Resumo: Chegamos ao novo milênio com problemas existenciais graves desde a fome, a miséria até o isolamento e a exclusão das pessoas consideradas indesejadas a partir de padrões de consumo ou de padrões étnico-culturais acabam por segregar multidões por todo o mundo. Como enfrentar o dilema da fome que aflige mais de um bilhão de pessoas, segundo a organização das nações unidas para a alimentação e a agricultura (fao)? sobra comida e riqueza, mas, por falta de solidariedade, há falhas brutais na distribuição. Os direitos humanos no século XXI têm como grande desafio o tratamento da pobreza que eleve a condição da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Direitos humanos fundamentais. Dignidade humana. Pobreza.
Abstract: We reached the new millennium with serious existential problems from hunger, misery until the isolation and exclusion of people considered undesirable from consumption patterns or patterns of ethno-cultural end up segregating crowds all over the world. How to face the dilemma of hunger that afflicts more than a billion people, according to the united nations for food and agriculture (fao)? leftover food and wealth, but for lack of solidarity, there are gaps in the distribution brutal. Human rights in the twenty-first century have to challenge the treatment of poverty that elevate the condition of human dignity.
Keywords: Fundamental Human Rights. Human Dignity. Poverty.
Sumário: Introdução. 1. Os direitos humanos e a realidade social: a construção de padrões ético-estéticos virtuais como muros invisíveis na pós-modernidade. 2. Dilemas humanitários e desafios do novo constitucionalismo: da invisibilidade social do pobre à negação cultural do outro. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A afirmação histórica dos direitos humanos no século XXI encontra novos desafios. A necessidade de reconhecimento do outro como cidadão e não como mero consumidor, para além da questão econômica encontramos a questão social da não visibilidade do pobre, indigente, embora todos os dias cruzamos com eles nas ruas, praças, esquinas. Ou mesmo refugiados fugindo de guerras, na luta contra a fome. A negação do outro assume viés ideológico e alcançam crenças, religiões, valores que afirmam ou negam o outro como pertencentes ou não ao mundo de padrões ético-estéticos e culturais formador de preconceitos, estereótipos de todos os tipos entre nações ricas e pobres e mesmo entre nacionais em seus países.
O presente artigo discute a luta pela efetividade da dignidade da pessoa humana como dimensão de direitos fundamentais no século XXI. Trata-se de desafio do novo constitucionalismo na afirmação dos direitos humanos no presente.
1. OS DIREITOS HUMANOS E A REALIDADE SOCIAL: A CONSTRUÇÃO DE PADRÕES ÉTICO-ESTÉTICOS VIRTUAIS COMO MUROS INVISÍVEIS NA PÓS-MODERNIDADE
Na segunda década do século XXI, o combate à pobreza se configura como algo marcante em nossa sociedade globalizada. Nesse sentido, a história nos revela um dos maiores dilemas humanos e que ganha novas dimensões na atualidade, a pobreza se configura na questão central do espírito do próprio capitalismo em vigor, pela produção de riquezas em benefício de poucos, ou seja, pela acumulação exponencial do sistema financeiro mundial, pela negação da pluralidade cultural, pelo aumento das diferenças entre aqueles que estão dentro e fora dos padrões morais e de consumo burgueses – padrões de consumo destrutivos e insustentáveis ambientalmente (destruição das fontes primárias de recursos naturais, que leva ao esgotamento da própria vida). Esse capitalismo se reflete econômica, política e socialmente no mundo dito civilizado, que nega as liberdades e a dignidade humana para todos, sejam ricos e pobres, em especial pelos contrastes sociais gritantes.
Essas considerações iniciais são essenciais para refletirmos sobre o tema da pobreza enquanto questão social em suas múltiplas faces e diz respeito à afirmação histórica da dignidade humana como dimensão dos direitos fundamentais no século XXI a partir da negação da liberdade de viver dignamente aos mais vulneráveis econômica, cultural e socialmente.
Trata-se de “tempos líquidos” nas palavras de Zygmunt Bauman (2007). Nesse sentido, o individualismo enfraquece os vínculos humanos e de solidariedade, traduzindo-se numa globalização perversa:
“O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. […]”. (BAUMAN, 2007, p. 30).
André Berten (2011), em “Modernidade e Desencantamento”, aponta a subjetivação e individualização dos seres humanos na modernidade europeia como elemento importante que nos une no presente, mas nos separa historicamente da humanidade anterior aos tempos modernos. Antes a existência humana e o poder para governá-la eram concebidos como de origem divina, e assim se justificava a religião como fundamento da sociedade. Isso, com o encerramento do mundo europeu medievo, mudou e a relação do homem com Deus se individualiza, interioriza-se:
“O traço mais característico deste desencantamento é a passagem de uma representação transcendente para uma representação imanente daquilo que funda a sociedade, a passagem de uma fundamentação externa para uma fundamentação interna. É o significado profundo da idéia de democracia: uma sociedade que se funda sobre ela mesma. […]”. (BERTEN, 2011, p. 32).
Há três características do nosso tempo que marcam e apontam preocupações com o futuro da humanidade: “[…] o aumento incontrolado da população; o aumento incontrolado da degradação do ambiente; o aumento incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos […]” (BOBBIO, 1992, p. 49). Internamente, o Estado de direito estabelece os direitos do cidadão, o que é uma versão dos direitos humanos na ordem econômica e social do país, no entanto:
“Descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões aumentam a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade. Mas sabemos todos, igualmente, que a proteção internacional é mais difícil do que a proteção num interior de um estado de direito. Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contrastes entre as declarações solenes e sua consecução entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações”. (BOBBIO, 1992, p. 63).
Existe um descompasso muito grande entre a teoria e a prática do direito:
“Uma coisa é um direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa é Ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é Ter um direito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembléia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção”. (BOBBIO, 1992, p. 83).
Por outro lado, os Estados utilizam dos discursos de defesa dos direitos humanos da população de seus países em detrimento dos demais, representados como uma ameaça que vai da economia, do social à política. Assim, concordando com Bobbio (1992), na atualidade é inegável a preocupação com o reconhecimento dos direitos humanos em qualquer instância de poderes que controlam o mundo, sejam eles políticos ou pesquisadores, porém como forma de manter desigualdades entre ricos e pobres, ou entre nacionais e estrangeiros.
Acerca da distância entre os direitos e a lei, identificamos as desigualdades sociais no nosso país, embora esteja previsto na Constituição Federal a dignidade da pessoa humana como princípio em seu art. 1º, inciso III. Tal dignidade inclui ao cidadão salário mínimo que dê condições dignas de vida para todos, moradia, educação, saúde, entre outros direitos – e aí vai a grande distância entre a realidade e os direitos garantidos em lei, no entanto temos hoje milhões de brasileiros que não tem acesso ao básico para sobreviver, enquanto precárias políticas de Estado.
Nosso orgulho nacional, no entanto, é ostentar o desenvolvimento econômico, como a sexta economia do mundo. Na realidade, o ‘crescimento econômico’ não fez diminuir o contingente populacional em situação de pobreza. Então, para transformar o país, implantamos instrumentos para promover avanços sociais na distribuição de renda, em especial pela política de crédito à população de baixa renda (crédito consignado), políticas de inclusão por meio do Prouni (Universidade para Todos) e diminuição da pobreza (bolsa família). Mesmo assim, passados anos dessas promoções, ainda representamos um dos países com maior concentração de renda por parte de uma minoria cada vez mais rica, em detrimento a um considerável percentual de miseráveis; ao mesmo tempo em que os latifúndios e os desmatamentos prosperam, falta uma reforma agrária que mantenha o homem fixado às suas raízes rurais, e um combate efetivo à pobreza extrema, enquanto mal enraizado em nossa sociedade que insiste em negá-la:
“As brutais diferenças sociais não são fruto só da concentração de renda. Um outro fator importante é a má distribuição da terra e a falta de uma reforma agrária.
[…] Nesse tema ocorre uma grande contradição no discurso dos defensores da propriedade privada como um Direito Natural. Natural significa um direito do ser humano pelo simples fato de ser um ser humano. É prévio ao Estado e ao Direito. É algo assim como o respirar (em relação ao comer já se não pode mais falar), um direito essencial à própria vida. Ora, se realmente a propriedade é um Direito Natural então, dentro de sua lógica, seria um Direito de todos, pois já se acabou a época em que se afirmava, no discurso católico, não terem os negros alma e, portanto, não possuírem direitos. Não mais se pode aceitar serem algumas pessoas inferiores (como as mais variadas formas de escravos), sem personalidade jurídica, negando-se-lhes a qualidade de sujeitos do Direito Positivo e, também, de sujeitos do intitulado Direito Natural. Os dados apresentados, entretanto, demonstram o contrário, ou seja, ser este ‘direito natural’ só para uns poucos, e isto significaria serem uns mais naturais em relação aos outros”. (ANDRADE, 1996, p. 47).
Falar em direitos humanos, esquecendo-se de garantir uma política agrária efetiva, que dê ao homem do campo a terra para plantar e condições mínimas para o seu desenvolvimento social, como saúde, educação, moradia, renda mínima, sem que necessite se deslocar aos centros urbanos em busca de emprego, entre outros direitos, se constitui num falso direito. Assim, portanto, falarmos em direitos humanos sem justiça social, sem participação efetiva da maioria excluída no processo de sua construção, é um engodo. Direito é justiça social necessária ao desenvolvimento coletivo:
“Vê-se que, no dia a dia, a igualdade dos cidadãos, declarada em lei, não é observada sequer pela administração pública, na hora de oferecer os serviços pagos com o dinheiro dos contribuintes. Estes, como será visto, normalmente, não são os mais ricos, pois, mesmo sendo inaceitável, as pessoas mais aquinhoadas, no Brasil, acabam pagando menos impostos. Entretanto, recebem mais dinheiro do governo, não só através dos serviços públicos, mas, também, por intermédio de financiamentos subsidiados para suas empresas, para seus latifúndios e, até mesmo, para seus gastos supérfluos. Soma-se a isso uma outra poderosa forma de transferir dinheiro público para as contas bancárias dos achegados ao poder: a corrupção”. (ANDRADE, 1996, p. 58).
2. DILEMAS HUMANITÁRIOS E DESAFIOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO: DA INVISIBILIDADE SOCIAL DO POBRE À NEGAÇÃO CULTURAL DO OUTRO
Excluir, enquanto técnica, os sujeitos considerados “estranhos”, que não se encaixam em padrões morais preestabelecidos, é um dos grandes dilemas da humanidade na atualidade. Tal estranhamento caracteriza-se como instrumento para banalizar a vida, em especial a partir do elemento cultural dominante. Acerca do tema, Ginzburg (2003) salienta as implicações cognitivas do estranhamento para além de limites entre ficção e história:
“Parece-me que o estranhamento é o antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade (inclusive nós mesmos). As implicações antipositivistas dessa observação são óbvias. Mas ao salientar as implicações cognitivas do estranhamento, eu gostaria também de me opor, com a máxima clareza possível, às teorias da moda que tendem a esfumar, até torná-los indistintos, os limites entre a história e ficção […]”. (GINZBURG, 2003, p. 41).
Trata-se de um discurso racionalmente construído e que tem no direito o grande instrumento de realização de vontades.
A separação do indivíduo do corpo social, em especial pelo modelo de utilitarista, imposto socialmente, se revela, na atualidade, um dos dilemas dos direitos humanos, em que na busca pelo “ter” se nega o “ser” e se realiza injustiças. O exemplo do trabalho análogo à escravidão (tão criticado e tão presente em nossa sociedade nos shopping centers das grandes avenidas das cidades ou nas plantações de cana-de-açúcar de nosso Estado, para dar dois exemplos significativos) revela que o imaculadamente jurídico caráter da lei pouco alcança os sujeitos deixados à margem da sociedade ou, quando alcança, é no sentido muito mais de retirá-los do corpo social, em especial pelas superlotações das prisões:
“[…] Corpo, Mente e Alma. Eu aludi anteriormente ao fato de que os territórios da mente e do corpo não são fixos – menos ainda fixos pela biologia – mas possuem limites sujeitos à negociação com sistemas particulares de valores, julgamentos e deveres. Este sentido do ego, uma totalidade dividida em capacidades e funções distintas, um corpo espiritualizado e uma mente encarnada, com freqüência mutuamente em desacordo, obviamente tem sido central às teorias éticas, aos códigos de jurisprudência, aos programas pedagógicos e, mais geralmente, às ideias do lugar do homem na natureza. Na verdade, pode-se dizer que as relações mente/corpo, e ainda mais as relações corpo/alma, não apenas constituem um problema interior à ética e à teologia, mas geram o verdadeiro ímpeto, com o mistério por trás delas, para suas profundas especulações. Os elos e as divisões entre mente e o corpo, a história das doenças e dos remédios, como testemunham as condições ‘psicossomáticas’ como a histeria e a hipocondria. Devemos nos lembrar de que as filosofias e as visões do mundo do homem e de sua natureza são em geral atributos de uma metafísica freqüentemente não mencionada do corpo humano. […]”. (PORTER, 1992, p. 322-323).
Do ponto de vista moral, as reações sociais ao isolamento dos indivíduos que estão fora dos padrões econômicos e de consumo social ou culturalmente aceitos acabam por gerar, muitas vezes, um suicídio moral e social. Esse mesmo suicídio provoca, porém, no grupo social que contribuiu para a sua realização uma dupla repulsa, por considerar que a vítima não contribuiu para a autorrealização, sendo, portanto, o fracasso culpa do próprio indivíduo. Acerca do suicídio, Durkheim (2008) observa: "O suicídio é, pois, reprovado porque revoga aquele culto pela pessoa humana sobre o qual repousa toda a nossa moral […]" (DURKHEIM, 2008, p. 123).
O Código Penal, quanto ao suicídio, no artigo 122 prevê apenamento a terceiros apenas nas hipóteses de terem auxiliado a vítima mediante indução ou instigamento ao cometimento trágico. Não há, porém, previsão criminal para outras formas de induzimento ao suicídio moral ou social, seja na legislação nacional, seja em tratados internacionais.
Caso essa legislação existisse, teria que tratar prioritariamente do caso da omissão dos Estados no trato com a fome como um dos crimes mais cruéis da humanidade praticados atualmente, além de outros, em especial contra os indivíduos indesejados aos padrões sociais (o indivíduo já nasce condenado a morrer na miséria pela sua condição social), culturais (intolerância religiosa, preconceito a partir da origem ou etnia, entre outros), de regiões, nações, países, ou mesmo em conflitos e guerras civis observados à distancia pelas potências mundiais, de que é exemplo dramático o caso do Sudão do Sul[1], no continente africano, onde milhares de refugiados estão jogados à própria sorte.
Certamente dispor dos elementos mínimos para uma vida digna é um direito elementar do cidadão; e o Estado deixá-lo na marginalidade, isso pode ser considerado, certamente, uma espécie de induzimento ao suicídio social, em especial quando lhe nega o mínimo para sobreviver. Em favor dessa afirmação, haja vista para o fato de que, ao negar ao cidadão um prato de comida, um lar, um trabalho e, portanto, a própria condição do ser humano à existência social, nega-se a própria vida. Não pode o Estado deixar que o indivíduo tenha que buscar o sustento nas ruas, pois isso diz respeito à chamada "lei da selva" e não a condições dignas de vida aceitáveis. Na medida em que o sujeito fica à margem da sociedade e excluído moral, cultural e socialmente, ele está sujeito a condições de vida não dignas, não aceitáveis e nisso se pode haver a falha do Estado quanto aos direitos humanos.
A legalidade como normalização enquanto garantia dos direitos humanos de um país significa, muitas vezes, excluir os sujeitos de outros países e/ou que não se encaixam nos padrões econômicos, sociais, culturais, ideológicos ou políticos de determinadas nações e que estão dentro ou fora das fronteiras desses países. Marx Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, explica que: “[…] o capitalismo atual, que veio para dominar a vida econômica, educa e seleciona os sujeitos de quem precisa, mediante o processo de sobrevivência econômica do mais apto” (WEBER, 2003, p. 50).
Do ponto de vista prático, indaga-se como lidar com as diferentes formas de pobreza extrema. No Brasil fala-se em mais de 40 milhões de beneficiados com programas de transferência de renda, evitando assim que essas pessoas vivam em extrema pobreza. Embora se reconheçam os avanços, são políticas de governo e não de Estado, e que, portanto, ficam ao sabor de assistencialismo para que tenham sua continuidade. Assim, basta mudar o governo para que possam ser suprimidas.
“Com base em estudos sobre pobreza, previdência e assistência social, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, destaca os avanços das políticas sociais no Brasil. Segundo ele, sem os programas de transferência de renda (aposentadorias e pensões e os programas Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), 40,5 milhões de brasileiros viveriam com menos de um quarto de salário mínimo”. (Disponível em: <http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/agos to/programas-de-transferencia-de-renda-evitam-que-40-milhoes-de-brasileiros –vivam-na-extrema-pobreza>. Acesso em: 30 set. 2012).
Esses milhões de pessoas são tratados como consumidores e não como cidadãos diante da vulnerabilidade social em que se encontram. Isso por não disporem de garantias quanto à manutenção da renda no estrato social alcançado. Há, portanto, uma concepção utilitarista de justiça, quando tratamos as pessoas não como cidadãos na efetivação de direitos sociais, ou seja, quando a relação entre o público e privado se reflete em clientelismos. Em outros termos, passando o pobre a ver em um governo a salvação para seus problemas, isso gera dependência, não autonomia. Não há garantias, portanto, ao direito ao mínimo existencial:
“[…] o utilitarismo é uma doutrina teleológica porquanto define a justiça por meio da maximização do bem para a maioria. Quanto a esse bem, aplicado a instituição, nada mais é que a extrapolação de um princípio de escolha construída no nível do indivíduo, segundo o qual os prazeres simples, as satisfações imediatas, deveriam ser sacrificadas em nome de prazeres ou satisfações maiores, ainda que distantes […]”. (RICOEUR, 2012, p. 66).
Entre os oito objetivos do milênio a serem alcançados conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) até 2015 encontramos a diminuição da pobreza: 1) redução da pobreza; 2) atingir o ensino básico universal; 3) igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade na infância; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. (Disponível em: <http://www.pnud.org.br/ODM1. aspx>. Acesso em: 30 set. 2012).
Mesmo levando-se em conta que o Brasil avançou em seu Índice de Desenvolvimento Humano, o problema persiste e é preciso agir para combater o grande desafio do século XXI, que é erradicar a pobreza em todas as suas formas, para que possamos falar em dignidade humana:
“O que é Desenvolvimento Humano
[…] O conceito de Desenvolvimento Humano também parte do pressuposto de que, para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população, é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana”. (Disponível em: <http://www.pnud.org.br/IDH/Desenvolvi mentoHumano.aspx?indiceAccordion=0&li=li_DH>. Acesso em: 30 set. 2012.
“Brasil avança no desenvolvimento humano e sobe uma posição no IDH
[…] O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil avançou de 0,715 em 2010 para 0,718 em 2011, e fez o país subir uma posição no ranking global do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) deste ano. Com isso, o Brasil saiu da 85ª para a 84ª posição, permanecendo no grupo dos países de baixo desenvolvimento humano. O documento foi lançado esta quarta-feira pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em Copenhague, na Dinamarca”. (Disponível em: <http://www. pnud.org.br/Noticia.aspx?id=2583>. Acesso em: 29 set. 2012).
Para além da liberdade de consumir, teríamos plena liberdade de viver com dignidade mediante um mínimo existencial com acesso a emprego, renda, moradia, educação de qualidade? A resposta é que vivenciamos muito discurso político, mas poucas reais mudanças sociais no Brasil, campo vasto de desigualdades em todos os sentidos, inclusive no campo de preconceitos contra os pobres.
Em especial o tema da pobreza em nível global se revela no dilema existencial de populações no mundo inteiro lutando pela sobrevivência e fugindo de guerras, de conflitos civis e políticos, além do dilema existencial de ter acesso a um local seguro e às condições mínimas de existência, populações do continente africano e do Oriente Médio.
“ONU prevê 700 mil refugiados sírios no fim do ano
O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) informou nesta quinta-feira que o número de refugiados sírios pode superar 700.000 ao fim do ano, contra 300.000 atualmente.
Diante da situação, as agências humanitárias da ONU revisaram em alta as necessidades, que chegam a US$ 487,9 milhões, para poder ajudar os refugiados. Estes recursos permitirão a assistência até o fim do ano, afirmou em uma entrevista coletiva o coordenador para os refugiados sírios do ACNUR, Panos Moumtzis.
‘As pessoas que se registraram, cerca de 300.000, são pessoas que fugiram recentemente do conflito’, disse Moumtzis.
Em março, o ACNUR registrou 41.500 refugiados sírios e esperava que até o fim do ano o número alcançasse 100.000, mas a cifra foi superada em julho.
Atualmente, a ONU trabalha com a projeção de 700.000 refugiados, em consequência da situação no país.
De acordo com Moumtzis, o ACNUR constata que muitos refugiados sírios, que haviam fugido em um primeiro momento aos países vizinhos sem passar pelo registro nas agências humanitárias, decidiram agora solicitar ajuda.
O Alto Comissariado acredita que entre 2.000 e 3.000 refugiados chegam a cada dia a países vizinhos como Turquia, Líbano, Jordânia e Iraque. Mulheres e crianças constituem 75% dos refugiados”. (Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1160019-onu-preve-700-mil-refugia dos-sirios-no-fim-do-ano.shtml>. Acesso em: 30 set. 2012).
No caso dessas populações em condições subumanas em virtude das guerras, o mínimo existencial vai desde o acesso à água potável e a alimentação (em especial em nações periféricas), além de acesso a educação, a saúde e a moradia, tanto no campo como na cidade.
Pelo fato de o atual sistema econômico-social se ter tornado hegemônico e globalizado, a sua face negativa se constitui num dilema humano generalizado. Assim, há problemas que alcançam países periféricos da Europa, devido à crise financeira mundial, problemas como o direito de ir e vir de ciganos, bem como problemas com imigrantes, emigrantes e populações em situações em vulnerabilidade social pelo mundo inteiro, como o caso dos moradores em situações de rua nas grandes cidades, dos dependentes químicos, dos sem-teto e dos sem emprego pelo mundo.
A dignidade humana enquanto dimensão dos direitos humanos fundamentais no século XXI está associada não a essa globalização hegemônica do capitalismo vigente, mas a outra possível de inclusão à diversidade. Mediante o exercício da democracia direta, concebida na luta dos movimentos populares por melhores condições de vida e de trabalho para todos enquanto pertencentes a um mundo plural. Enfim, trata-se, portanto, de uma globalização que respeite a diversidade e a ética do humano a partir do tratamento respeitoso independentemente de condição econômico-social e política, bem como que assegure, por meio de políticas públicas efetivas, o mínimo de recursos de existência a todos.
CONCLUSÃO
O fenômeno da pobreza atravessa gerações e marca rupturas e continuidades nas sociedades humanas ao longo da história. Há uma associação no presente entre pobreza e criminalidade.
Também identificamos novas mutações existenciais a partir da criação de estereótipos que induzem a preconceitos pela negação do outro, em especial pela invisibilidade dos indigentes que ocupam os espaços públicos, pois são consideradas pessoas “indesejadas” aos padrões burgueses de consumo enquanto espaço de pertencimento da cidade apenas aos abastados economicamente. Essa negação da liberdade de ir e vir nos espaços públicos aos mais pobres, marcados por estereótipos e preconceitos existenciais indesejáveis à sociedade de consumo, é elemento marcante do século XXI. Associar o cidadão ao consumidor enquanto política pública é negar aos que estão fora do emprego, ou marginalizado o direito de ser cidadão mediante políticas públicas que o alcance e com isso a manutenção das desigualdades, pela associação entre pobreza e criminalidade aos que não tem o poder aquisitivo para consumir e se manter dignamente, é, portanto, negar-lhe a própria dignidade, enquanto direito à vida digna. Mais que consumidor enquanto direito de solidariedade e fraternidade enquanto direitos de terceira dimensão é preciso associá-lo a um processo cumulativo de dimensões de direitos que lhes assegure as demais dimensões anteriores e as próximas, não apenas uma parte.
A exacerbação do individualismo do presente passa por um elemento moral que caracteriza como promotor de desigualdades. Trata-se da ética religiosa que legitima a prosperidade pelo trabalho como eleição divina, e que esconde, no entanto, que é pelo trabalho que alguns lucram em detrimento de outros que são maioria. Não que o trabalho seja prejudicial ao homem, mas ocorre que quem se apropria do lucro é, em geral, o mais forte, o que é decorrência da propriedade privada dos meios de produção. O resultado desse viés ético-religioso de “prosperidade” aos “escolhidos” se revela em mais exploração do outro.
O controle do estado pelas corporações transnacionais e banqueiros, constitui-se hoje num modo de vida autoritário imposto à maioria, a partir de uma modernidade que não contempla o direito à pluralidade.
A pós-modernidade, enquanto progresso humano para poucos, é atualmente um modelo iluminista em crise. Uma sociedade regida por uma racionalidade decadente do ponto de vista do esgotamento humano e social pela lógica destrutiva do meio ambiente e pelo belicismo industrial e cultural que aposta na ciência não enquanto progresso material, mas de manutenção de desigualdades. Um capitalismo desenfreado e excludente. A própria concepção linear da história não revela as dimensões dos direitos em sua mutabilidade cíclica e flexível, de que os direitos humanos são uma luta histórica entre a dominação pelos ricos e a sobrevivência dos pobres contra os desmandos e exploração cotidiana.
Informações Sobre o Autor
Afonso Soares de Oliveira Sobrinho
Doutor em Direito – FADISP. Mestre em Políticas Sociais – UNICSUL. Advogado