Resumo: A anulação ou invalidação de atos administrativos eivados de vício de legalidade é um verdadeiro dever da Administração, ainda que haja hipóteses em que se tem admitido sua convalidação. Contudo, não se pode olvidar que a anulação, por operar efeitos retroativos, pode ocasionar prejuízos para os administrados, mormente quando tenham envidado esforços e despendido recursos diante da natural expectativa gerada pela presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos. Nesse contexto, o presente ensaio faz uma breve análise acerca da responsabilização civil do Estado por danos causados a sujeitos de boa-fé em razão da anulação de atos administrativos. Ao final, conclui-se que o dever-poder que a Administração Pública possui de anular seus próprios atos, quando ilegais, não a exonera da obrigação de ressarcir possíveis prejuízos oriundos do exercício do controle de legalidade do ato administrativo.
Palavras-chave: Atos administrativos, legalidade, autotutela, anulação, responsabilidade civil.
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. 1. Dos princípios da legalidade e da autotutela. 2. Da responsabilização estatal pela anulação de atos administrativos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio versa sobre a possibilidade ou não de haver a responsabilização civil do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, por danos causados a sujeitos de boa-fé em razão da anulação de atos administrativos. A anulação ou invalidação de atos administrativos eivados de vício de legalidade é um verdadeiro dever da Administração, ainda que haja hipóteses em que se tem admitido sua convalidação. Contudo, não se pode olvidar que a anulação, por operar efeitos retroativos, pode ocasionar prejuízos para os administrados, mormente quando tenham envidado esforços e despendido recursos diante da natural expectativa gerada pela presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos.
A Constituição de 1988 consagra a responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, atribuindo-lhe a obrigação de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida do indivíduo, decorrentes de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos. O cerne da questão é, pois, analisar se a previsão constitucional da responsabilidade do Estado é compatível com as vicissitudes que permeiam a anulação dos atos administrativos.
DESENVOLVIMENTO
1. Dos princípios da legalidade e da autotutela
No direito administrativo, diferentemente do que ocorre na seara do direito privado, não vigora o princípio da autonomia da vontade. Ao contrário, a atuação da Administração Pública deve sempre se pautar pelas balizas traçadas pelo princípio da legalidade. A própria consagração da ideia de legalidade coincide com o surgimento do direito administrativo, após a Revolução Francesa.
Num primeiro momento, falava-se em legalidade em sentido estrito, que significa a submissão de todos, inclusive do próprio Estado, à lei. Todavia, o preceito infraconstitucional que, atualmente, positiva o princípio da legalidade, qual seja, o parágrafo único, I, do art. 2º, da Lei 9.784/99, dispõe que o Estado deve obedecer à lei e ao direito. Assim, o conceito atual de legalidade compreende a submissão do administrador não apenas à lei, mas ao direito, ou seja, ao ordenamento jurídico como um todo. Trata-se do que se denomina de juridicidade ou legalidade constitucional. É que, mais do que aquilo que está expresso nos textos das leis, o direito abrange quaisquer outros postulados normativos e princípios albergados pelo ordenamento jurídico de uma sociedade, ainda que implícitos.
Com fulcro no princípio da juridicidade é que, em alguns casos, é possível que algo que, em princípio, vá de encontro ao disposto na lei, esteja legitimado pelo ordenamento como um todo. Por conseguinte, uma determinada postura pode ser contrária a um dispositivo legal específico, mas ser albergada pelo direito. Sobre o princípio em questão, ensina Diogo de Figueiredo que
“O princípio da juridicidade, como já o denominava Adolf Merkl, em 1927, engloba, assim, três expressões distintas: o princípio da legalidade, o da legitimidade e o da moralidade, para altear-se como o mais importante dos princípios instrumentais, informando, entre muitas teorias de primacial relevância na dogmática jurídica, a das relações jurídicas, a das nulidades e a do controle da juridicidade O princípio da juridicidade corresponde ao que se enunciava como um ‘princípio da legalidade’, se tomado em sentido amplo, ou seja, não se o restringindo à mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica”.[1]
Já pelo princípio da autotutela, a Administração Pública pode desfazer seus próprios atos sem precisar, de regra, do respaldo do particular e sem precisar recorrer ao Poder Judiciário. É possível, porém, seguindo a linha mais moderna da Administração prospectiva, que haja casos em que a Administração tenha que ouvir o particular, o que não significa que ele tenha que concordar com o desfazimento do ato. Na doutrina de Odete Medauar, em obséquio ao princípio da autotutela administrativa
“[…] a Administração deve zelar pela legalidade de seus atos e condutas e pela adequação dos mesmos ao interesse público. Se a Administração verificar que atos e medidas contêm ilegalidades, poderá anulá-los por si própria; se concluir no sentido da inoportunidade e inconveniência, poderá revogá-los.”[2]
O ordenamento pátrio consagra a autotutela nas Súmulas 346[3] e 473[4] do STF, cujo teor é aperfeiçoado pelo art. 53 da Lei 9.784/99, que dispõe que “A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”.
De acordo com a Súmula 473 do STF, dos atos ilegais não se originam direitos. Contudo, a tendência atual é reconhecer que, por vezes, mesmo o ato ilegal produz direitos que se incorporam ao patrimônio da particular. Não desconhecendo essa realidade, a Lei 9.784 houve por bem não incorporar a ideia contida na referida súmula, de modo que, quando traz a expressão “respeitados os direitos adquiridos”, reconhece indiretamente que dos atos ilegais podem se originar direitos.
2. Da responsabilização estatal pela anulação de atos administrativos
A Administração Pública deve ter toda a sua atuação pautada pela observância do princípio da legalidade (ou juridicidade, como explanado alhures). Assim, quando o administrador se depara com um vício de legalidade maculando determinado ato administrativo, mister é a sua retirada, mediante anulação. O ato administrativo ilegal, então, deve ser extirpado do mundo jurídico, com efeitos ex tunc. Não se pode ignorar, porém, que, durante o tempo que antecedeu a decretação do vício, o ato ilegal pode ter regido relações jurídicas e produzido efeitos.
Nesse sentido, segundo Hely Lopes Meirelles, é inconteste o dever de a Administração anular seus atos ilegais, pois
“A Administração Pública, como instituição destinada a realizar o direito e a propiciar o bem-comum, não pode agir fora das normas jurídicas e da moral administrativa, nem relegar os fins sociais a que sua ação se dirige. Se, por erro, culpa, dolo ou interesses escusos de seus agentes, a atividade do Poder Público se desgarra da lei, se divorcia da moral, ou se desvia do bem-comum, é dever da Administração invalidar, espontaneamente ou mediante provocação, o próprio ato, contrário à sua finalidade, por inoportuno, inconveniente, imoral ou ilegal. Se não o fizer a tempo, poderá o interessado recorrer às vias judiciárias.”[5]
Como visto, a invalidação é o desfazimento do ato administrativo que padece de vício de legalidade. Tem competência para invalidar a própria Administração, de ofício ou por provocação, e o Poder Judiciário, sempre mediante provocação, em razão do princípio da inércia da jurisdição. Vale ressaltar, todavia, que o procedimento de anulação deve seguir os trâmites legais, com plena observância aos princípios da motivação, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, sob pena de ofensa ao art. 37 da Constituição Federal. Porém, mesmo que tal procedimento seja realizado na mais perfeita regularidade, é possível que o mero ato de anulação gere prejuízos ao particular, em razão de o administrado já ter desenvolvido, antes da anulação, atividade dispendiosa.
Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, na invalidação de atos administrativos, há que se distinguir duas situações: casos em que o administrado, quando da anulação, ainda não havia incorrido em gastos demandados pelo ato, e casos em que os gastos para se engajar no vínculo com a Administração precedem a anulação. Na primeira hipótese, não há que se falar em qualquer dano indenizável. Já na segunda encontra-se presente o dever de indenizar, desde que o administrado esteja de boa-fé e que não tenha concorrido para o vício do ato fulminado. Isso porque
“Seria iníquo que o agente violador do Direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as consequências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de quem, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. (…) os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde, quem atuou arrimado neles, salvo se estava de ma-fé (…) tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Esse mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou (…)”[6]
Ainda de acordo com Bandeira de Mello, o entendimento esposado nada mais seria senão a concreta aplicação do que prevê o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, no qual o princípio da responsabilidade do Estado está consagrado de forma ampla e generosa, de forma a abranger tanto atos ilícitos, quanto lícitos, como o seria a necessária fulminação de atos administrativos inválidos, verdadeiro dever-poder da Administração.[7] No mesmo sentido, tem se posicionado a jurisprudência pátria:
“ADMINISTRATIVO. INSTITUTO BRASILEIRO DO CAFÉ. CONTRATO PARA AQUISIÇÃO NO MERCADO INTERNACIONAL DE CAFÉ. OPERAÇÃO “PATRÍCIA” OU “LONDON TERMINAL”. MANOBRAS ESPECULATIVAS. PRETENSA NULIDADE DO CONTRATO NÃO AFASTA O DEVER DE INDENIZAR O CONTRATADO DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE DE PRESUMIR A MÁ-FÉ. SÚMULA N.º 07/STJ. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE E LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. (…) 3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93). (…) 6. Indenizabilidade decorrente da presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, gerando a confiabilidade em contratar com a entidade estatal. 7. O dever de a Pessoa Jurídica de Direito Público indenizar o contratado pelas despesas advindas do adimplemento da avença, ainda que eivada de vícios, decorre da Responsabilidade Civil do Estado, consagrada constitucionalmente no art. 37, da CF. (…).”[8]
CONCLUSÃO
Ante o exposto, resta claro que o dever-poder que a Administração Pública possui de anular seus próprios atos, quando ilegais, não a exonera da obrigação de ressarcir possíveis prejuízos oriundos do exercício do controle de legalidade do ato administrativo. A responsabilidade civil do Estado, prevista em sede constitucional, importa em reconhecer aos administrados o direito de serem integralmente indenizados por todos os danos que sofrerem em decorrência da anulação de atos administrativos, ressalvados apenas os casos em que o particular tenha dado causa ao vício ou quando estiver comprovadamente de má-fé.
Informações Sobre o Autor
Raíssa Carvalho Fonseca e Albuquerque
Advogada. Graduada pela Faculdade de Direito do Recife. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp