Resumo: O presente trabalho objetiva revisitar o tratamento dogmático conferido à problemática da reserva do possível na experiência jurídica brasileira, sugerindo uma proposta constitucionalmente adequada de sua conceituação. Nesse passo, entende-se que a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy é a que melhor compatibiliza a máxima efetividade dos direitos fundamentais sociais com as limitações orçamentárias e jurídicas ao seu reconhecimento individual, na medida em que compreende aquelas normas como direitos prima facie, com a estrutura de princípios, sujeitos ao sopesamento fronte aos direitos sociais da coletividade e aos princípios da competência decisória do legislador e da separação de poderes. Conclui-se, pois, que, em leitura alexyana, a reserva do possível expressa tanto a exigência de ponderação dos direitos fundamentais de segunda dimensão quanto se identifica com as condições fáticas e jurídicas nas quais aqueles sucumbem diante do feixe de princípios com eles colidentes.
Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Reserva do possível. Robert Alexy. Direitos prima facie. Regra da proporcionalidade.
Abstract: The present work aims to revisit the dogmatic treatment given to the problematic of reserve of possible in Brazilian legal experience, suggesting a constitutionally adequate proposal of its conceptualization. In this step, it is understood that the Theory of Fundamental Rights of Robert Alexy is the one that best matches the maximum effectiveness of fundamental social rights with the budgetary and legal limitations to their individual recognition, insofar as it includes those norms as prima facie, with the structure of principles, subject to the balancing of social rights of the collectivity and the principles of the legislator's decision-making powers and the separation of powers. It is concluded, therefore, that in Alexy’s reading, the reservation of the possible expresses both the need to ponder the social rights and identifies with the factual and juridical conditions in which they succumb to the bundle of principles with which they collide.
Keywords: Fundamental social rights. Reserve of possible. Robert Alexy. Prima facie rights. Proportionality’s rule.
Sumário: Introdução – 2. A reserva do possível em perspectiva histórica e sua problemática recepção pela práxis jurídica brasileira – 3. As divergências em torno da natureza jurídica da reserva do possível – 4. Da impropriedade da identificação entre a reserva do possível e a dimensão do custo dos direitos – 5. A reserva do possível sob a ótica da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy – Conclusão
INTRODUÇÃO
A impossibilidade fático-jurídica de atendimento de prestações positivas pelo Estado tem sido aventada em profusão para obstaculizar o reconhecimento de direitos subjetivos sociais pelo Poder Judiciário. Nota-se, não raras vezes, que a denominada reserva do possível assume nítida expressão de reserva de consciência, posta como um álibi a afastar de modo irracional o embate argumentativo travado em torno do dever estatal de garantir o mínimo necessário para uma existência digna.
Nesse diapasão, malfere-se significativamente o disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, expressão do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, a abarcar, por óbvio, os direitos de segunda dimensão. Os ensinamentos de Canotilho retratam à perfeição essa problemática, a qual é referenciada como justificativa do presente estudo:
“Quais são no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Moglichen) para traduzir a idéia de que os direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica.”[1]
Não obstante o problema da escassez deva ser levado a sério, a bem, inclusive, dos demais direitos fundamentais postos em jogo, sua discussão deve ser balizada por limites argumentativos promanados do texto constitucional, o que exige adequada compreensão sobre a natureza jurídica da reserva do possível, bem como de suas hipóteses de verificação.
Aspecto mais impactante relacionado à temática em apreço diz respeito à oponibilidade da reserva do possível à concretização de direitos sociais pelo Poder Judiciário. Esse será, pois, o problema nuclear enfrentado por esta pesquisa, para cuja abordagem perscrutar-se-á com profundidade as questões abaixo elencadas, visando à análise da constitucionalidade do emprego da reserva do possível como óbice ao atendimento de pretensões individuais fincadas em direitos de segunda dimensão, bem assim dos limites acaso existentes a tal proceder, isto é, se existiria um núcleo essencial dos direitos sociais frente ao qual seria incabível o acatamento da alegação de impossibilidade fático-jurídica enfeixada pelo Poder Público.
O desvelamento das pré-compreensões tangentes à discussão sobre a existência de um direito subjetivo definitivo a prestações e, de outra parte, à temática da reserva do possível, especialmente entendida como garantia às demais pretensões originárias de direitos sociais, mostra-se de imensurável relevância para que a Constituição seja levada a sério, afinal, conforme pontua Bonavides:
“Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez desatendidos, se tornam os grandes desestabilizadores das Constituições. Tal acontece sobretudo nos países de economia frágil, sempre em crise. Volvidos para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se inserem numa esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime. Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazê-la dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as instituições”.[2]
Assim, o objeto central deste trabalho é a investigação sobre os limites constitucionais à oponibilidade da reserva do possível como óbice à concretização de prestações positivas originárias fulcradas em direitos fundamentais sociais. O problema em tela divide-se, fundamentalmente, em três questões, quais sejam: (i) se a reserva do possível afigura-se como um limite constitucionalmente adequado aos direitos subjetivos fundamentais de segunda dimensão; (ii) se existem limites às restrições por ela acaso impostas (“limites dos limites”) e quais são eles; (iii) se há um mínimo existencial indene à afetação operada pela reserva do possível.
A metodologia adotada consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como base, em um primeiro momento, autores da filosofia do direito e da hermenêutica constitucional, visando a sedimentar o marco teórico adotado para o estudo dos direitos fundamentais, e, em momento seguinte, autores dedicados especificamente à análise da concretização dos direitos sociais pelo Poder Judiciário e aos limites impostos pela reserva do possível. Como marco teórico, elegeu-se a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, a qual apresenta o modelo aplicativo dos direitos sociais que melhor alinha à conclusão alcançada por este trabalho acerca da reserva do possível. A abordagem científica encartada privilegiou o pensamento tópico-problemático[3], ao sustentar razões favoráveis e contrárias aos pontos de vista ora expendidos, em um jogo de suscitações orientado à compreensão do instituto pesquisado.
1. A RESERVA DO POSSÍVEL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA PROBLEMÁTICA RECEPÇÃO PELA PRÁXIS JURÍDICA BRASILEIRA
A positivação dos direitos sociais verificada a partir do constitucionalismo social inaugurado no século XIX trouxe consigo a problemática em torno da eficácia dessas normas constitucionais. De uma postura político-jurídica de indiferença, os textos constitucionais assumem, de pouco em pouco, o reconhecimento dessa segunda dimensão de direitos fundamentais, atribuindo-lhes, contudo, o estatuto de norma programática, cuja eficácia plena estaria submetida à interposição do legislador.
Com as constituições do pós-guerra e os reclamos de um efetivo estado de bem-estar social por elas trazidos, principia-se a advogar sua aplicabilidade imediata, a qual se assentaria em direitos públicos subjetivos a prestações promanados originariamente do texto constitucional, passíveis, portanto, de vindicação judicial. As crises econômicas do final do século XX não tardaram, porém, a afrontar essa situação designada por alguns como utópica, despertando a atenção de doutrina e jurisprudência para a problemática da limitação dos recursos para o atendimento de todas essas demandas, com todos os seus consectários jurídicos.
Decerto, a peculiaridade das normas de direitos fundamentais consagradoras de direitos sociais assenta-se precisamente em seu denominado status positivus. A exigência preponderante de uma prestação positiva do Estado, coloca a eficácia e efetivação dos direitos sociais na dependência dos recursos econômicos disponíveis, cogitando-se, por isso, de uma regra da relevância econômica a diferençar os direitos individuais e políticos dos direitos de segunda dimensão.
Nesse passo, conquanto extreme de dúvidas a existência de direitos fundamentais subjetivos de índole social, exsurge a problemática da reserva do possível, tema desta pesquisa, a qual, a despeito das escorreitas ponderações de Galdino[4], apenas tem sido ventilada para objetar a concretização de normas fundamentais de segunda dimensão, embora induvidosa a também existente projeção econômica dos direitos de defesa.
A reserva do possível aparece pela primeira vez explicitada no discurso de aplicação do direito na denominada decisão numerus clausus do Tribunal Federal Constitucional alemão, proferida em 1972. Naquela oportunidade, discutia-se se a limitação do número de vagas nas universidades, com restrições calcadas no princípio do mérito, violava o direito à liberdade de escolha de profissão e o princípio do Estado Social, garantindo aos candidatos preteridos o direito subjetivo constitucional de acesso ao ensino superior, assentado diretamente na Lei Fundamental (direito a prestações originárias). A Corte entendeu, à luz da reserva do possível, que inexistia o direito subjetivo à criação de vagas adicionais, porquanto faticamente inviável o oferecimento de postos a todos os cidadãos alemães. Nesse sentido, apenas uma limitação desproporcional ao ingresso nas universidades, ou a oferta diminuta de vagas, gerariam o direito à prestação positiva do Estado, hipóteses em que caberia à Corte seu reconhecimento judicial, com a conseguinte mobilização de recursos pela Administração Pública.
Com efeito, a definição atribuída à referenciada cláusula pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, atrelada “àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade”, foi inicialmente recepcionada pela doutrina brasileira como mera referência aos custos dos direitos, cuja reles alegação seria bastante para, aprioristicamente, excluir uma prestação positiva subjetiva do âmbito normativo de um direito fundamental social. A comprovação da inexistência de dotação orçamentária específica para atendimento da pretensão individual veiculada em juízo corporificaria, nessa ordem de ideias, óbice intransponível a um provimento de procedência, porquanto imposição inarredável da indigitada reserva do possível.
2. AS DIVERGÊNCIAS EM TORNO DA NATUREZA JURÍDICA DA RESERVA DO POSSÍVEL
À tormentosa incorporação da reserva do possível no discurso jurídico brasileiro, subjaz aguerrido debate doutrinal acerca da posição teórica ocupada pela cláusula na dogmática dos direitos fundamentais sociais. Destarte, as divergências doutrinárias começam pela definição de sua natureza jurídica, ponto que, sob a ótica deste trabalho, tem implicação decisiva na maior ou menor racionalidade das decisões judiciais tangentes à concretização de direitos prestacionais, impactando diretamente no grau de realização do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, conforme será desenvolvido em tópico posterior. Antes disso, porém, cumpre compendiar as principais posições relacionadas ao problema que se coloca.
Autores como Flávio Galdino[5] e Gustavo Amaral[6], por exemplo, na esteira do pensamento de Cass Sunstein e Stephen Holmes[7], propugnam que a dimensão do custo integra o próprio conceito de direito subjetivo a uma prestação social. Assim, a existência do direito mesmo está condicionada à possibilidade fático-financeira de sua realização. Se o substrato fático não comporta a concretização daquele direito, sequer há que se falar em sua verificação. Tratar-se-ia, outrossim, de conclusão decorrente da adoção de uma teoria interna dos direitos fundamentais, defendida por aqueles que, como Friedrich Müller[8], sustentam a existência de limites imanentes, dados pelo âmbito da norma. Desta feita, a reserva do possível caracterizaria um limite interno aos direitos fundamentais sociais, os quais, somente existiriam onde e quando houvesse recursos disponíveis para seu atendimento.
Noutro giro, Ana Carolina Lopes Olsen[9] e Ingo Wolfgang Sarlet[10] sustentam, a partir da teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, que a reserva do possível se apresenta como limite externo aos direitos fundamentais sociais. De acordo com esse posicionamento, prima facie, todas as prestações decorrentes do espectro semântico dos dispositivos definidores de direitos sociais estariam abarcadas por seu âmbito normativo. Em um segundo momento, ter-se-ia de confrontar aquele feixe de prestações com as possibilidades fáticas e financeiras e, a partir desse cotejo, exsurgiriam os direitos definitivos.
À problemática aventada, subjaz a discussão sobre se a reserva do possível caracterizaria um limite imanente aos direitos fundamentais sociais, na esteira da teoria interna de Friedrich Müller[11], ou se configuraria um limite externo a eles, resultante da colisão com outros princípios constitucionais, consoante a tese de Robert Alexy.
Em apertada síntese, os defensores da teoria interna, destacadamente aqueles filiados à teoria dos custos dos direitos, ponderam que seu posicionamento tem a vantagem de levar a sério o problema da escassez, compatibilizando de maneira mais adequada o atendimento das pretensões individuais com a globalidade representada pelas outras demandas por direitos sociais e conferindo maior dignidade ao orçamento público e às competências dos Poderes Executivo e Legislativo, mais aptos a processarem as alocações de recursos em nível macroeconômico.[12]
Os corifeus da teoria externa, lado outro, asseveram que a caracterização da reserva do possível como um limite fático e jurídico dos direitos sociais prima facie garantidos, ou como uma condição da realidade, conforme Olsen, privilegiaria o princípio da máxima efetividade dos direitos sociais, na medida em que sempre sujeitaria a restrição supostamente decorrente da reserva do possível ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, a partir da regra da proporcionalidade.[13]
Discute-se, outrossim, se a reserva do possível seria um princípio, uma regra, uma cláusula ou uma condição fática, percebendo-se, por vezes, um emprego das expressões “cláusula” ou “postulado” sem qualquer justificação. Ademais, conforme salienta Sarlet, o que se designa por reserva do possível desdobra-se em uma dimensão tríplice, abarcando: a efetiva disponibilidade fática dos recursos para satisfação dos direitos fundamentais; a disponibilidade jurídica de tais recursos; e, por último, a proporcionalidade da prestação no que concerne à sua exigibilidade do corpo social.[14]
Sobre a oponibilidade da reserva do possível à concretização de direitos fundamentais sociais divisam-se, em classificação não exauriente, três posicionamentos na doutrina pátria. O primeiro deles, encampado, entre outros, por Andreas Krell, advoga que a reserva do possível seria uma falácia, decorrente de transposição equivocada do direito alemão e que, no que respeita peculiarmente às prestações positivas vinculadas à saúde, a solução seria atender a todos os casos, realocando-se recursos destinados a outras áreas.[15] De outra parte, Sarlet argumenta que a reserva do possível seria objetável apenas àquelas prestações que não se situem no cerne do denominado mínimo existencial, entendido pelo autor como as condições indispensáveis para uma existência digna. Nesses casos, tratar-se-ia de direitos subjetivos definitivos, impassíveis de afastamento pela aludida condição da realidade.[16] Nas demais situações, porém, a prevalência ou não da reserva do possível deverá ser determinada a partir da ponderação dos princípios colidentes, conforme proposto por Alexy.[17] Por último, ressalte-se o posicionamento de Gustavo Amaral[18] e de Flávio Galdino[19], consoante o qual sempre, e em qualquer situação, a problemática dos limites financeiros-orçamentários deverá ser considerada e, constatada a real impossibilidade fático-jurídica, poderá justificar até mesmo a negativa de prestações situadas na esfera do chamado mínimo existencial.
A seguir, passa-se a esboçar o posicionamento adotado neste acerca da problemática em apreço, isto é, sobre a definição emprestada à reserva do possível e seu enquadramento constitucionalmente adequado na dogmática dos direitos fundamentais sociais.
3. DA IMPROPRIEDADE DA IDENTIFICAÇÃO ENTRE A RESERVA DO POSSÍVEL E A DIMENSÃO DOS CUSTOS DOS DIREITOS
Com efeito, a tese aqui defendida sustenta que a reserva do possível, a fim de que assuma seu devido lócus na dogmática dos direitos fundamentais, deve necessariamente ser objeto de uma releitura normativa, a partir da qual a vazia e simbólica pré-compreensão de uma imposição do fático se converta em um espaço categorial constitucionalmente fundamentado. É dizer, entendido o Direito como portador de um discurso que se configura como um caso especial do discurso prático geral, inadmite-se que um elemento da realidade, desamparado de fundamento no jus positum, imponha-se imediatamente como restritivo ou configurador do âmbito normativo de direitos fundamentais de estatura constitucional, sob pena da perda da normatividade do direito e da abertura escancarada ao decisionismo.
Ora, considerado o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral, singularizado por sua vinculação ao direito positivo, conforme leciona Alexy[20], verifica-se que a dimensão dos custos não pode, per si, dar azo à limitação de direitos fundamentais sociais. Faz-se necessário, pois, que encontre supedâneo em normas de idêntica estatura constitucional, premissa conducente a uma redefinição dos contornos da reserva do possível, de modo a enquadrá-la honestamente na moldura da positividade jurídica.
A diferenciação da argumentação jurídica em face da argumentação moral, da qual é espécie, reside na vinculação formal e material daquela com o direito positivo, apenas afastável nos casos em que a observância da positividade jurídica conduza a uma decisão portadora de injustiça extrema. Deste modo, as restrições acaso impostas às normas definidoras de direitos prestacionais constitucionais, para que sejam discursivamente justificáveis em suas pretensões de correção, não hão de encontrar suporte único e imediato em um elemento da realidade, desgarrado de fundamento constitucional.
Semelhante imposição do fático sobre o jurídico instauraria, de pouco em pouco, perigoso fractal na normatividade constitucional, rompendo com a “vontade de constituição”, de que nos fala Hesse, corporificada em um propósito compartilhado pela consciência coletiva que, fulcrado em um consenso sobre o valor de uma ordem normativa inquebrantável, está a exigir concretização e respeito diuturnos de toda a coletividade.
Lado outro, a caracterização da reserva do possível como um limite imanente aos direitos fundamentais sociais é refratária ao princípio democrático, porquanto obstaculiza que as pré-compreensões do intérprete sobre a extensão do âmbito de proteção dessas normas seja submetida ao crivo do discurso racional, favorecendo a sub-reptícia imposição autoritativa de uma ideologia orientada à perpetuação inefetividade dos direitos de segunda dimensão. É dizer, ao não entender a discussão sobre a determinação da regra de direito fundamental aplicável ao caso como uma colisão entre princípios, mas sim como o desenho solipsista daquilo que é definitivamente protegido por uma norma de suporte fático restrito, impede que todas as razões pertinentes à decisão venham à fala e imuniza as intervenções ancoradas em supostas limitações orçamentárias ao controle de sua constitucionalidade.
A breve exposição acima encartada aponta para a imprescindibilidade de um remanejamento teórico que harmonize a cláusula da reserva da possível com a máxima efetividade dos direitos fundamentais, impondo suficientes ônus argumentativos àquele que pretender aventá-la como impetidivo à verificação in concreto de um direito fundamental social. Nesse sentido, a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy oferece uma proposta consistente e adequada à luz do projeto insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que concilia de forma ótima a proteção aos direitos sociais com a consideração dos demais princípios constitucionais posto em jogo, em razão, por exemplo, do suporte fático amplo das normas-princípio e da regra da proporcionalidade, preenchida por sua teoria da argumentação jurídica.[21]
4. A RESERVA DO POSSÍVEL SOB A ÓTICA DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ROBERT ALEXY
Os direitos fundamentais são concebidos, na esteira do pensamento de Robert Alexy, como dotados, em sua maioria, da estrutura de normas-princípios, mandamentos de otimização que ordenam que algo se realize na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas evocadas pelo caso concreto. Distingue-se sua formulação da teoria interna, anteriormente exposta, por compreender limitações e direitos fundamentais como entes diversos. Dito de modo analítico: afasta-se a imanência dos limites para compreendê-los como genuínas restrições que, resultantes das permanentes colisões entre as normas definidoras direitos fundamentais, devem encontrar fundamento constitucional para que prosperem no caso concreto.
Labora-se com a noção de suporte fático amplo, entendendo-se que tudo aquilo que possa se relacionar de algum modo com a esfera temática de um direito fundamental deve ser inicialmente albergado por seu âmbito de proteção e que toda ação refratária a essa posição há de ser reputada como intervenção que, diante das condições fáticas e jurídicas do caso, poderá ser constitucional ou inconstitucional. Os direitos subjetivos sociais passam, sob este prisma, a serem considerados direitos subjetivos prima facie, cuja transmutação em definitivos dependerá da ponderação com os demais princípios e direitos com eles colidentes, à vista das condicionantes do caso.
A partir da aplicação da regra da proporcionalidade, médium discursivo e corolário da cacterização de princípios como mandamentos de otimização, decide-se pela precedência condicionada do direito social subjetivamente pretendido ou do feixe de princípios com ele colidentes, formulando-se uma regra (direito definitivo) que imputa a aplicação da consequência jurídica prevista pelo(s) princípio(s) preeminente(s) in casu.
À luz da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, tem-se, assim, que a problemática da reserva do possível se resolve a partir das leis de colisão e sopesamento.[22] Os pleitos de prestações positivas originárias formulados perante o judiciário expressariam, nessa toada, uma colisão entre o princípio da liberdade em sua vertente material e os princípios da competência decisória do legislativo, da separação dos Poderes e outros princípios materiais atinentes aos direitos sociais da coletividade, cujo atendimento poderia, inicialmente, ser comprometido com a concessão do provimento almejado. A prevalência ou não da reserva do possível nos casos concretos seria resolvida a partir de uma relação de precedência condicionada entre esses princípios, mediada pelas três sub-regras da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
É nesse segundo passo, vale dizer, quando da argumentação travada no bojo da estrutura da ponderação, que a temática do custeio encontrará pertinência, como razão a suportar o grau de importância da preservação dos direitos sociais da coletividade e do princípio da competência decisória do legislador em detrimento do direito social individualmente pugnado.
Deveras, com espeque no princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, albergado pelo art. 5º, §1º, da CRFB, a adoção desta teoria é a opção que melhor se compatibiliza com o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que, por atribuir suporte fático amplo aos direitos fundamentais sociais, impede que pretensões individuais a prestações positivas sejam excluídas aprioristicamente, sob um místico e irrefletido emprego da reserva do possível. A esse respeito, esclarece Virgílio Afonso da Silva:
“Como se perceberá, a forma de argumentação muda por completo se se parte do paradigma do suporte fático amplo. Mas essa mudança na argumentação não é um fim em si mesmo: como se pretende demonstrar, as exigências que o modelo do suporte fático amplo impõe à argumentação implicam um maior grau de proteção aos direitos fundamentais.”[23]
Vê-se, para além disso, que a primazia da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy reside não apenas no grau de proteção que resulta da atribuição de um suporte fático amplo aos direitos fundamentais sociais, fomentador da máxima efetividade dessas normas, senão também em sua superior compatibilidade com o princípio democrático, na medida em que, ao qualificar esses direitos como direitos prima facie e legar a apuração da posição definitivamente tutelada para momento ulterior ao arrazoado da ponderação, obsta que o decisionismo se instaure pela anteposição de uma pré-compreensão que, imune ao debate, convenientemente defina o âmbito normativo de um direito fundamental como arbitrariamente reduzido, em razão de uma pretensa e não-juridicamente refletida imposição imaginária da escassez de recursos.
Conforme salienta Virgílio Afonso da Silva[24], nas teorias internas dos direitos fundamentais, é a própria pré-compreensão do intérprete sobre o que significa um direito fundamental e seus limites imanentes que define o resultado; ao passo que, nas teorias externas, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma medida alegadamente restritiva ou não-realizadora de um direito fundamental social não é definida por qualquer pré-compreensão, mas por argumentos que tem de ser elencados às claras e bem fundamentados.
Hans Georg-Gadamer, ao promover a reabilitação dos preconceitos, expostos em sua obra como condição de possibilidade de toda compreensão, adverte, porém, para a importante distinção entre pré-compreensões legítimas e ilegítimas. Os preconceitos ilegítimos qualificam-se como aqueles que permanecem na penumbra, isto é, que não assomam à consciência crítica do intérprete, corporificando um impeditivo à perfeição da fusão de horizontes e, por isso mesmo, de todo o processo compreensivo. A resultante de sua imposição seria o mal-entendido, que, é forçoso assentir, se estamparia em uma decisão judicial na qual a dimensão do custeio se apresentasse como limite a priori de um direito fundamental. Isso porque, como assevera Gadamer:
“Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente”.[25]
A teoria do direito de Robert Alexy cuida, outrossim, de oferecer veios metodológicos para a reflexão racional dessas pré-compreensões. Frise-se que o método não é tratado pelo autor como fim em si mesmo, mas como redutor possível da discricionariedade judicial, hábil a propiciar um ambiente discursivo moralmente inclusivo em que prevaleça o melhor argumento ante a normatividade jurídica.
Feitas essas considerações, conclui-se, pois, que, em leitura alexyana, a reserva do possível expressa uma relação de precedência condicionada verificada nos casos concretos em que prevalentes os direitos sociais de toda a coletividade, ou os princípios da competência decisória do legislador e da separação de poderes, diante dos direitos subjetivos sociais reclamados, ao mesmo tempo em que se identifica com a estrutura principiológica destas normas, a reclamar submissão ao devido crivo das sub-regras da proporcionalidade para que o direito prima facie se repute definitivo no caso concreto. Rejeita-se, ainda, neste trabalho, a ideia de um mínimo existencial anterior à ponderação. Este qualifica-se, diversamente, como sua resultante, verificada nos casos em que o grau de importância da satisfação de um direito fundamental social é tão elevado que torna assaz reduzida sua derrotabilidade no teste de proporcionalidade.
Redefine-se a reserva do possível em dimensão bifronte, cindindo-se no que denominaremos de reserva do possível como ponto de partida e reserva do possível como ponto de chegada. Na primeira acepção, corresponde à exigência de que um direito subjetivo social prima facie seja ponderado para que dê suporte ao nascedouro de uma regra que imponha como consequência a concretização da prestação positiva pleiteada em juízo. Na segunda acepção, consistirá, precisamente, nas condições fáticas e jurídicas nas quais se verifica, como resultante da aplicação da estrutura racional da ponderação, a prevalência do feixe de princípios colidentes com o direito social subjetivamente pleiteado, a conferir suporte constitucional à omissão estatal.
Com efeito, uma tal reformulação, por vincular a reserva do possível às condicionantes do caso, determinando ônus argumentativos pujantes para a verificação de sua caracterização como ponto de chegada e forçando à abertura dialógica das pré-compreensões do intérprete, garante que a determinação das relações de precedência condicionada respeitantes ao processo concretizador dos direitos fundamentais sociais se faça da maneira mais democrática possível, porquanto obsta que uma ou outra ideologia subreptícia se firme apriorística e inadvertidamente sob o pálio de uma terminologia simbólica, que, por não adquirir consciência de si e do outro, ignora o pluralismo social e a normatividade jurídica, minando a força normativa da Constituição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao fim e ao cabo, impende consignar que a redefinição do espectro semântico da reserva do possível não acarreta a extirpação da temática do custeio, a qual remanesce presente no discurso de aplicação dos direitos fundamentais sociais. Trata-se apenas de deslocá-la para o plano da argumentação jurídica, como razão a suportar, nas fases ponderativas da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, o grau de importância/restrição dos demais princípios colidentes com o direito prestacional pleiteado no caso concreto. Evita-se, desta forma, o déficit de normatividade dos direitos fundamentais sociais, ao sempre sujeitar as restrições decorrentes de outros princípios constitucionais ao controle do Poder Judiciário, a partir da regra da proporcionalidade.
Espera-se, com o presente estudo, ter contribuído para o descerramento de relevante vereda no processo aplicativo das normas definidoras de direitos fundamentais sociais. Realocada a reserva do possível em posição dogmática constitucionalmente adequada, como exigência de ponderação, de um lado, e expressão das condicionantes fáticas e jurídicas da precedência concreta do feixe de princípios colidentes com o direito subjetivamente vindicado, de outro, estabelece-se o inarredável império da argumentação jurídica como caminho a ser necessariamente percorrido pelas decisões judiciais afetas à temática, o qual será travado no bojo da estrutura racional da ponderação, consoante as regras do discurso jurídico e em sólido alicerce constitucional.
A investigação das regras argumentativas e dos topoi peculiares ao discurso aplicativo dos direitos fundamentais sociais consubstancia complemento necessário deste trabalho, a ser desenvolvido em oportunidades posteriores. Saliente-se, desde logo, as importantes contribuições de Ana Paula de Barcellos e de Luciana Gaspar Melquíades Duarte à investigação desta última temática. A primeira autora aduz importante cipoal de topoi argumentativos a racionalizarem sensivelmente a discussão judicial pertinente aos direitos fundamentais subjetivos de jaez social, tais como o controle da quantidade de recursos a ser investida em políticas públicas vinculadas à realização de direitos fundamentais, em termos absolutos ou relativos, e a verificação da eficiência mínima na aplicação de recursos públicos destinados a determinada finalidade.[26] Duarte, a seu turno, sugere que a argumentação em torno de pretensões individuais à concretização de prestações positivas tenha como marco o orçamento público, ponderando, por exemplo, que a destinação de verbas para demandas de segunda necessidade minoraria o grau de importância de satisfação dos princípios da competência decisória do legislador e da separação de poderes quando o direito social reclamado ostentasse viés de primeira necessidade, caso dos tratamentos médicos indispensáveis à sobrevivência do paciente.[27]
Destarte, a passagem da reserva do possível à reserva constitucionalmente possível, proposta por este trabalho, encontra no seu maior mérito também a sua maior dificuldade: a ampliação do ônus argumentativo decorrente da inserção constitucionalmente adequada do instituto em uma teoria dos direitos fundamentais sociais, ao mesmo tempo em que aprimora a controlabilidade das decisões judiciais sobre a matéria, impõe pesado fardo sobre os ombros de seus estudiosos e operadores, doravante incumbidos de perscrutar as regras discursivas fundamentadoras dos graus de restrição/satisfação dos princípios materiais e formais em rota de colisão.
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Advogado inscrito na OAB/MG
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