Resumo: O presente artigo trata da análise da relação existente Direito e Processo, a partir do estudo do instituto de ligação estreita entre ambos: a ação. Iniciado com a exposição das teorias da ação, parte-se dentro da evolução da teoria constitucional e neoprocessual para compreensão da importância de sua efetividade dentro do escopo de adequada prestação jurisdicional. Ao final, volta-se ao exame em específico das condições propostas pelo legislador para exercício do direito público subjetivo de ação e sua pertinência.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Condições da ação. Direito e Processo.
Abstract. This article deals with the analysis of the existing law and procedure, from the institute´s study of close connection between the two: the action. Started with exposure theories of action, breaks into the evolution of constitutional theory and neo procedural for understanding the importance of their effectiveness within the scope of proper adjudication. Finally, back to the examination in specific conditions proposed by the legislature to exercise the public right of action its relevance.
Keywords: Access to justice. Condition of action. Law and Procedure.
Sumário. Introdução. 1. O instituto da ação na relação entre Direito e Processo. 2. O direito de ação na perspectiva neoconstitucional do processo. 3. Condições da ação: requisitos de validade ou exercício? 4. Natureza do reconhecimento superveniente de carência da ação. Conclusão. Referências.
Introdução
Entre os institutos do Direito Processual, é seguro afirmar que a ação é dos mais polêmicos e estimulantes, dada sua natureza de conector para com o direito objetivo.
O tema é recorrente do ponto de vista acadêmico, e interfere no cotidiano dos operadores do direito que invariavelmente se deparam com questões envolvendo os profundos e técnicos conceitos da dogmática processualista ao longo de sua evolução.
Dentro do atual estágio de desenvolvimento da ciência constitucional, o direito de ação distancia-se da pura técnica processual para afirmar-se entre o catálogo de direitos fundamentais.
Logo, a correta definição de seus contornos teóricos e práticos diz respeito à efetividade da própria Constituição.
O que se pretende inicialmente é a releitura do instituto sob a égide constitucional que regula o acesso à justiça e o devido processo legal.
Calcada uma base sólida, buscar-se-á solucionar o problema da técnica processual fixado no reconhecimento da existência (ou não) das condições, bem como sua cisão em relação à demanda e a tutela jurisdicional em si.
1. O instituto da ação na relação entre Direito e Processo
Ao longo de décadas e séculos de evolução científica, diversas doutrinas se apresentaram como capazes de esclarecer a relação (inarredável) entre Direito e Processo.
O Direito, enquanto regulamento de comportamento intersubjetivo, esteve presente em todas as civilizações que possuíam uma forma de organização, desde as ancestrais cujo objetivo normativo era o de regular as tarefas tribais, até mais tarde com o surgimento do legislador no ano de 450 do período pré-cristão (GRINOVER, CINTRA, DINAMARCO, 2006, p.25-28). [1]
É pacífica a concordância com o brocardo de que não existe sociedade sem direito (ubi societas ibi jus).
Obviamente, dada sua finalidade de traçar a conduta a fim de permitir a convivência do grupo, apenas a previsão da norma era insuficiente para assegurar o seu respeito. Estar-se-ia vinculando a ordenação dos homens ao seu próprio arbítrio.
Diversas formas de se fazer valer a regra foram observadas ao longo da civilização.
Imperava em primeiro momento a vingança privada, através da autotutela.
Posteriormente utilizou-se da conciliação e, finalmente, a arbitragem, através da qual o Imperador ou Rei indicava a pessoa designada para impor a solução à controvérsia.
A eficácia do comando normativo apenas estaria assegurada após o longo período de estruturação do Estado, com o reconhecimento formal da função jurisdicional. Não é possível apontar com precisão quando se haveria verificado o surgimento dos primeiros órgãos jurisdicionais, por isso a doutrina refere-se a um período de migração da tutela de direitos da ordem privada para a égide pública, da cognitio extra ordinem, iniciado no século III da Era Cristã[2].
Nascia, assim, um desdobramento da tarefa estatal, encarregado agora, não apenas de produzir a norma jurídica, mas, ainda, garantir sua efetiva aplicação e incidência de sanção pelo descumprimento das regras de convivência.
Os estudiosos e praxistas moveram os olhares para a estreita relação que se verifica entre a norma e a atuação jurisdicional, significa dizer, cogitou-se se de fato duas eram as ciências a se desenvolverem, ou se o processo apenas surgia como conseqüência do descumprimento da norma jurídica.
Afinal, é possível identificar-se duas naturezas de normas (comportamentais e processuais) ou apenas uma ordem de conseqüência entre seu surgimento?
Com efeito, as três funções estatais atuam conjuntamente para possibilitar a existência da própria organização social, por meio da Administração, da Legislação, e da Jurisdição, todas integrantes de um único prisma que é o poder.
Quando o Estado exerce a jurisdição complementa a produção democrática do Direito, iniciada com a edição da lei. Para tanto, diversos órgãos e agentes trabalham atendendo a desígnios distintos. É o exercício da norma processual pelo órgão estatal competente (Estado-juiz) que outorga legitimidade ao ato de restrição de liberdade e direito.
De igual modo que a lei é editada dentro de um critério democrático (participação popular eletiva), a lei individual (sentença) é produzida dentro de um devido processo, em que as partes envolvidas têm assegurada a plenitude de acompanhamento em todas as fases.
Some-se que a norma processual não se destina a regular uma situação entre sujeitos, mas a relação destes com o Estado-juiz. As obrigações e os direitos pré-existem à formação da relação processual[3].
Tal entendimento alinha-se ao escólio de Humberto Theodoro Júnior[4], ao lecionar que “não se pode, realmente, imaginar o ordenamento jurídico do moderno Estado de Direito sem a cooperação imprescindível do processo”.
Através do Direito Objetivo o Estado traça as regras de convivência, e é pelas normas do Direito Adjetivo que se alcança o seu cumprimento.
2. O direito de ação na perspectiva neoconstitucional do processo
Numa perspectiva tradicional a Constituição representa o documento de limitação da atuação estatal, de forma a proteger a liberdade individual em face da tendência autoritária, após a experiência histórica de regimes aplicados por modelos de Estado Máximo.
A vertente política, jurídica e filosófica de demarcação do poder através de um contrato fundamental encontra nascedouro com a outorga da Magna Carta pelos barões ao Rei John, no ano de 1215, que desencadearia posteriormente no movimento constitucionalista[5].
Ao princípio a proteção da liberdade era o objetivo principal, senão exclusivo, do catálogo de direitos e garantias fundamentais, destacando-se os importantes remédios de habeas corpus, habeas data e mandado de segurança.
Contudo, a constante e perpétua evolução das relações sociais, com sua inevitável complexidade, deu surgimento a novas classes de direitos fundamentais que reclamam uma efetiva e célere proteção jurisdicional.
Evoluiu-se desde as clássicas liberdades públicas, passando pelos direitos sociais, transindividuais, até os atualmente estudados direitos de engenharia genética, de acordo com a teoria de Norberto Bobbio[6].
Muito embora não haja unidade de pensamento doutrinário, é certo afirmar que estamos na transição para uma quarta geração ou dimensão na linha evolutiva dos direitos fundamentais.
De acordo com Paulo Bonavides, essa nova etapa se refere aos direitos ligados à globalização e universalização dos direitos fundamentais, radicada na democracia, informação e pluralismo[7].
Tutelar um direito cuja violação é irreversível, tal como ocorre nas hipóteses de poluição do meio ambiente; atuar na concessão de condições mínimas de existência digna dentro do âmbito dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários; proteger o consumidor individual frente às grandes corporações que abusam de seu poder econômico para realização do fim capitalista etc. é o cenário em que a técnica processual até então pensada para a tutela de ressarcimento se depara.
Os institutos do direito processual passam a ser remodelados e discutidos com vistas a possibilitar a máxima eficácia do texto constitucional, que consagra como fundamento a dignidade da pessoa humana. Esses e outros fundamentos, insculpidos em verdadeiros estandartes principiológicos adquirem relevância do ponto de vista técnico-jurídico.
A postura ideológica neoprocessual objetiva fundamentalmente “construir técnicas processuais voltadas à promoção do direito fundamental à adequada, efetiva e célere tutela jurisdicional[8]”.
Os princípios saem do campo puramente axiológico para se tornarem escopos a serem alcançados pela interpretação constitucional e prestação jurisdicional.
É sob essa perspectiva que se pretende analisar o direito de ação, de modo a alinhavar a determinação constitucional de ampliação do acesso à justiça e ao judiciário com a natureza instrumental do processo.
Monopolizada a justiça entre as funções fundamentais do Estado, retirou-se do cidadão a autotutela, de sorte que seu direito de ação a provocar o desencadeamento do aparelho jurisdicional tornou-se cláusula pétrea, dentre as garantias fundamentais.
3. Condições da ação: requisitos de validade ou exercício?
No Direito Romano a ação seria “o poder de obter em juízo a satisfação de um direito subjetivo (ius presequendi in iudicium)” [9]. A definição da teoria imanentista ou civilista evidencia a subordinação do processo à violação do direito subjetivo, significa dizer, o processo surgiria com a violação do direito material. Em conseqüência, o direito de ação seria concreto e vinculado ao efetivo desrespeito da norma de direito objetivo.
Na linha evolutiva, surgiu uma nova perspectiva, oriunda de épica disputa teórica travada entre os alemães Windscheid e Muther em torno do direito de ação no direto romano.
Dos contornos traçados pelos mestres germanos, resultou a seguinte constatação: diante da violação do direito exsurge a pretensão do titular em face do Estado e para este o poder-dever de ingerência no litígio[10].
Mas a celeuma não estava totalmente solucionada.
Existentes o direito de acionar o Estado e o direito deste em compor a lide, qual seria a conexão entre o fato que se alega e a prestação jurisdicional? Em outras palavras, sempre que suscitado o direito de ação, o Estado estará vinculado a prestá-la ou deverá haver a comprovação da situação fática deduzida?
Uma primeira corrente doutrinária defendeu a natureza abstrata da ação, de acordo com a qual o Estado pode ser chamado a prestar a jurisdição independentemente da efetiva comprovação do direito material que se sustenta violado. Em defesa da abstração podemos citar o alemão Degenkolb e o húngaro Plósz[11].
De outro vértice, doutrina diversa perfilhou entendimento pela existência de relação concreta entre a ação e o direito material, não bastando apenas a simples alegação de ofensa ou violação para que o Estado preste a tutela jurisdicional, sendo necessária a comprovação do fato ab initio litis. O direito de ação não seria entendido como o direito à tutela jurisdicional, mas sim a uma sentença favorável.
Importa dizer, pela corrente concretista apenas existiria direito de ação quando favorável o pronunciamento jurisdicional, caso contrário de ação não se tratava[12].
Ponderando ambos os entendimentos doutrinários, Liebman desenvolveu entendimento particular, conciliando a abstração do direito de ação com a necessidade de demonstração de requisitos mínimos que demonstrem a funcionalidade da prestação jurisdicional. “Sustenta-se pela teoria eclética que a ação é o direito a uma sentença de mérito, seja qual for seu conteúdo, isto é, de procedência ou improcedência” [13].
De certa forma, Liebman distanciou-se da abstração, porquanto admita que o direito de ação exista independentemente do direito material, contudo, condiciona o direito ao provimento final (de mérito ou não) ao preenchimento de determinados requisitos, aos quais se denominou condições da ação.
De acordo com a glosa de Adroaldo Furtado Fabrício:
“Diz-se, então, que o direito de ação, conquanto autônomo e abstrato em relação ao direito subjetivo afirmado, só pode ser exercido em correlação com determinada pretensão de direito material, à qual se apresenta ligado e conexo”[14].
A presença das condições da ação seria necessária para a análise do mérito da ação, em um momento prévio da atividade cognitiva do juiz.
O Código de Processo Civil, fruto do trabalho de Alfredo Buzaid, adotou a teoria eclética de Liebman, enunciando as condições da ação como sendo a legitimidade, possibilidade jurídico do pedido e interesse de agir, conforme prescrevem os artigos 3º e 267, VI[15].
Dinamarco nos contempla com exemplos significativos:
“Se peço a anulação de um contrato do qual não participei, sou parte ilegítima porque não figuro na relação material. Se a parte pleiteia mandado de segurança para participar de um concurso público e este já se realizou, falta interesse processual porque a situação da vida já se perpetuou e não é possível voltar atrás. Se um Estado da Federação pede a declaração de seu desligamento da República Federativa, ele carece de ação porque sua demanda é juridicamente impossível perante a Constituição Federal”[16].
Convém lembrar que, após seu retorno à Itália, Liebman modificou sua teoria das condições da ação,
“A partir da 3ª edição do seu Manuale, e certamente depois que o Código de Processo Civil brasileiro havia sido pensado, abandonou a possibilidade jurídica do pedido, reduzindo as condições da ação apenas à legitimidade para a causa e ao interesse de agir. Isto porque, quando a postulação solicitada pelo autor não pudesse ser atendida, faltaria o próprio interesse de agir”[17].
De acordo com a lei em vigor, a ausência de alguma condição pode ser aferida pelo magistrado em qualquer tempo e grau de jurisdição, conforme dispõe o art. 267 § 3º do Código de Processo Civil, implicando na resolução do processo sem julgamento do mérito, traduzido na ausência de produção dos efeitos da coisa julgada material, possibilitando ao autor, após regularização, a repropositura.
Igualmente, o Codex prescreve caber ao magistrado pronunciar-se de ofício sobre qualquer causa modificativa, impeditiva ou constitutiva do direito do autor que possa influir no julgamento da lide (art.462).
A aplicação irrestrita do dispositivo legal conduz a algumas dificuldades de cunho teórico e contorno prático.
Corrigida a ausência da condição, a ação a ser reproposta identifica-se com aquela extinta por carência?
Se o juiz ou mesmo o tribunal se pronunciam apenas com a relação processual já avançada ainda assim o julgamento seria sem resolução do mérito?
Caso assim se conclua entre a propositura da ação e o momento de decretação da carência o que existiu?
Cumpre ressaltar que para Liebman as condições da ação são requisitos para a sentença de mérito, posto que inexistentes, nem sequer função jurisdicional foi exercitada pelo Estado-juiz, conforme leciona Ovídio Baptista:
“Como assevera Liebman, recusar o julgamento ou reconhecê-lo possível não é ainda propriamente julgar; são atividades que por si próprias nada têm de jurisdicionais e adquirem esse caráter só por serem uma premissa necessária para o exercício da verdadeira jurisdição”[18].
Com efeito, diante da garantia constitucional de amplo e irrestrito acesso à justiça e ao Judiciário, de forma a tutelar a lesão ou ameaça a direito, forçoso é concluir que as condições se refiram à regularidade, mas não ao seu exercício ou existência, pois “ainda que a resposta do juiz se exaura na pronúncia de carência da ação (porque não se configuram as condições da ação), terá havido exercício da função jurisdicional” [19].
Some-se a glosa de Luiz Guilherme Marinoni[20]:
“Portanto, as afirmações i) de que o juiz não exerce função jurisdicional quando conclui que uma condição da ação não está presente e ii) de que nesse caso não se responde a um direito do autor, são completamente insustentáveis.”
Logo, a teoria eclética deve ser obtemperada à luz da Constituição Federal e demais garantias processuais, de forma que a técnica e o formalismo não conduzam a distorções e restrições de direitos fundamentais.
4. Natureza do reconhecimento superveniente de carência da ação
De início cumpre estabelecer o limite da atividade cognitiva do juiz no momento de propositura da ação, quando do primeiro contato com a demanda instaurada e com os fundamentos de fato e de direito, quando lhe é devido proceder com a análise das condições de validade de seu exercício.
Consoante abalizada lição doutrinária,
“É dever do juiz a verificação da presença das condições da ação o mais cedo possível no procedimento, e de ofício, para evitar que o processo caminhe inutilmente, com dispêndio de tempo e recursos, quando já se pode antever a inadmissibilidade do julgamento do mérito”[21].
A análise inicial do magistrado é perfunctória, sobretudo diante da produção probatória que será iniciada. Assim, não será crível ao juiz deter-se sobre a existência ou não dos fatos e na forma narrada, sob o risco de atacar o mérito da ação logo ao início, em prejuízo do contraditório e da ampla defesa.
A correspondência que o magistrado deve empreender é, por assim dizer, hipotética.
O escopo é a presença de uma relação mínima de regularidade do que se pede, como se pede e em relação a quem se pede, postergando sua efetiva comprovação para além do desenvolvimento do procedimento. Nesse momento, “o que importa é a afirmação do autor, e não a correspondência entre a afirmação e a realidade, que já seria problema de mérito” [22].
Para conciliar a natureza abstrata da ação com a análise inicial das condições de validade de seu exercício, a doutrina italiana desenvolveu a teoria da asserção ou prospectação, segundo a qual o momento de verificação da carência é inicialmente, de acordo com a afirmação (asserção) do autor, tudo mais sendo relegado ao mérito da ação.
Na exposição de Fredie Didier:
“Não se trata de um juízo de cognição sumária das condições da ação, que permitiria um reexame pelo magistrado, com base em cognição exauriente. O juízo definitivo sobre a existência das condições da ação far-se-ia nesse momento: se positivo o juiz de admissibilidade, tudo o mais seria decisão de mérito. A decisão sobre a existência ou não de carência de ação, de acordo com esta teoria, seria sempre definitiva, Chama-se de teoria da asserção ou da prospettazione”[23].
Logo, o critério para definição da natureza da decisão que declara a carência seria temporal: se ao início a decisão não aprecia o mérito, caso a pronúncia da carência seja posterior, haveria manifestação sobre o mérito.
Em sentido contrário, outra corrente doutrinária defende a teoria da apresentação, segundo a qual pouco importa o momento de manifestação do juiz, seja ao início ou ao final, a decisão será sempre de carência de ação e, portanto, sem resolução do mérito[24].
De acordo com a lição de Vicente Greco Filho:
“É diferente carência da ação de improcedência da ação: na primeira, como se disse, há declaração de falta de condição da ação, sem apreciação do mérito; na segunda, há pronunciamento sobre o mérito. Em qualquer momento, porém, a natureza da sentença será a mesma, isto é, ela determina a extinção do processo sem julgamento do mérito, de modo que, posteriormente, a ação poderá ser renovada”[25].
Igualmente, Cândido Rangel Dinamarco dedica capítulo de sua obra para repudiar a aplicação da teoria da asserção, com o arnês de que, para ter direito ao processo, não basta que o autor afirme haver preenchido as condições da ação, mas que elas estejam formalmente presentes.
Afirma o eminente processualista:
“Seja ao despachar a petição inicial, ou no julgamento conforme o estado do processo ou em qualquer outro momento intermediário do procedimento – ou mesmo afinal, no momento de proferir sentença – o juiz é proibido de julgar o mérito quando se convence de que a condição falta”[26].
A crítica é fundada, pois pelo simples momento de aferição das condições da ação, haveria a transmutação da natureza do pronunciamento judicial.
Se a carência é aferida ao início, o pronunciamento não resolveria o mérito, se ao final, com ele se confundiria.
Realmente, de acordo com a atual redação do Código de Processo Civil, a teoria da representação causa menos confusão e dificuldades de manejo prático, tal como por Dinamarco e Vicente Greco.
Com efeito, a voluntas legis privilegia a economia processual evitando a instauração, prosseguimento e condenação do réu sob o pálio de um irregular desenvolvimento da ação. Ausente alguma condição, o autor não tem direito de ver o mérito julgado.
Na práxis, a teoria da representação facilita a atuação judicante, pois a carência pode apresentar-se a qualquer momento do trâmite, decorrente da dilação probatória e dos elementos fáticos coligidos ao caderno processual, reservado ao magistrado a manifestação na forma do art.462 e 267 § 3º, ambos do Código de Processo Civil vigente[27].
De outra banda, não se pode descurar da deficiência teórica representada pela categoria das condições da ação.
As condições da ação só existem para justificar a abstração do direito de ação perante a moderna concepção do Direito Processual Constitucional, diante da dificuldade da doutrina do século passado em definir o conceito de coisa julgada material.
Colaciona Marinoni[28]:
“Qual, pois, a razão para se falar em condições da ação? A resposta é simples, e se relaciona com uma inadequada compreensão do instituto da coisa julgada material”.
E completa:
“Se é evidente que aquele que escolheu a via errada deve ter o direito de voltar a ingressar em juízo através da via adequada, é completamente falso que a sentença que afirma que a via escolhida é inadequada não produza coisa julgada material, e que somente por isso o autor tem o direito de voltar a juízo elegendo a via correta.”
A incidência dos efeitos da coisa julgada material decorre de uma simples razão: não haverá identificação entre as ações[29].
O que identifica as ações, para efeitos de litispendência e coisa julgada são seus elementos componentes, quais sejam: partes, causa de pedir e pedido.
Nas partes entende-se compreendidos autor e réu.
A causa de pedir, de acordo com a doutrina, divide-se em próxima e remota, sendo que “os fundamentos de fato devem ser entendidos como a causa remota; os fundamentos de direito, como a causa próxima” [30].
Por fim, de acordo com Cássio Scarpinella:
“O pedido, de acordo com a doutrina tradicional, aceita um desdobramento: pedido imediato e pedido mediato. Pedido mediato é o bem da vida cuja proteção é desejada pelo autor por intermédio da atuação jurisdicional. Pedido imediato é a providencia jurisdicional solicitada ao Estado-juiz”[31].
Se o autor se afigura carecedor em razão da ilegitimidade passiva do réu (p.ex., ingresso de ação de despejo em face de pessoa que não é inquilino), poderá renovar o pedido condenatório, mas o fazendo em face do locatário, haverá alteração da identidade das partes passivas, por conseqüência, tratar-se-á de nova ação.
Igualmente, suponha-se que em face do locatário o locador ingresse com ação de reintegração de posse. Muito embora as partes sejam legítimas, a via escolhida é inadequada para alcançar o bem almejado.
Poderá o locador propor ação, com as mesmas partes e causa de pedir [término do contrato], mas valendo-se da via adequada [ação de despejo]. Nesse caso o pedido mediato permanece idêntico, porém, o pedido imediato [tutela jurisdicional] é modificado.
Por fim, imagine-se a ação revisional do aluguel proposta pelo autor antes do termo contratual fixado para tanto. Naquele momento o pedido será juridicamente impossível, por expressa vedação legal. Todavia, o autor poderá remanejar demanda revisional findo o prazo avençado que, em razão da modificação da causa de pedir remota [fatos], será possível de apreciação jurisdicional.
Trata-se de ações idênticas?
A resposta é desenganadamente negativa. A sentença que aferir a irregularidade do exercício jurisdicional manifestar-se-á sobre o mérito, transitando materialmente em julgado.
Regularizada a ação e apresentada nova movimentação jurisdicional, será nova ação, não se identificando com a anteriormente ajuizada.
Marinoni é taxativo ao concluir:
“Melhor explicando: não deveria existir condição da ação, e nesse caso o código de processo civil não precisaria, justamente porque em tese não deveria, distinguir a sentença de carência da sentença que julga o direito substancial [pedido]”[32].
Em soma, a teoria da representação melhor se explica diante do contexto legislativo atual, mas, à luz da garantia de acesso à justiça e princípios norteadores da teoria processual, a categoria das condições da ação deve ser eliminada ou, ao menos, admitir-se que a sentença que reconhece a carência manifesta-se sobre o mérito e transita materialmente em julgado.
Conclusão
Com o surgimento da jurisdição e sua monopolização entre as funções fundamentais do Estado contemporâneo, o direito de ação foi inserido no catálogo de direitos fundamentais como a importante garantia do cidadão de ver prestada a tutela jurisdicional ao caso concreto.
A Constituição Federal Brasileira expressamente consagra o direito de amplo acesso ao Judiciário e à justiça no art.5º, inciso XXXV.
O direito de ação, na perspectiva neoconstitucional do processo, abarca não apenas a mera noção de movimento do aparelho jurisdicional, mas sim a efetiva, tempestiva e adequada prestação da tutela jurisdicional, através de um devido processo legal e garantias inerentes à sua observância.
Contudo, é fundamental conciliar a teoria constitucional com a técnica processual.
Visto por esse ângulo, as condições da ação trariam segurança jurídica e economia processual, vedando que se instaurem demandas destituídas de um mínimo lastro de correspondência com o fato.
Por outro lado, inegavelmente não é possível cingir o que seja condições da ação e o mérito, como se coisas absolutamente distintas fossem. O que a teoria da asserção faz é apenas uma cômoda divisão sob a linha temporal (ao início carência, ao final mérito…).
O motivo é muito simples: a ação que será ‘reproposta’ nada tem a ver com a ação extinta por carência.
Ora, a ação carente proposta será diferente da ação suprida a ser proposta. São ações diversas que se exercerá. Duas provocações distintas da tutela jurisdicional.
Logo, aquela primeira decisão de carência produzirá coisa julgada, sendo, portanto, de mérito.
A teoria da representação deve ser aplicada na vigência do atual Código de Processo Civil, mas a categoria de condições da ação deve ser revisada, para sua abolição ou o reconhecimento legal da cobertura dos efeitos da coisa julgada sobre a sentença que reconhece a carência.
Informações Sobre o Autor
Cristiano Aparecido Quinaia
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Toledo de Ensino. Advogado Consultivo do Escritório Mandaliti Advogados