De volta ao assunto: de ratos e homens (Ou como devemos freqüentemente olhar para nossos esgotos)

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Parece que é uma lição de casa que teimamos em não aprender: a ausência de solidariedade gera violência na mesma medida e proporcionalidade. Isto é um fato evidenciado ao longo da história social do homem. Esquecermos desse corolário de princípio existencial equivale em proporcionalidade ao fato de continuamente desejarmos esquecer quem realmente somos; ou seja, seres humanos que vivem em comunidade e que carecem da solidariedade para uma vida melhor.

A impressão que se tem é a de que saímos do paraíso para irmos para um inferno que nós mesmos concebemos diuturnamente em nossas mentes e em nossas almas. Subúrbios, periferias, guetos, favelas, em nada diferem da própria existência humana: miserável e sem perspectiva. E quando não resta qualquer esperança, o que resta ao ser humano é lutar, ou melhor, é revoltar-se contra o estabelecimento, virar sua face de ódio para aquele que nunca olhou em sua direção, para aquele semelhante que nunca ousou pensar no aspecto da semelhança, mas apenas na diferença estabelecida pelo meio social.

A única certeza que resta tanto para os miseráveis como para aqueles que com eles não se coadunam é o fato de serem forçados a viverem cada um em suas habitações peculiares, aquelas que lhe pertencem, que lhes são caras; suas proteções, seus redutos onde ninguém mais poder-lhes-á fazer qualquer mal, ou mais mal do que já lhes impingem. Comer, beber, amar e sofrer são as únicas sensações que lhes restam, as únicas coisas que parecem ter sentido nessa vida sem qualquer significação. Não há mais o que buscar, nem mesmo o transcendental, pois o espiritual é aquele que nos aguarda após a travessia do “vale de lágrimas” pelo qual peregrinamos sem nos preocupar quão dura ou quão dolorosa será a sua travessia, pois a desesperança de sabermos que ao final dela tudo é um permanente desconhecido cujo resultado é o alívio de não mais viver em eterno sofrimento de corpo, alma e espírito.

Não é apenas a falta de comida, a falta de abrigo, a falta de emprego, mas sim a falta de perspectiva, a falta de esperança, a falta de fé que nos deixa cada dia mais distante de nós mesmos. Porque não olhamos para nossos bueiros, para nossos esgotos, para o excremento social que nós mesmos deixamos que seja produzido, e que a cada momento cresce numa proporção exponencial, visando culminar no sufocamento de todos nós.

Ao que parece, sejam dirigentes com prestígio internacional, seja de proeminência local, ninguém possui vontade de fato de eliminar a miséria humana. Sejam de esquerda, de direita ou de centro, ninguém quer acabar com aquilo que lhes parece conveniente, adequado aos seus próprios princípios; aliás, a palavra em voga seja exatamente esta: princípios. Não há mais princípios, porque não há mais eloqüência no seu significado.

Perdemos muito tempo nos preocupando com princípios, com disciplina, com honra e com dignidade. Não há mais finalidade em tudo isso, apenas em manter os bueiros fechados, lacrados, longe de nossos olhos, de nossos narizes de nossos sentimentos. O mesmo vale para os esgotos, mesmo que estes sejam rasgados a céu aberto; o que importa de fato são os interesses de alguns, de poucos; poucos que detém muito, muito que apenas tem significado para que tem e quem quer sempre ter mais. É o velho adágio de quem tem muito, sempre quer mais.

Todavia, cabe aqui uma pergunta crucial: onde fica o direito em relação a tudo isso? Para que estudarmos a mais nobre das ciências humanas, se nem mesmo nós escapamos desta inefável perspectiva do nada absoluto a que estamos submetidos? Somos apenas pequenos e insignificantes objetos manipuláveis, cuja natureza nos impingiu a finalidade de vivermos em sociedade quase que como um castigo eterno e perene que nos agrilhoa, nos fere e nos deixa profundamente tristes por sabermos que não poderemos escapar.

Nesse invólucro de desesperança e absoluta ausência de perspectivas, acredita-se que a esperança (se é que ela existe de fato), está no desiderato da solidariedade. E nós futuros operadores do direito, integramos o grupo de elite que é capaz de mudar, de fazer de modo melhor para todos e não apenas para alguns poucos. Buscando nas linhas gerais do direito, nos pensamentos dos ilustres, nas vertentes de sabedoria daqueles que procuraram observar a vida através de uma perspectiva repleta de espectâncias novas, de modos totais e diametralmente opostos aos atuais, é que podemos encontrar uma outra forma de olharmos para nossos bueiros, para nossos esgotos, e tirar deles nossos semelhantes. E fazendo isso, estaremos tirando também nossas almas que se encontram imergidas no excremento que, se não ajudamos a produzir, nada fizemos para que ele pudesse ser saneado.

Nós, operadores do direito, pensadores, jurisconsultos, juristas e magistrados, todos nós temos nossos quinhão de responsabilidade, responsabilidade essa que criamos e que devemos necessariamente assumir como uma obrigação perpétua, que contém em si uma finalidade muito mais elevada, muito mais significativa, muito mais profunda que a nossa própria existência. De fato, acredita-se, que a essência da existir seja algo mais que perpetuar-se; algo mais profundo que a mera experiência da carne, ou mesmo aquilo que acreditamos haver após a morte, até porque morte é libertação, mas também é o fim desta experiência maravilhosa que a vida nos proporciona. Existir é uma eterna sensação de sabermos que não estamos e nunca estaremos sós.

Assim sendo, nós membros da magnífica ciência do direito temos por razão de ser de nossas existência, combatermos a violência, o tédio, a desesperança e a falta de amor entre os seres humanos, e, principalmente, mergulharmos de cabeças nos bueiros e esgotos da vida a fim de salvarmos a todos e também a nós mesmos. A salvação de todos é a nossa salvação. O direito, assim visto, não é apenas uma ciência, é praticamente uma religião que conclama todos à solidariedade e ao amor eterno de uns com os outros.

São Paulo, 05 de outubro de 2003.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Antonio de Jesus Trovão

 

formado em Administração de empresas pela UNIFEI, campus São Paulo, acadêmico de direito pela Universidade São Francisco e servidor público federal lotado no Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região.