6.360/76 sendo ela manifesta expressão da vontade popular na forma de produto concebido pelo Poder Legislativo. Entretanto o fizeram e, em face disto, devem ser inadmitidos no nosso ordenamento jurídico.
Ao invés de corrigir os vícios aqui apontados, a ANVISA preferiu reiterá-los com a edição da RDC n° 80 de 2006, que revogou a RDC n° 135 de 2005.
Eis o que dispõe a RDC n° 80 de 2006 da ANVISA:
“Art. 1º As farmácias e drogarias poderão fracionar medicamentos a partir de embalagens especialmente desenvolvidas para essa finalidade de modo que possam ser dispensados em quantidades individualizadas para atender às necessidades terapêuticas dos consumidores e usuários desses produtos, desde que garantidas as características asseguradas no produto original registrado e observadas as condições técnicas e operacionais estabelecidas nesta resolução.
Parágrafo único. O fracionamento de que trata esta resolução não se aplica aos medicamentos sujeitos ao controle especial. (… omissis ….)
Art. 10. O procedimento de fracionamento de medicamentos de que trata esta resolução é privativo de farmácias e drogarias devidamente regularizadas junto aos órgãos de vigilância sanitária competentes, segundo a legislação vigente.”
As críticas à RDC n° 80 de 2006 da ANVISA são as mesmas que fizemos à RDC n° 135 de 2005 daquela mesma agência, sendo despiciendo repeti-las aqui.
O fato é que, apesar de um inegável e louvável intento de normatizar o comércio e dispensação de medicamentos fracionados, a ANVISA não poderia contrariar o que está disposto no § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76, sob pena de ela se apropriar da regulação de um tema que foi tratado pelos representantes eleitos pelo povo através do exercício democrático do voto.
Se questionável é a utilidade do § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76 na atual conjuntura, que o mesmo seja proscrito do nosso ordenamento através das alternativas previstas na Magna Carta, que são a de declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário ou sua revogação por um outro dispositivo legal.
5) Conclusão
Em face do exposto, fica evidenciado que as muitas objeções que podem ser feitas à comercialização de medicamentos fracionados são mitigadas quando esta é feita sob a tutela do Ministério da Saúde (à luz do que está disposto no § 1° do artigo 11 da Lei Federal n° 6.360/76 e não do que é previsto na RDC n° 80 de 2006 da ANVISA), vez que, em tais situações ela finda por favorecer o acesso da população aos medicamentos.
Informações Sobre o Autor
Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado da UEN de Direito Administrativo do Escritório Lima e Falcão, Assessor Jurídico da Diretoria de Vigilância em Saúde da Secretaria de Saúde do Recife e Consultor Jurídico do Departamento de Vigilância Sanitária de Olinda