Da senzala à neo-escravidão: abordagem histórico-jurídica

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Resumo: Não há como falar em preconceito racial sem reportar-se ao contexto que leva à sua origem que trouxe a ascensão econômica dos países de Primeiro Mundo e a proliferação da pobreza em países como o Brasil. Isso não é uma abiogênese social, mas a histórica exploração do povo que, do nativo ao moderno, é ainda dominado. Chega-se ao século do desenvolvimento aumentando os abismos entre as classes sociais por questões esclarecidas historicamente. Há uma injusta concentração de renda; não sendo surpresa ser o Brasil um dos países que possui uma das piores distribuições de riqueza do mundo.

Palavras-chave: Racismo. Discriminação racial no Brasil. Direitos e garantias fundamentais. Constituição Federal de 1988.

Sumário. 1 O histórico e o jurídico: do descobrimento ao desenvolvimento. 2 Realidade discriminatória. 3 Negra semântica. 4 Considerações finais. 5 Referências.

Ao povo da China
E ao que a história ensina
Aos jogos, aos dados
Que inventaram a humanidade
(…)
Aos filhos de Ghandi
Morrendo de fome
Aos filhos de Cristo
Cada vez mais ricos
Cazuza

1 O histórico e o jurídico: do descobrimento ao desenvolvimento

Não há como se falar em preconceito racial sem nos reportar ao contexto que leva à intolerância dominante no pensamento social contemporâneo. A visível ascensão econômica dos países do chamado Primeiro Mundo e a proliferação da pobreza e marginalização em países como o Brasil não surgiu de uma abiogênese social, e sim da histórica exploração da matéria-prima e da força de trabalho de um povo que, pelo seu inicial desconhecimento quanto às práticas mercantilistas, deixou brechas à dominação.

Com as grandes viagens marítimas, os países do Velho Mundo objetivavam conquistar terras que lhes proporcionassem explorar riquezas, usufruir de mão-de-obra essencialmente escrava e também ampliar a atuação da força dos seus exércitos. O Brasil, um verdadeiro ‘paraíso’ aos olhos dos europeus, foi alvo fácil para a invasão, instalação e dominação mercantilista. De início, intenso desmatamento escravizando a mão-de-obra indígena. O pau-brasil, madeira abundante na Mata Atlântica nessa época, era comercializada com louvor para a fabricação de móveis das altas classes do hemisfério Norte. Em seguida, no ciclo da cana-de-açúcar, já havia numerosa população de negros africanos destinados ao trabalho escravo. O álcool e a rapadura dos engenhos localizados principalmente no Nordeste, foram temperados com o suor e o sangue negro, sofridos pela privação de sua liberdade. Quando a Europa passava pelo século das luzes, no Brasil já havia cogitações abolicionistas, destacadamente por parte da elite intelectual que deu menção à Inconfidência Mineira, movimento frustrado pela opressão do governo colonial.  Do lado inverso das luzes européias, a luz vista pelos negros no Brasil era apenas a do ouro que eles eram postos a explorar pelos seus ‘donos’. A escravidão perdura pelo Primeiro e Segundo Império, só vindo a ser ameaçada com a difusão de ideais republicanos que muito influíram na abolição da escravatura em 1888, e culminou na Proclamação da República no ano seguinte. A abolição não teve a conotação festiva descrita na imensa maioria dos livros didáticos, pois em 14 de maio de 1888, os negros então ‘livres’ se encontraram perdidos. Tinham liberdade, mas faltava capacitação para passar da condição de escravo para a de trabalhador assalariado. Com isso, já tinham, desde sempre, seu espaço garantido na marginalidade. Passaram de escravos dos senhores a escravos de um sistema que oprime o já oprimido e eleva o sempre opressor. Com a dificuldade gerada na economia com o fim da escravidão, era necessária mão-de-obra com ao menos o mínimo de qualificação para atuar na indústria nascente. Como o ex-escravo não possuía essa preparação exigida, buscou-se apoio na força de trabalho imigrante, que veio a se concentrar nos já pólos econômicos São Paulo e Rio de Janeiro. Isso deu início ao constante inchaço dos centros urbanos, que levava à natural aglomeração de marginalizados em áreas de risco, gerando mais desigualdade de oportunidades.

Dadas essas considerações históricas, chega-se ao século do desenvolvimento aumentando os abismos que separam as classes sociais por questões já esclarecidas depois desta retomada de fatos estratégicos. Em meados do século XX, se observava uma sociedade eminentemente preconceituosa em relação às questões de etnia, gênero e classe social. Nessa época, a indústria já predominava como atividade econômica ascendente no país. Como se vê, ocorreram mudanças apenas de setores econômicos e a exploração da mão-de-obra negra se reafirmava em um novo cenário. Os negros como protagonistas da tão cruel massificação de desigualdades, encontravam-se submetidos aos abusos da classe dominante, à mercê dos pesados serviços braçais, das longas jornadas de trabalho e ao mísero salário. E assim estruturava-se um mercado de trabalho notavelmente excludente, sustentado pelo preconceito e pela opressão. Aí se começa a perceber a reafirmação veemente do capitalismo, havendo um fortalecimento deste regime que em sua essência reascende os reflexos da escravidão, onde há barreiras que dividem a sociedade em dois mundos: pobres e ricos, brancos e negros, opressores e oprimidos. Há uma injusta concentração de renda e não é à toa que hoje o Brasil é um dos países que possui uma das piores distribuições de riqueza do mundo, só ‘perdendo’ para Serra Leoa, na África.

“O mundo deu muitas voltas. Caíram barreiras, referências, mitos e muros. A história não coube em teorias. As teorias negaram suas promessas. O capitalismo continuou produzindo miséria, mas o socialismo avançou sem conseguir eliminá-la. Depois de 100 anos de socialismo e capitalismo, a miséria no mundo aumentou e a economia transformou-se num código de brancos e numa fábrica de exclusão racionalizada. A modernidade produziu um mundo menor do que a humanidade. Sobraram bilhões de pessoas. Não se previu espaço para elas nos vários projetos internacionais e nacionais. No Brasil, essa exclusão tem raízes seculares. De um lado, senhores, proprietários, doutores. Do outro, índios, escravos, trabalhadores, pobres. Isso significa produzir riqueza pela produção de pobreza.” (SOUZA)

Por conta das transformações econômicas do mundo capitalista, o perfil do trabalhador vem sendo modificado e redefinido, seguindo as contratações, agora, critérios de produtividade e competição, ou seja, passou-se a ser exigido dos trabalhadores atributos e habilidades que lhes permitam responder às exigências do mercado econômico. Assim, a educação básica tornou-se o requisito indispensável para a inserção dos trabalhadores nos novos processos produtivos, o que acaba por reduzir as chances de trabalho tanto para os mais jovens, quanto para os mais velhos.

O desemprego assolar o país, é fato. E essa problemática se agrava quando se trata de questões de raça e gênero, pois a situação dos desempregados afro-brasileiros e mulheres é mais preocupante. De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que é um instrumento de análise desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em quase todos os países, as mulheres trabalham mais horas do que os homens, correspondendo às mulheres 53% do total de horas trabalhadas nos países em desenvolvimento e 51% nos industrializados. Essa presunção é majorada quando pesquisa-se dados do desemprego das mulheres afro-brasileiras, pois são números alarmantes de desigualdades raciais e de gênero, constantemente promovidas dentro do Brasil.

A Organização Internacional do Trabalho – OIT, por meio da Convenção 111, que trata da discriminação em questões de trabalho e profissão, traz idéias para a diminuição dessas desigualdades. Contudo, o que traz aflição é a situação da plena aplicabilidade desta Convenção. Encontra-se no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e na ONG Criola, entidades que lutam pela solução desses problemas.

Para tentar minimizar estas desigualdades raciais e de gênero, a Constituição Federal de 1988 autorizou a adoção das chamadas Discriminações Positivas, que são exceções ao princípio da isonomia. É claro o reconhecimento dos Tribunais brasileiros à autorização do princípio da isonomia do Estado, para que esse se utilize do tratamento desigual, isto quanto necessário e de forma justificada. Dessa forma, o problema é saber quando se deve estabelecer estas distinções.

O reconhecimento das diferenças que não podem ser feitas sem quebra da isonomia divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. (MELLO, 2005, p. 21)

Canotilho acredita que haverá observância da igualdade “quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Em outras palavras, o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária, existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear: a) fundamento sério; b) não tiver um sentimento legítimo; c) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável”. (CANOTILHO, 2000, p. 401).

Dessa maneira, no ordenamento jurídico brasileiro, pode haver discriminação desde que com o intuito de alcançar a igualdade entre os seres humanos, entretanto, observando os seguintes elementos:

a) o fator de discriminação em questão, não pode atingir, de forma alguma, um só indivíduo;

b) deve-se observar a distinção entre as pessoas e as situações objeto de discriminação, sendo vedado à lei discriminar com base em elementos exteriores;

c) deve existir um nexo lógico entre o fator de discriminação e a discriminação efetuada pelo regime jurídico;

d) esse nexo deve ser relacionado à função dos interesses constitucionalmente protegidos, visando sempre o bem público.

A realidade é que o Brasil vive um descompasso total em relação a este assunto, porque não admite a existência de discriminações invocando sempre o princípio da isonomia; como também, por outro lado, há a discriminação quando se oferece tratamento diferenciado, como ocorre com a mulher, o pobre, o negro e o deficiente físico.

2 Realidade discriminatória

Com a redemocratização do Brasil, os movimentos populares conquistaram uma ampla defesa dos Direitos Humanos buscando a mudança de relações sociais injustas marcadas pela violência. A Constituição de 1988, em seu art. 5º, XLII, passou a considerar a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível. Apesar da importância desse reconhecimento para a história do negro, esse fato não reduziu a prática de atos preconceituosos.

Analisar detalhadamente as situações discriminatórias mais freqüentes na sociedade brasileira é de tamanha complexidade, porém, de fácil percepção. No Brasil, 48% da população é negra, sendo que Salvador é onde se encontra a maior concentração, daí explica-se a tão visível realidade discriminatória, dado o vasto campo étnico. Uma das formas marcantes de situações adversas quanto ao negro e à negra é a violência sofrida por estes. O ser humano de cor negra é alvo fácil de policiais, no que tange às agressões físicas, e são abordados com mais continuidade do que brancos durante blitz, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha. Na mesma pesquisa, constatou-se que há mais revistados negros do que outros grupos étnicos, dentre eles 48% já foram revistados; 21% já foram ofendidos verbalmente e 14%, agredidos fisicamente. Na questão criminal, verificou-se que nos homicídios dolosos contra menores, 54% das vítimas eram negros.

3 Negra semântica

Tendo em vista a gama de fatores históricos que embasam a condição social do negro no Brasil, hodiernamente a idéia que fundamenta isso tudo não se encontra obsoleta. Pelo contrário, a histórica violência em todos os aspectos contra o afro-descendente afirma-se cada vez mais. Isso por meio de vários aliados recheados da velha ideologia aristocrática de que preto é sinônimo de errado, de sujeira, enfim, de algo negativo. Dentre esses aliados, encontra-se a mídia representada por televisão, rádio, imprensa escrita, internet, entre outros.

Neste setor da socialização de informações, apesar de ter avançado se comparado ao início do século XX, a imprensa direcionada para negros ainda é relapsa quanto à ampliação da representação negra nos meios de comunicação. Não é preciso ir muito longe para exemplificar tal situação, basta observar as propagandas de algum produto relacionado a crianças de 0 a 3 anos e ver que bebê angelical é sinônimo de branco, loiro e olhos azuis. Como também na teledramaturgia, em que artistas negros dificilmente representam protagonistas da trama, ficando com papéis subalternos.

O enfoque social da televisão brasileira é resultado da incorporação do mito da democracia racial no Brasil, da ideologia do branqueamento e do desejo de tornar euro-estadunidenses as suas elites, sendo esses três pontos focos negativos para a construção de uma verdadeira sociedade democrática, consequenciando a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como reza o art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988.

A presença dos negros na TV é fundamental para a construção de uma imagem de si mesmo, pois enquanto as crianças negras continuarem tendo somente mulheres brancas e loiras como referencial de beleza, elas terão dificuldades em aceitar suas qualidades, fazendo valer a ideologia do branqueamento.

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Por isso, é de extrema relevância falar da violência contra os negros. Enquanto houver diferença entre salários de brancos e negros, desatenção e desrespeito às tradições culturais, desafirmação pelos próprios negros de seus traços físicos característicos, desvalorização da mulher negra, a batida policial evidenciando que todo camburão tem um pouco de navio negreiro, a sociedade brasileira está indo de encontro ao desrespeito à diversidade generalizada e aos direitos da pessoa humana, fundamentados no respeito à diversidade em sua forma geral. Ou seja, estar-se-á falando no regresso aos tempos coloniais. (YUKA, 1994)

4 Considerações finais

Os direitos civis são inerentes aos seres humanos e de fundamental importância para a construção de uma sociedade democrática, onde prevaleça o respeito às relações humanas, onde a cor não seja instrumento de segregação racial. É lógico que, como já foi reportado, toda essa celeuma de preconceito que vivemos hoje tem origens escravocratas, aliadas ao massacre de um povo aguerrido que deixou rastros dolorosos na história.

Hoje, o negro ainda é vítima de exaustivas arbitrariedades, sujeitos a condições subumanas. É claro que há negros e negras que conseguiram ascender socialmente, mas se compararmos a quantidade deles que vivem dignamente com aqueles que não conseguiram seu espaço na sociedade, vê-se que esse último predomina em alto número, e isso é visivelmente comprovado. Situações de preconceito são encontradas frequentemente na sociedade, sendo reflexos trazidos das transformações étnicas ao longo da história. A tolerância e o respeito às diferenças são alguns pressupostos para a inclusão do negro, resgatando a memória do seu passado cruel e forjando uma compreensão dos diversos processos de exclusão que a classe negra atravessa.

Para a implementação de uma nova consciência, é imprescindível o respeito à dignidade do outro e aos Direitos Humanos. E também provocar o resgate de prejuízos ocasionados pela escravidão, cuja prática segregativa fez com que muitas cicatrizes coloniais e imperiais ainda apareçam hoje.

 

Referências    
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 25 out. 2007.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000.
CAZUZA. Só se for a dois (faixa). Disco Só se for a dois, PolyGram, 1987. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/cazuza/45009/>
DROPA, Romualdo Flávio. Direitos humanos no Brasil: a questão negra. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 333, 5 jun. 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5227. Acesso em: 17 out. 2007.
GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2006.
MALUF, Edison. Crimes de racismo. Disponível em: <http://www.advogado.adv.br/artigos/2000/edisonmaluf/crimesderacismo.htm>. Acesso em: 17 out. 2007.
MALUSCHKE, Günher; BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F.; HERMANNS, Klaus. Direitos Humanos e violência: desafios da Ciência e da Prática. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2004.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros Editores, 4ª edição, 2005.
SANTOS, Cleito Pereira dos . Mercado de Trabalho e Racismo. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, v. 33, p. fevereiro, 2004. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/033/33csantos.htm. Acesso em: 17 out. 2007.
SOUZA, Hebert de in CABRAL, Karina Melissa. Brasil x apartheid social. As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 677, 13 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6711>. Acesso em: 25 out. 2007.
YUKA, Marcelo. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro in O Rappa. O Rappa: Warner Music, 1994.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Laís Oliveira Abreu

 

Acadêmica do Curso de Direito – FACISA

 

Leonellea Pereira

 

Acadêmica de Direito da UEPB
Membro do Projeto de Extensão Direito para todos

 

Nayara de Lima Monteiro

 

Acadêmica do Curso de Direito – UEPB

 

Cláudio S. de Lucena Neto

 

Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

 


 

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