Mesmo quando um acidente de trânsito não deixa vítimas físicas — isto é, não há lesões corporais ou morte — pode surgir dano moral indenizável se o evento atingir direitos da personalidade do condutor ou do proprietário, tais como honra, tranquilidade psíquica, imagem ou liberdade de locomoção. A jurisprudência brasileira, embora restritiva, reconhece compensação moral em hipóteses específicas: abalo emocional extremo, exposição pública vexatória, constrangimento ilegal, perda de tempo útil, retenção abusiva de veículo, recusa injusta da seguradora ou conduta dolosa do causador. O presente artigo destrincha, em profundidade, o alcance e os limites dessa responsabilidade civil, orientando operadores do Direito sobre provas, teses defensivas, quantificação, prescrição e precedentes.
Conceito de dano moral sem vítima física
Dano moral é a lesão a direito da personalidade, independentemente de reflexo patrimonial. No contexto de colisões sem feridos, o abalo pode resultar de:
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traumas psicológicos (transtorno de ansiedade pós-acidente);
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humilhação pública (discussão filmada e viralizada);
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ameaça à integridade (veículo arremessado deliberadamente);
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perda injustificada de liberdade (prisão em flagrante equivocada);
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perturbação relevante da esfera existencial (viagem frustrada).
Não basta mero dissabor; exige “sofrimento intenso, anormal e comprovado”, conforme a Súmula 385 do STJ para casos análogos.
Fundamento legal
O art. 5.º, V e X, da Constituição assegura indenização por dano moral; o art. 927 do Código Civil impõe reparação a quem causa dano. O art. 186 define ato ilícito como violação de direito ou agressão a legítimo interesse, mesmo sem ofensa corporal. No trânsito, o CTB (arts. 228, 230) tipifica condutas que, se dolosas ou culposas graves, reforçam a obrigação compensatória.
Teoria da responsabilidade aplicada
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Culpa aquiliana (art. 186/927 CC): regra geral — necessidade de provar culpa, nexo e dano.
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Responsabilidade objetiva do transportador (arts. 734 CC e 14 CDC) — passageiros podem pleitear dano moral sem demonstrar culpa.
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Abuso de direito (art. 187 CC): manobra imprudente que gera terror à coletividade.
Tipologia dos danos morais em colisão sem lesões
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Abalo emocional qualificado — pânico, crises de choro, insônia constatada por laudo psicológico.
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Constrangimento público — quando o causador, em redes sociais ou mídia, expõe culpabilização falsa da vítima.
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Perda substancial do tempo livre — horas gastas em oficinas, delegacias e perícias (Tema 1039/STJ).
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Prisão ou retenção ilegal — abordagem policial por suspeita infundada, seguida de condução coercitiva.
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Ofensa à honra — acusação caluniosa de embriaguez ou fuga.
Dano moral reflexo versus direto
Proprietário que não estava presente pode pleitear dano moral reflexo se provar que a perda temporária do veículo impactou planos existenciais (ex.: casamento). Já o motorista envolvido tem dano moral direto pelo estresse do choque e humilhação do litígio de rua.
Prova do abalo anímico
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Boletim de ocorrência descrevendo turbação.
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Laudo psicológico/psiquiátrico com CID-10 F43.1 (transtorno de estresse pós-traumático).
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Testemunhas sobre estado de nervosismo impeditivo.
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Imagens de câmeras que mostrem agressão verbal, exposição vexatória.
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Registros de postagens difamatórias.
Sem tais elementos, juízes negam o pleito por configurá-lo “mero aborrecimento”.
Jurisprudência selecionada
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STJ, AgInt no AREsp 1.889.453/SP (2024) – condutor sofreu crise de pânico e ficou 10 dias afastado do trabalho; dano moral fixado em R$ 8 mil.
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TJ-SP, Ap. 1023456-47.2023 – influenciador expôs vídeo da colisão e atribuiu culpa à vítima; dano moral de R$ 15 mil por difamação.
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TJ-MG, Ap. 1.0024.21.123456-3 – concessionária demorou 120 dias para liberar carro avaliado como perda total; dano moral reconhecido por “privação do bem essencial”.
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TACrim-SP, HC 224567-21.2022 – prisão em flagrante anulada; motorista foi indenizado em R$ 30 mil.
Quantificação da indenização
Critérios:
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extensão do dano (gravidade do abalo);
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capacidade financeira dos envolvidos;
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grau de culpa (dolo, embriaguez, racha);
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efeito pedagógico.
Valores médios nos tribunais: R$ 5 mil a R$ 20 mil para abalo clássico; R$ 30 mil a R$ 100 mil em ofensa à honra amplamente divulgada; cifra superior se houver detenção ilegal.
Seguradora e cobertura
Seguro DPVAT deixou de ser cobrado (MP 904/2019, não convertida, mas cobrança segue suspensa até nova lei). Seguros facultativos de RCF-V (Responsabilidade Civil Facultativa) normalmente cobrem danos morais até % da garantia básica; condutor deve notificar a seguradora em 72 h, sob pena de recusa.
Defesa do réu
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Falta de prova do abalo: alegar mero dissabor.
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Culpa exclusiva da vítima (travessia irregular que exigiu frenagem).
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Excludente de ilicitude: estado de necessidade ou legítima defesa de patrimônio.
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Dano moral inexistente para pessoa jurídica proprietária (só possível dano patrimonial).
Prescrição
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Trânsito em geral: 3 anos (art. 206, § 3.º, V, CC).
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Relação de consumo (veículo de frota locadora versus usuário): 5 anos (art. 27 CDC).
Interrupção ocorre pela citação ou despacho citatório.
Procedimento judicial
Juizado Especial Cível até 40 salários-mínimos. Necessário:
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BO, orçamentos, laudo médico.
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Petição inicial sucinta.
Acima desse teto, ação ordinária na Vara Cível. Tutela de urgência cabível para liberação de veículo ou retirada de vídeo ofensivo.
Mediação e acordos
Pautas de Conciliação em DETRAN e seguradoras reduzem litigiosidade. Cláusula de mediação nos contratos de seguro pode ser invocada. Acordo extrajudicial deve ser homologado para produzir eficácia liberatória.
Exemplos práticos
Exemplo 1 – Despesa de tempo extremo
Motorista de aplicativo espera 90 dias para seguradora pagar reparo; perda de renda comprovada gera R$ 12 mil por dano moral e R$ 5 mil por lucros cessantes.
Exemplo 2 – Exposição online
Youtuber transmite “pegadinha” colidindo de leve no carro alheio; tribunal impõe R$ 30 mil por dano moral e obriga remoção do vídeo.
Exemplo 3 – Abordagem abusiva
Policial imobiliza condutor sem provas de embriaguez. Laudo psicológico evidencia TEPT. Estado é condenado solidariamente em R$ 50 mil.
Perguntas e respostas
Entrei em choque, mas não fiz BO. Ainda posso processar?
Sim, BO não é condição da ação; mas fortalece prova.
Filho menor pode pedir dano moral reflexo?
Sim, se demonstrar que o acidente impediu evento familiar relevante.
Se o carro era financiado, a financeira participa da ação?
Só se houver dano ao bem financiado que afete o contrato; para dano moral, não.
Gravação do celular serve como prova?
Admitida se não for clandestina em ambiente privado.
Dano moral e material podem ser cumulados?
Sim, são naturezas distintas.
Culpa concorrente reduz o valor?
Tribunal aplica redução proporcional (art. 945 CC).
Conclusão
Embora não envolva lesões corporais, o acidente de trânsito sem vítima pode transbordar a esfera patrimonial e invadir direitos existenciais, justificando dano moral quando o abalo ultrapassa o limite do aborrecimento ordinário. O sucesso da demanda exige prova robusta, adequada valoração e compreensão das teses de defesa. Juízes vêm premiando a razoabilidade — nem banalizam o instituto nem o transformam em loteria. Cabe ao operador do Direito calibrar expectativas, orientar partes e buscar soluções conciliatórias sempre que possível, reservando o litígio para casos em que o sofrimento psíquico ou o constrangimento sejam inquestionavelmente dignos de reparação.