Decisões manipulativas no controle de constitucionalidade da legislação penal em face do princípio da reserva legal

Resumo: Este artigo trata da admissibilidade – em face da própria Constituição de 1988 e do princípio da reserva legal – das decisões manipulativas no controle de constitucionalidade da legislação penal. O referido princípio exige que os tipos incriminadores decorram apenas de leis em sentido estrito taxativas, vedando, portanto, a ampliação do âmbito de proibição penal por meio da analogia, dos costumes ou de leis vagas e imprecisas. Assim, buscou-se investigar os institutos jurídico-penais relevantes para o problema: o princípio da reserva legal e as decisões do controle de constitucionalidade, especialmente as do tipo normativo-aditivas, redutivas e substitutivas, além da declaração pura e simples de inconstitucionalidade. A análise sobre a caracterização da ciência jurídica a respeito desses institutos foi o ponto de partida para lhes compreender a estrutura e a finalidade. Esse percurso permitiu concluir que, enquanto as decisões redutivas e as de declaração de inconstitucionalidade são compatíveis com o referido princípio; as demais espécies analisadas nem sempre o são, pois podem implicar a ampliação da repressão penal pelo estabelecimento de normas mediante a integração judicial do direito legislado, seja pelo recurso à analogia, aos costumes ou a leis vagas e indeterminadas.

Palavras-chave: penal. Controle de constitucionalidade. Sentenças normativas. Reserva legal.

Sumário: 1. Introdução teórico-metodológica. 2. Princípio da reserva legal. 2.1 a lacuna. 3. Controle de constitucionalidade. 3.1 A sanção pela inconstitucionalidade. 4. Decisões intermedárias. 4.1. Decisões Redutivas. 4.2. Decisões Aditivas. 4.3. Decisões Substitutivas. 5. Conclusão. 6. Referências

1. INTRODUÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

Se, com o advento da Constituição de 1988, iniciou-se o processo de constitucionalização do Direito Brasileiro, é necessário incluir o Direito Penal nesse novo paradigma. Também a legislação criminal precisa ser reinterpretada, talvez expungida em algumas partes, para que se dê prosseguimento à implantação da Constituição Cidadã.

Esse processo, talvez lento demais nessa seara (o Direito Penal), deve ser realizado mediante instrumentos que sejam adequados ao parâmetro constitucional, sob pena de substituírem-se as inconstitucionalidades por novas inconstitucionalidades.

Que mecanismos são esses de constitucionalização do Direito Penal? São eles admissíveis para o controle da legislação penal, diante dos princípios constitucionais-penais?

Além da declaração pura e simples de inconstitucionalidade, outros tipos de decisão têm sido adotados no controle de constitucionalidade, entre eles, e especialmente, as decisões normativo-redutivas, aditivas ou substitutivas. São decisões em que o julgador substitui a norma que resulta do texto legal por outra, por vezes construída mediante a analogia ou o recurso aos costumes.

Dos princípios constitucionais-penais, um dos mais importantes é o da reserva legal, previsto no art. 5º, XXXIX. Em face desse princípio, coloca-se o problema sobre se ele admite que o controle de constitucionalidade da legislação penal seja realizado por meio de tais decisões.

Desse princípio, Francisco de Assis Toledo (2004) extrai os postulados da lex certa e da lex scripta, que vedam justamente a ampliação do Direito Penal mediante os referidos meios de integração do Direito. Assim, a hipótese de pesquisa acenava com uma negativa em relação ao problema posto: não, as sentenças normativas violam o princípio da reserva legal e, portanto, são inadmissíveis no controle de constitucionalidade da legislação penal.

A pesquisa realizada foi de caráter jurídico-dogmática e interpretativa, para uma análise da estrutura do princípio da reserva legal, dos procedimentos de integração analógica e da lacuna do Direito, o que se fez no tópico 2. Também foram perscrutados o controle de constitucionalidade, na sua forma tradicional, atrelada ao binômio constitucional/inconstitucional e a consequência pela inconstitucionalidade, conforme se verá no tópico 3. O tópico 4 discrimina a composição das decisões intermediárias, nos seus três tipos, e já indica algumas conclusões a respeito do problema formulado. Construíram-se conceitos sobre cada um desses institutos, a partir dos conceitos que lhes dá a ciência jurídica, para delimitá-los de maneira a permitir melhor identificar de que forma eles se relacionam. No tópico 5 foram apresentadas as conclusões, em forma esquemática.

Espera-se que este trabalho possa contribuir com o debate a respeito do controle de constitucionalidade da legislação penal, inclusive fomentando a efetiva constitucionalização do Direito Penal por meio de nosso Judiciário.

2. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL

O princípio da reserva legal, ou princípio da legalidade estrita, está previsto constitucionalmente como um direito fundamental. Enuncia-o o art. 5º, XXXIX, da Constituição de 1988, segundo o qual “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O inciso XL especifica um de seus postulados, o da irretroatividade da lei penal mais severa: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Esses direitos também têm sede convencional, previstos que estão, por exemplo, no Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos)[1].

É íntima a relação desse princípio com o da separação funcional dos poderes (LOPES, 1994, p. 70) e o da segurança jurídica (BATISTA, 2007, p. 67), ambos voltados para a contenção do Estado e a proteção da liberdade individual (CUNHA, 2012). Não se pode negar também o vínculo entre ele e o princípio democrático[2], pois a lei é, em tese, o resultado do processo de autorregulamentação conduzido pelos cidadãos, processo que dá legitimidade ao direito (HABERMAS, 1997, p. 213), de forma que a atividade judicante não se pode desenvolver alheia aos limites que a legislação estabelece. Tornar-se-ia ilegítima, se o fizesse, retirando o poder das mãos de seu verdadeiro titular.

A doutrina extrai do princípio da reserva legal quatro postulados, assim sintetizados na lição de Toledo:

Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição da fundamentação ou agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem). Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas” (1994, p. 22).

Enfim, a reserva legal impõe, no Direito Penal, que não haja incriminação de condutas e a instituição de penas senão por lei em sentido estrito (TOLEDO, 1994, p. 20). Em outras palavras: o julgador não pode extrair senão da lei os fundamentos para condenar e apenar alguém. Essa lei não é qualquer lei, pois, segundo o postulado da lex certa, deve permitir que a interpretação delimite as condutas proibidas com a máxima precisão. Logo, leis que expressam princípios e até regras jurídicas de termos muito vagos e aos quais se possam atribuir sentidos excessivamente variados não podem ser considerados como lei penal em sentido estrito[3].

O costume não é admitido como fonte de normas penais incriminadoras principalmente porque a sua origem difusa e de difícil determinação espacial e temporal compromete o conhecimento prévio das condutas proibidas e, consequentemente, a segurança jurídica (CUNHA, p. 24). A lei, nesse sentido, é a fonte do Direito que melhor atende ao referido princípio.

Quanto ao postulado da vedação à analogia in malam partem, também é facilmente deduzido do princípio da reserva de lei. Segundo Bobbio, a analogia é um instrumento de autointegração[4] do Direito, mediante o qual “se atribui a um caso não regulado a mesma disciplina de um caso regulado de maneira semelhante” (2008, p. 290/291).

Se a lei não incrimina, nem estabelece pena para determinada conduta, não pode o julgador fazê-lo, ainda que inspirado em lei que incrimina ou apena conduta semelhante:

Não resta a menor dúvida acerca da total inaplicabilidade da analogia, diante do princípio da legalidade que determina a reserva da lei como limitação das fontes do Direito Penal no sentido de uma primazia absoluta do Poder Legislativo, a toda e qualquer norma que defina crimes e comine ou agrave penas, cuja expansão lógica, por qualquer processo, é terminantemente vedada, havendo nesse ponto unanimidade na doutrina” (LOPES, 1994, p. 121).

Assim, adstrito aos limites impostos pela lei, o juiz – é evidente – não pode impor condenações que os extrapolem. Como as normas criadas mediante o processo analógico, assim como as normas originadas pelo costume e as decorrentes de leis vagas e indeterminadas, não estão contidas nos limites da legislação penal, ele não pode valer-se delas. Em prejuízo do réu, pelo menos, não.

O princípio da reserva legal vocaciona-se desde a sua origem iluminista à proteção do indivíduo contra a volúpia punitiva do Estado (CUNHA, 2012, p. 9/10).  Seria ilógico que, com base nele, fossem negados direitos justamente a quem ele quer concedê-los. Assim, esse princípio somente veda o recurso à analogia e ao costume quando prejudicial ao réu, mas não a sua utilização em benefício dele. Isso não impede que outros princípios do ordenamento restrinjam tal utilização.

O costume contra legem, mesmo em benefício do réu, tem recepção restrita pela doutrina, pois, como afirma Bobbio (2008, p. 240), nos ordenamentos em que prevalece a lei como fonte normativa principal, não se admite que o costume a ab-rogue. Já a analogia, nas mesmas condições (analogia in bonam partem), é aceita amplamente, até por razões de equidade (TOLEDO, 1994, p. 27).

Desde a ascensão do chamado neoconstitucionalismo, no segundo pós-guerra, a rígida separação de poderes inspirada na obra de Montesquieu vem sendo relativizada. Já se reconhece ao juiz – mais do que o papel de um mero autômato (boca-da-lei) – o poder de criar o Direito. Isso significa que o juiz, ao decidir, sempre cria normas, as quais podem ter fundamento direto na lei, ou em uma lei que regule caso semelhante (analogia), ou no costume, ou nos princípios jurídicos

Contudo, para que não haja uma completa desvalorização da lei, a criação normativa com base em outras fontes ainda é uma atribuição atípica, marginal do Judiciário (MONTIEL, 2011, p. 78), ou melhor, a criação judicial deve sempre reconduzir-se às possibilidades de sentido do direito legislado. Assim, a analogia in bonam partem é limitada pelo princípio democrático[5].

Também se devem levar em conta os objetivos do Direito Penal, o qual, ao lado de buscar reduzir ou controlar o poder punitivo do Estado, também visa a fins preventivos, de incentivar condutas que não atentem contra bens jurídicos relevantes e desestimular reações violentas informais à criminalidade. Embora a analogia in bonam partem, e o costume, sirvam àquele objetivo, ampliando o âmbito de liberdade do indivíduo, a sua utilização imoderada pode afastar o Direito Penal de suas finalidades preventivas (MONTIEL, 2011, p. 82/83). Essa é mais uma razão para lhes impor restrições.

Tais vedações, contudo, são menos peremptórias do que a que advém do princípio da reserva legal, o qual, como se disse, somente se aplica em favor do réu.

2.1. A lacuna

O recurso a instrumentos de integração do Direito, como a analogia e os costumes, pressupõe a existência de lacunas no ordenamento jurídico.

Ferraz Jr., com base em Engisch, diz que a lacuna “é uma incompletude insatisfatória dentro da totalidade jurídica”, ou seja, é uma ausência, a falta de regulação sobre determinado estado de coisas, o qual não se pode afirmar esteja dentro ou fora do sistema normativo, “ou mesmo se deve ou não pertencer a ele” (2003, p. 219/220).

 Nesse sentido, aproxima-se do conceito que Bobbio dá ao termo. Para o jurista italiano, o problema da lacuna está em estabelecer se o caso não regulado expressamente está sujeito à norma geral exclusiva, segundo a qual, no paradigma liberalista, tudo que não estiver proibido, está permitido; ou à norma geral inclusiva, pela qual os casos não regulados são disciplinados pelas normas dos casos semelhantes regulados (BOBBIO, 2008, p. 278/279):

Se existem duas soluções, ambas possíveis, e a decisão entre as duas soluções cabe ao intérprete, existe uma lacuna, e ela consiste justamente no fato de que o ordenamento não deixou claro qual das duas soluções é a mais desejável” (BOBBIO, 2008, p. 278/279).

É de se observar, contudo, que o ordenamento brasileiro prevê, na combinação entre o art. 4º da LINDB[6] e o art. 126 do CPC[7], o princípio do non liquet (STRECK, 2014, p. 154). O juiz não pode eximir-se de decidir as causas sobre as quais a lei é omissa. Deve, neste caso, recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios do ordenamento jurídico. Assim, só se pode falar de lacunas da lei, não do Direito, que contém outras fontes pelas quais suprir aquela.

A doutrina classifica as lacunas em normativas e axiológicas. Seria hipótese daquelas quando dado sistema jurídico não contém uma lei que discipline determinado caso, embora os princípios subjacentes a esse sistema exijam-na; as últimas ocorreriam quando o sistema legal regula o caso, mas de forma excessivamente abrangente, sem separá-lo de outros que, de acordo com os referidos princípios, mereceriam regulamentação diversa (MANERO, 2010, p. 56). A distinção é rebarbativa, contudo, pois na lacuna axiológica o que há é também a ausência de uma lei derrogatória da outra, excessivamente abrangente[8].

 Decorre do princípio da reserva legal que sobre os fatos não previstos pelo tipo penal incriminador incide a regra geral exclusiva. Eles pertencem à esfera de liberdade juridicamente protegida do indivíduo, ou seja, não configuram crimes. Nessa perspectiva, não há lacunas normativas no Direito Penal, e o juiz só pode criar normas com fundamento direto na lei.

Essa conclusão não representa um retorno ao dogma da completude – nem mesmo parcial -, o qual pressupunha uma fé inabalável na capacidade de o legislador prever todas as situações da vida. Tipos incriminadores podem faltar mesmo que a Constituição determine que eles existam, o que configurara uma ausência insatisfatória. A questão é que esta não pode ser corrigida pelo Judiciário, mas só pelo Legislativo.

Diversa é a hipótese de o tipo abranger (proibir) mais condutas do que deveria. O princípio da reserva legal não se aplica, sendo possível a criação de normas com base nos instrumentos de integração do direito, salvo a incidência de outros fundamentos que determinem a aplicação da norma geral exclusiva.

Assim, ainda sob o prisma do tipo incriminador, não se pode negar que no Direito Penal existem lacunas axiológicas. Isso quer dizer que, quando constatada a ausência insatisfatória de uma lei que derrogue o tipo incriminador excessivamente abrangente, caberá ao intérprete decidir se é caso de aplicar a regra geral exclusiva ou de integrar o Direito pelas formas admitidas (analogia, costumes, princípios).

3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

A Constituição de 1988 é classificada como rígida, pois exige um processo mais complexo para a sua reforma do que aqueles previstos para a instituição da legislação infraconstitucional[9]. Além disso, ela limita material e circunstancialmente o poder constituinte derivado[10].

Decorrência lógica dessa rigidez é a inadmissibilidade de se conferir validade aos atos infraconstitucionais que contravenham os preceitos dela. Do contrário, estar-se-ia admitindo a sua reforma independentemente do processo especial e dos limites que ela própria estatuiu. A isso a doutrina deu o nome de princípio da soberania da constituição. Daí que, na lição de Barroso, “nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental” (1996, p. 150).

Dessa forma, a Constituição e suas Emendas são parâmetro de validade de todo o ordenamento. A verificação da parametricidade dos atos infraconstitucionais – aliada a uma sanção contra os atos desconformes com o parâmetro constitucional – é o que se denomina controle de constitucionalidade (FERNANDES, 2013, p. 1066).

3.1. A sanção pela inconstitucionalidade

Como já salientado, a rigidez da Constituição de 1988 e a supremacia dela no ordenamento posto exigem que sejam sancionados os atos com ela incompatíveis. Uma vez que a Constituição é que fornece aos demais atos do ordenamento fundamento de validade, é fácil concluir que o vício de inconstitucionalidade (incompatibilidade com o parâmetro constitucional) deve significar a perda desse fundamento. Logo, a sanção pela inconstitucionalidade é a invalidade do ato[11]:

Sendo […] a Constituição a Lei Fundamental de uma ordem jurídica, ela é orientadora da produção de todas as demais normas do sistema, de tal forma que, buscando sua validade nas normas superiores e consequentemente na Lei Maior do ordenamento jurídico, não a podem contrariar, sob pena de sua invalidade” (FERRARI, 2004, p. 510).

 A norma inconstitucional, pois, fica destituída de fundamento de validade, de forma que ela não pode ser considerada uma norma pertencente ao ordenamento jurídico posto. Ela sequer vigora, se se entender, com Ferraz Jr. (2003, p. 138), que a vigência pressupõe a validade.

É necessária uma pequena observação neste ponto. A doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, não admitem que haja controle de constitucionalidade sobre atos anteriores ao parâmetro constitucional. É dizer: exige-se contemporaneidade entre ele e o objeto de controle.

Adota-se, portanto, a teoria da recepção: sendo compatível com o novel ordenamento, a norma infraconstitucional[12] anterior receberá dele um novo fundamento de validade (NOVELINO, 2013, p. 139). Será, portanto, recepcionada pela ordem jurídica posterior. Porém, se houver contrariedade material[13] em relação ao novo parâmetro, a entrada dele em vigor provoca a imediata não recepção (para alguns, revogação) dessa norma[14]. Nesse caso, a transição constitucional faz com que a norma incompatível com o novo parâmetro perca sua força impositiva. Nega-lhe fundamento de validade e impede-lhe a vigência. A norma sequer chega a existir como tal no ordenamento superveniente[15].

 Seja pela inconstitucionalidade, seja pela não recepção, a consequência é uma só: a norma que contraria a Constituição não pertence (ou não mais pertence) ao ordenamento jurídico. Logo, não pode o julgador socorrer-se dela para decidir os casos a ele submetidos.

No controle de constitucionalidade tradicional, o julgador está adstrito ao binômio constitucional/inconstitucional. A declaração de inconstitucionalidade sempre implicará a exclusão do preceito normativo, no todo ou em parte, com a consequente exclusão da norma ou das normas que ele admitia. Estas darão lugar a normas contraditórias ou contrárias[16] em relação a elas, mas conformes com a Constituição.

Decisões desse tipo não violam o princípio da reserva legal, pois não introduzem novas normas incriminadoras ou cominadoras de pena, além das que decorrem do restante da legislação penal.

O referido binômio, contudo, tem sido relativizado, o que origina novas formas de decisão no controle de constitucionalidade.

4. DECISÕES INTERMEDIÁRIAS

Decisões ou sentenças intermediárias são expressões utilizadas pela doutrina para designar provimentos judiciais que relativizam o binômio constitucional/inconstitucional no controle de constitucionalidade (MEYER, 2008, p. 38).

Segundo Sampaio (apud MEYER, 2008, p. 38/39), a expressão sentenças[17] intermediárias surgida originalmente na VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, em 1987 – engloba duas espécies: decisões normativas e decisões transitivas ou transacionais.

Nas decisões transitivas, há uma relativização do princípio da supremacia da constituição (SAMPAIO apud MEYER, 2008, p. 38/39), e não propriamente do binômio constitucional/inconstitucional. A inconstitucionalidade da norma é reconhecida nessas decisões; somente a sanção respectiva – de invalidade – não é aplicada ou é postergada[18]. São tipos de decisões transitivas as sentenças de inconstitucionalidade sem efeito ablativo (sem declaração de nulidade); as sentenças de inconstitucionalidade com ablação diferida; as sentenças de apelo ou apelativas; e as sentenças de aviso (FERNANDES, 2013, p. 1196).

As decisões normativas implicariam a criação judicial de normas de eficácia erga omnes (CRUZ, 2004, p. 252). Nem sempre, contudo, isso acontece. No controle difuso e em concreto as decisões têm eficácia apenas inter partes (MEYER, 2008, p. 39). Parece mais adequado, então, aproximá-las da ideia de decisões manipulativas – afastado todo o sentido pejorativo que comumente tem este termo. Segundo Brust, enquadram-se como tais as decisões que “afetam o próprio conteúdo normativo complexo do preceito, reduzindo-o, aumentando-o e, até mesmo, substituindo-o” (2009, p. 508). 

Assim, mais do que o alcance dos seus efeitos, o que caracteriza as sentenças normativas (manipulativas) é a criação de uma norma que não se enquadra nas possibilidades de sentido do texto do preceito impugnado. Essa espécie de decisão abrange vários tipos:

“[…] a sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, que reduz o conteúdo normativo complexo do preceito legal, também conhecida por redutiva ou por inconstitucionalidade parcial qualitativa (é inconstitucional na parte em que… ou enquanto prevê ou inclui algo contrário a…)[…]. Além de redutiva, a sentença manipulativa pode ser aditiva, se agrega conteúdo normativo ao preceito (é inconstitucional enquanto não estabelece…, ou não prevê…, ou omite…, ou não inclui…, ou exclui…, algo que deveria incluir…), ou substitutiva, se substitui parte do conteúdo normativo do preceito por outro (é inconstitucional enquanto prevê…, ou sinala algo, em lugar de outra coisa que deveria prever…)” (BRUST, 2009, p. 509 – grifos no original).

Já se referiu ao princípio da reserva legal e à forma como ele restringe o recurso aos instrumentos de integração da legislação penal. Como, com base nele, nem sempre será admissível a criação de normas que extrapolem o direito legislado, é importante analisar cada um dos tipos de decisões normativas.

4.1. Decisões redutivas

São redutivas as decisões que restringem o âmbito de abrangência da lei. Em outras palavras: o julgador distingue quando as possibilidades de sentido da lei não permitem distinguir.

Conforme assevera Brust, “as distintas normas derivam de maneira conjunta ou complexa do texto, operando contemporaneamente, pois regulam fattispecie diversas ou determinam efeitos independentes […]” (2009, p. 513). Uma ou mais dessas normas, nas decisões redutivas, é suprimida, sem que haja qualquer alteração no texto legal. 

Um exemplo, dado por Brust, é o acórdão 70007387608-2004, prolatado pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[19]. Nele se analisa o tipo de porte ilegal de arma, então previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 como “… portar… arma de fogo, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com a determinação legal ou regulamentar”. O Tribunal entendeu que o crime só se configura se a arma estiver municiada, introduzindo, portanto, uma distinção que a lei não faz em relação ao porte de arma desmuniciada – que não seria crime (2009, p. 521).

Nessas decisões, afasta-se a norma inconstitucional para reafirmar uma norma constitucional, contraditória em relação à primeira (no lugar de é proibido portar arma desmuniciada …, o é permitido portar arma desmuniciada…). Não distam muito do que se passa em relação à declaração de inconstitucionalidade pura e simples, salvo por não alterarem o preceito impugnado, nem retirarem-no do ordenamento. Aqui, como lá, não há a criação de normas incriminadoras além das que decorrem de outros preceitos da legislação penal. Portanto, também não violam o princípio da reserva legal.

4.2. Decisões aditivas

Tratam-se de decisões aditivas aquelas em que o julgador amplia o âmbito de incidência de uma lei (MEYER, 2008, p. 70), além dos limites de possibilidade de sentido de seu texto. Como a norma criada não se funda no direito legislado, há manifesto recurso aos instrumentos de integração deste.

Tal método, no controle de constitucionalidade da legislação penal, só pode ser admitido se buscar corrigir lacunas axiológicas. Sua aplicação a lacunas normativas, com a criação ou ampliação de tipos incriminadores, é inconstitucional, pois viola a regra geral exclusiva decorrente do princípio da reserva legal. Estas lacunas, como dito, só podem ser supridas pelo Legislativo.

4.3. Decisões substitutivas

São decisões substitutivas aquelas em que o “juiz constitucional anula, num primeiro passo, a disposição inquinada de inconstitucionalidade para, num segundo passo, acrescentar um sentido normativo diferente” (MEYER, 2008, 70). Vê-se que esse tipo de decisão tem dois momentos distintos.

Primeiramente, retira-se do sistema uma norma considerada inválida, por contrariar norma de hierarquia superior, como nas decisões redutivas. Depois, ampliam-se as hipóteses de incidência da lei para alcançar um caso por ela não regulado.

A primeira fase é ablativa. Declara-se a inconstitucionalidade de um dos sentidos concomitantes que pode ser atribuído ao texto. A ablação é pressuposto da fase seguinte, afinal não se admite que o juiz possa deixar de aplicar determinada norma de origem legislativa para aplicar outra, de criação judicial, sem justificar sua decisão em uma norma hierarquicamente superior a ambas. Do contrário, violar-se-iam os princípios democráticos e da separação de poderes.

No controle de constitucionalidade da legislação penal, aliás, como ocorre em relação às decisões redutivas, essa fase não viola o princípio da reserva legal, pois não são criadas novas incriminações ou novas penas. Subsistem, após essa fase e antes de completada a outra, apenas as normas desse tipo que decorram da legislação penal existente.

Contudo, no caso das decisões substitutivas, a ablação não é suficiente. A norma retirada do sistema deve dar lugar a outra.

Essa fase é de integração do direito, com a criação judicial de uma norma que a legislação não contempla, estendendo a lei a um caso por ela não regulado.

Aqui, como nas decisões aditivas, o princípio da reserva legal não admite sejam utilizadas para ampliação dos tipos incriminadores ou dos que cominam penas. Se há a falta insuficiente de tipos tais, retirados do ordenamento na fase anterior, incide a norma geral exclusiva, só podendo ser suprida pelo Legislativo.

5. CONCLUSÕES

O princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX, da CR) determina que somente a lei em sentido estrito pode incriminar condutas e estabelecer penas no Direito Penal. Assim, seus postulados vedam o recurso à analogia (postulado da lex stricta), aos costumes (postulado da lex scripta) e aos princípios jurídicos (postulado da lex certa) para integração do Direito em prejuízo do réu.

Esse princípio não veda, contudo, que tais instrumentos de integração do Direito sejam utilizados em favor do réu. É no princípio democrático e nas finalidades preventivas do Direito Penal que essa utilização encontra restrições.

A lacuna é o pressuposto de cabimento do recurso aos instrumentos de integração do Direito. Verifica-se ela quando falta de forma insatisfatória uma lei para a regulação de determinado caso. É normativa a lacuna quando nenhuma lei trata da solução do caso, embora os princípios do ordenamento exijam-na; é axiológica quando a lei é excessivamente abrangente, ou seja, quando falta uma lei que a derrogue, retirando da incidência da primeira determinados casos, conforme o exijam os referidos princípios.

Considerado sob a perspectiva do tipo penal incriminador, pode-se afirmar que não existem lacunas normativas no Direito Penal. Isso porque, faltando aquele, o princípio da reserva legal determina que se aplica a regra geral exclusiva, de forma que a hipótese não tipificada constituirá o âmbito de liberdade do indivíduo. O Direito Penal, contudo, não é avesso às lacunas axiológicas, verificadas quando o tipo é excessivamente abrangente. É possível a aplicação da analogia, dos costumes ou dos princípios jurídicos para limitá-lo, sendo atribuição do intérprete verificar no caso concreto se algum desses instrumentos é cabível, ou se se aplica a norma geral exclusiva.

A rigidez da Constituição de 1988 implica o princípio da supremacia da constituição, segundo o qual ela é parâmetro de validade de todas as demais normas do ordenamento. Esse princípio é resguardado mediante o controle de constitucionalidade dos atos normativos infraconstitucionais, por meio do qual se verifica a adequação deles ao parâmetro constitucional e se aplica a sanção de invalidade aos atos inadequados. A norma inválida não pertence ao ordenamento jurídico, e, consequentemente, não pode ser utilizada pelo julgador para solucionar as controvérsias jurídicas submetidas a ele.

Nos seus moldes tradicionais, o controle de constitucionalidade resolve-se no binômio constitucional/inconstitucional. Assim, a norma declarada inconstitucional é retirada do ordenamento, dando lugar a outra, contraditória em relação àquela. Altera-se o próprio preceito impugnado. As normas resultantes do controle, se não forem decorrentes do próprio texto modificado ou do restante da legislação penal, não têm o condão de ampliar a repressão penal. Logo, esse tipo de decisão é compatível com o princípio da reserva penal.

Hoje, há uma relativização do referido binômio, traduzindo-se na existência das decisões intermediárias de controle de constitucionalidade. Dentre essas, enquadram-se as decisões normativas ou manipulativas, mediante as quais o julgador cria uma norma que não pode ser atribuída ao preceito legal impugnado. Essas normas, em alguns casos, não derivam de qualquer parte da legislação penal, mas decorrem da utilização dos instrumentos de integração do Direito.

Nas decisões normativas redutivas, restringe-se o âmbito de abrangência do texto legal impugnado. Reafirma-se a norma constitucional, mas sem ampliar os tipos incriminadores além do que prevê o restante da legislação penal. Não conflitam com o princípio da reserva legal.

As decisões aditivas ampliam o âmbito de incidência da lei além do que permite o texto legal. Implicam, portanto, a utilização de instrumentos de integração do direito legislado, o que somente se admite quando há lacunas axiológicas. Nessa hipótese, podem ser utilizadas. Não em relação às lacunas normativas, para as quais o princípio da reserva legal exige a aplicação da regra geral exclusiva. Fora disso, somente o Legislativo pode supri-las.

Decisões substitutivas são aquelas que contemplam uma fase ablativa, confundindo-se, aí, com as decisões redutivas; e uma fase integrativa, à semelhança das decisões aditivas. Aplica-se a cada uma de suas fases as conclusões sobre a admissibilidade das decisões redutivas e aditivas, respectivamente.

Em razão do princípio da reserva penal, no controle de constitucionalidade da legislação repressiva são admitidas sem restrições apenas as decisões de inconstitucionalidade pura e simples e normativas redutivas; as decisões aditivas e as decisões substitutivas somente são admitidas quando operam sobre lacunas axiológicas.

 

Referências
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Notas:
[1] Artigo 9º – Princípio da legalidade e da retroatividade. Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.
[2] O princípio democrático está previsto no art. 1º, p. único, da CR/88: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
[3] Neste trabalho, as futuras referências à lei penal ou à legislação penal terão esse postulado em conta. Assim, terão um sentido mais restrito do que aquele em que geralmente se emprega, afastadas deles as leis penais vagas e indeterminadas.
[4] Diz o jurista italiano que a autointegração “consiste na integração realizada através do próprio ordenamento, no âmbito da própria fonte dominante, sem recorrer a outros ordenamentos, e com o mínimo recurso a fontes diferentes da dominante” (2008, p. 287).
[5] Montiel sugere que se observe, além dos requisitos para a admissibilidade dessa forma de integração do Direito, o grau de excepcionalidade das eximentes e atenuantes que serão aplicadas analogicamente a casos não previstos por elas: quanto mais excepcional elas forem, tão mais excepcional deve ser qualquer método judicial que as amplie. (2011, p. 83).
[6] “Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”.
[7] “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)”.
[8] Não obstante, a expressão lacunas axiológicas continuará sendo empregada neste trabalho, mas referente apenas aos tipos penais incriminadores, que cominem penas ou as agravem. Dessa forma, estar-se-á indicando a presença de lacunas normativas, em razão da inexistência de leis derrogatórias dos tipos incriminadores, as quais deveriam existir.  Em outras palavras, essas expressões designarão, respectivamente, situações em que o âmbito de liberdade é menor do que deveria e o inverso, quando o âmbito de liberdade é maior do que deveria.
[9] Comparem-se o art. 60 com os art. 61 e ss., todos da Constituição.
[10] Vide art. 60, §§1º, 4º e 5º, da CR.
[11] A doutrina controverte sobre se se trata de nulidade ou anulabilidade. No primeiro caso, a invalidade seria inerente ao ato inconstitucional, tornando-o incapaz de produzir quaisquer efeitos, como se inexistente fosse. O Judiciário faria apenas declará-la, em decisão com efeitos ex tunc. Na hipótese de anulabilidade do ato inconstitucional, este produziria regularmente todos os efeitos de um ato regular, até o reconhecimento judicial de sua incompatibilidade com a Constituição. A decisão seria constitutiva da invalidade, e teria efeitos ex nunc (FERRARI, 2004, 510 e ss.). De uma forma ou de outra, a norma deixa de valer no ordenamento, sendo a controvérsia mais relevante para a determinação do momento em que isso ocorre.
[12] Fala-se somente das infraconstitucionais porque a Constituição anterior é inteiramente revogada pela que lhe sucede. A manutenção na nova ordem dos dispositivos daquela é a exceção, e deve ser feita expressamente, seja para manter-lhes o status de norma constitucional, por tempo determinado (recepção material); seja agora para conferir-lhes status de norma infraconstitucional (desconstitucionalização), independentemente de prazo fixo (FERNANDES, 2013, p. 137/138).
[13] Para o fenômeno da recepção, não importa que a norma infraconstitucional anterior seja formalmente adequada à norma constitucional posterior, mas apenas materialmente.
[14] Uma corrente minoritária da doutrina adota a teoria da inconstitucionalidade superveniente. Segundo essa teoria, embora uma norma tenha nascido válida em relação a determinado parâmetro constitucional, a posterior modificação deste (por uma Emenda Constitucional ou por uma nova Constituição) pode torná-la inválida, se com a alteração ela for incompatível (BERNARDES, 2013, p. 136).
[15] Vale destacar, portanto, que a distinção entre não recepção e revogação é meramente terminológica – apenas ressalta que a revogação só ocorre entre normas de mesma hierarquia (NOVELINO, 2013, p. 139) -, sem consequências práticas relevantes: uma e outra impedem que a norma entre em vigor no novo ordenamento.
[16] No sentido que Bobbio dá ao termo: “duas proposições chamam-se contrárias quando não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas; chamam-se contraditórias quando não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas […]” (2008, p.166).
[17] O termo sentenças, neste caso, é substituível, com vantagens, por decisões, já que o provimento judicial a respeito da constitucionalidade de determinada norma ou ato normativo tanto pode se dar por sentenças, quanto por acórdãos.
[18] A decisão transitiva pode ser expressa assim: julga-se inconstitucional o preceito, mas sem declaração de nulidade por certo período de tempo, até que ocorra determinada situação…
[19] O TJRS entendeu que se tratava de um outro tipo de decisão, chamada de interpretação conforme à constituição, e não sentença redutiva.

Informações Sobre os Autores

Ben-hur Daniel Cunha

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Bernardo de Caravalho Rocha

Assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais


Equipe Âmbito Jurídico

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