Gláucia Maria de Araújo Ribeiro: Doutora em Saúde Coletiva pela UERJ/RJ. Doutoranda em Direito pela UFMG/MG. Mestre em Direito Ambiental pela UEA/AM. Professora da UEA/AM. DOI: https://orcid.org/0000-0003-0695-5257. E-mail: [email protected]
Thaís Oliveira Onety: Advogada. Pós-Graduanda em Direito Público pela Universidade do Estado do Amazonas. E-mail: [email protected].
Resumo: O presente artigo trata do poder de polícia e da possibilidade de sua delegação através de uma análise histórica, de pesquisas legais, doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema e, por fim, de como decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Aborda inicialmente a conceituação de poder de polícia e sua relação com o regime jurídico administrativo. Depois apresenta as posições doutrinárias e as decisões jurisprudenciais que versam sobre a delegabilidade desse poder ressaltando a sua evolução e enfatizando como maior ponto de divergência a possibilidade dessa delegação para pessoas jurídicas de direito privado pertencente à Administração Indireta. Ao final, discorre sobre a decisão proferida pelo STF, nos autos do Recurso Extraordinário n° 633.782/MG, acerca do tema.
Palavras-chave: Poder de Polícia. Delegação. RE 633.782/ MG. Direito Administrativo.
Abstract: This article deals with the police power and the possibility of its delegation through a historical analysis, legal, doctrinal and jurisprudential research on the subject and, finally, how the Federal Supreme Court decided on the issue. It initially approaches the conceptualization of police power and its relation to the administrative legal regime. Then it presents the doctrinaire positions and jurisprudential decisions that deal with the delegation of this power, emphasizing its evolution and emphasizing as the greatest point of divergence the possibility of this delegation to legal entities of private law belonging to the Indirect Administration. At the end, he discusses the decision rendered by the STF, in the records of Extraordinary Appeal No. 633.782/MG, on the subject.
Keywords: Police Power. Delegation. RE 633.782/MG. Admistrativo Law.
Sumário: Introdução.1. Poder de Polícia. 2. Da delegação do poder de polícia. 3. Posicionamento do STF: RE 633.782/ MG. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O poder de polícia é instrumento essencial para a realização das atividades de interesses públicos sendo responsável por condicionar direitos e liberdades individuais em vistas do coletivo.
O seu conceito sofreu alterações ao longo da história acompanhando as peculiaridades das diversas épocas, dos diferentes Estados, afinal, a definição de poder de polícia que se encontrava em um Estado Absolutista não poderia ser a mesmo que se encontrava em um Estado Liberal.
Com o amadurecimento das teorias acerca do poder de polícia, suas características, seus atributos, surgiu a discussão sobre sua possível delegação a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública Indireta.
Nesse cenário, em 26 de outubro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a tese da constitucionalidade da delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública Indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial. O presente artigo tem como objetivo analisar a mencionada decisão sob diferentes enfoques.
Por fim, a pesquisa adota a metodologia de análise de decisões visando estabelecer conexão com o contexto do científico jurídico e sua correlação com a Administração Pública.
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Poder de polícia
A atuação da atividade administrativa do Estado rege-se por princípios próprios que compõe o seu regime jurídico. Como pilares desses, identifica-se o princípio da Indisponibilidade do Interesse Público e o princípio da Supremacia do Interesse Público.
O princípio da indisponibilidade do interesse público é responsável por traçar limites a atuação administrativa decorrente do fato de que não se pode lançar mão do interesse público. Conforme leciona Carvalho Filho (2020, p. 67), os bens e interesses públicos não pertencem à Administração tampouco a seus agentes “cumpre ressaltar que ao administrador não pertencem os bens da administração, ou seja, ele não é o titular do interesse público- portanto, não tem livre atuação, fazendo-o, em verdade, me nome de terceiros”.
Aliado a tal princípio está aquele que tutela a Supremacia do Interesse Público defendendo a prevalência do interesse da coletividade quando em confronto com o mero interesse particular. Também, de acordo com as lições de Carvalho Filho (2020, p. 64), “os interesses da sociedade devem prevalecer diante das necessidades específicas dos indivíduos, havendo a sobreposição das garantias do corpo coletivo, quando em conflito com as necessidades de um cidadão isoladamente”.
Em decorrência desses princípios, que impõem a persecução, sempre, do interesse público, a Administração dota-se de prerrogativas para cumpri-los. Tais prerrogativas são verdadeiros instrumentos para a consecução dos fins públicos não podendo, portanto, serem consideradas como um fim em si mesmas. Dentre elas estão os poderes administrativos os quais constituem, em realidade, poderes-deveres.
O poder de polícia é um desses poderes administrativos cuja conceituação sofreu mudanças no decorrer da história. Etimologicamente, o vocábulo se confunde com a própria organização da comunidade equivalendo o termo polícia com a administração da cidade, de acordo com Caio Tácito, com o passar do tempo essa ideia acabou por contribuir para a justificar as prerrogativas estatais do regime absolutista (O poder de polícia e seus limites).
Com as revoluções liberais e o surgimento de direitos subjetivos, ao poder de polícia fora atribuído um aspecto negativo de evitar a perturbação da ordem e assegurar o livre exercício das liberdades públicas. Evoluindo para uma realidade na qual direitos individuais eram assegurados, contudo a desigualdade material e o abuso do poder econômico persistiam, esse princípio adotou uma feição mais intervencionista agindo, em função do interesse público, para restringir e condicionar o exercício de direitos e liberdades e, mais tarde, expandiu-se ao âmbito econômico e social, subordinando ao controle e à ação coercitiva do Estado uma larga porção da iniciativa privada.
Modernamente o conceito de poder de polícia defende um Estado responsável pela promoção do bem-estar geral, mais ativo. Segundo leciona Tácito “estabelecendo não somente no tocante à ordem pública, mas sobretudo no sentido da ordem econômica e social, normas limitadoras da liberdade individual, que se exercem, em grande parte, por meio do poder de polícia” (O poder de polícia e seus limites).
Ressalta-se, mais recentemente, a existência de doutrinadores que defendem a substituição do termo poder de polícia dando como alternativas Administração Ordenadora, limitações administrativas, entres outras. Tal alteração justifica-se pelo fato de o termo poder de polícia está atrelado a noção autoritária de Estado de Polícia- incompatível com o Estado de Direito, no qual a Administração poderia fazer tudo independentemente da existência de lei. Elogiando essa corrente, mas reconhecendo o obstáculo do conservadorismo, comenta José Vicente Santos de Mendonça:
“As expressões são, de fato, melhores, mas, como costuma ocorrer no conservador mundo do direito, a ideia que vence é a mais antiga e a noção melhor, porém mais nova, vira nota de rodapé”. (Estatais com poder de polícia: por que não?)
O poder de polícia é dividido pela doutrina em sentido amplo e em sentido estrito. Em uma acepção ampla, o termo abrange toda atuação restritiva de direitos individuais englobando, principalmente, o Poder Legislativo que pelas vias legislativas podem disciplinar a fruição de direitos. Já em uma acepção restrita, o termo está ligado à atividade da Administração Pública condicionante de direitos dos administrados.
Desse sentido estrito parte o conceito de polícia administrativa, qual seja, aquela que limita a propriedade e as liberdades dos administrados em prol dos interesses públicos, importante não a confundir com a polícia judiciária. Aquela age, principalmente, de forma preventiva, está disseminada pelos órgãos e agentes da Administração Pública, tem como objeto bens e direitos, enquanto essa atua de forma repressiva, é privativa dos órgãos de Segurança Pública, além de ter como objeto as infrações penais.
Salienta-se que o poder de polícia se encontra positivado no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 78 do Código Tributário Nacional, o qual o define como a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos (BRASIL, 1966).
De base doutrinária rica e definição legal, o Poder de Polícia é de ímpar importância para a concretização das competências materiais atribuídas pela Constituição da República Federativa de 1988 (CRFB/88) aos entes federados, sempre, o analisando sob a ótica de um poder instrumento.
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Da delegação do poder de polícia
A delegação do poder de polícia é tema de bastante estudos doutrinários e de recheada jurisprudências dos Tribunais Superiores.
No que diz respeito a sua delegação para pessoas jurídicas de direito privado, é doutrina majoritária a que entende pela sua impossibilidade. O principal argumento dessa doutrina é que, como o poder de polícia está atrelado à supremacia do interesse público e a prerrogativas para exercê-lo, existiria claro conflito quando exercido por um particular pondo-se em cheque a isonomia e o equilíbrio que devem reger as relações privadas. Excepcionalmente, aponta Diogenes Gasparini (2012), essa delegação pode acontecer como no caso dos capitães de navio.
Ressalta-se a existência de previsões legais nesse sentido da inviabilidade de delegação, a exemplo do artigo 4°, inciso III da Lei n. 11.079/2014, que ao tratar das normas para licitação e contratação de parcerias público-privadas, institui como uma de suas diretrizes a indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado (Brasil, 2004). Nesse sentido decide a jurisprudência do STF:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS.
Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime.” (STF, ADI 1717, Relator Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 7/11/2002, DJ 28/3/2003)
Destaca-se que apesar da impossibilidade de delegação do exercício do poder de polícia, tanto a doutrina quanto a jurisprudência admitem a possibilidade de pessoas jurídicas de direito privados atuarem em atividades acessórias, de apoio, preparatórias, ao exercício deste. Nesse sentido ensina Matheus Carvalho (2020, p. 142), abordando a possibilidade da delegação do chamado aspecto material do poder de polícia, como a colocação dos radares e encaminhamento das multas ao ente público os quais não se configuram atos de polícia propriamente ditos.
Do lado diametralmente oposto ao entendimento acima, é admitida amplamente a delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito público pela simetria da natureza jurídica com o ente delegante desde que haja expressa autorização legal, a exemplo das agências reguladoras como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e Agência Nacional do Petróleo (ANP).
O intenso debate doutrinário concentra-se na possibilidade de delegação do poder de polícia às pessoas jurídicas de direito privado pertencentes à Administração Indireta, pois essas podem tanto explorar atividade econômica quanto prestar serviços públicos e, apesar de pessoas de direito privado, sofrem várias derrogações de direito público.
Quando exploradoras de atividades econômicas se aproximam mais das pessoas jurídicas de direito privado, orientando-se, principalmente, pelo artigo 173 da CRFB/88, sujeitando-se apenas as peculiaridades do regime de direito público por mando constitucional ou por leis derivadas de normas do texto constitucional. Portanto, o entendimento quanto à delegação do poder de polícia para essas entidades é aquele, acima explicitado, pela sua indelegabilidade por frustrar o equilíbrio e a isonomia inerente às relações entre particulares.
Já quando prestadoras de serviços públicos, se aproximam mais das pessoas jurídicas de direito público, orientando-se, principalmente, pelo artigo 175 da CRFB/88, e, como acentua Matheus Carvalho (2020, p. 217), para essas entidades prestadoras de serviços públicos, o regime híbrido se aproxima do direito público, pois se aplicam a essas entidades todas as normas atinentes à prestação destes serviços. Por essa razão, é que é tão debatida a possibilidade ou não de delegação do poder de polícia as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público quando prestados em regime não concorrencial.
Ressalta-se que esse regime híbrido de tais entidades já foi reconhecido em diversas decisões dos Tribunais Superiores, as quais, analisando as peculiaridades dessas empresas prestadoras de serviço público de natureza não concorrencial, reconheceram a aplicação de institutos inerentes às pessoas jurídicas de direito público. Decidiu o STF pela submissão daquelas empresas ao regime de precatório:
“Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Sociedade de economia mista. Regime de precatório. Possibilidade. Prestação de serviço público próprio do Estado. Natureza não concorrencial. Precedentes. 1. A jurisprudência da Suprema Corte é no sentido da aplicabilidade do regime de precatório às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público próprio do Estado e de natureza não concorrencial. 2. A CASAL, sociedade de economia mista prestadora de serviços de abastecimento de água e saneamento no Estado do Alagoas, presta serviço público primário e em regime de exclusividade, o qual corresponde à própria atuação do estado, haja vista não visar à obtenção de lucro e deter capital social majoritariamente estatal. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido.” (STF, 2ª Turma, RE 852302 AgR/AL, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 15/12/2015).
Salienta-se, ainda, as decisões dos Tribunais Superiores em relação a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que apesar de sua natureza de empresa pública acabou por ser incluída no conceito de Poder Público. Segue entendimento do STJ:
“Agravo Regimental. ECT. Prazo em dobro. Aplicação. Art. 12 do decreto-lei n° 509/69. Recepção pela Constituição Federal. Prazo programático. Arts. 6° da Lei n° 8.025/90 e do decreto n° 99.266. Necessidade. Notificação.1. Tendo o art. 12 do decreto-lei n° 509/60 sido recepcionado pela Constituição Federal, permanecem os privilégios concedidos à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos como pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública; portanto, é tempestivo o recurso interposto dentro do prazo em dobro para recorrer previsto no art. 188 do CPC”.
…
(STJ, 2ª Turma, AgRg no Ag 418.318/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha em julgado em 02/02/2004)
Reconhecendo, também, as peculiaridades da prestação com exclusividade do serviço postal, serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, o STF já decidiu pela impenhorabilidade dos bens da Empresa de Correios e Telégrafos:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO. OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias”.
…
(STF, RE 229696, Relator Min. Ilmar Galvão, Redator p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa, Primeira Turma, julgado em 16/11/2000, DJ 19/12/2002)
Realizadas essas considerações, cabe destacar as diferentes correntes doutrinárias que abordam acerca da delegação do poder de polícia às empresas estatais cujas posições variam pela impossibilidade, pela possibilidade com temperanças, pela possibilidade de alguns de seus ciclos do poder de polícia.
A corrente doutrinária a qual nega a delegação do poder de polícia às empresas estatais sustenta que esse poder tem fundamento no poder de império, logo, incompatível de ser exercido por pessoas de direito privado.
Elenca Pagani de Souza que os principais argumentos dessa corrente giram em torno da alegação de que a natureza jurídica de pessoa de direito privado seria inconciliável com o exercício do poder de polícia; a perseguição do lucro inviabilizaria, também, essa delegação; o regime celetista dessas pessoas não proporcionaria a estabilidade necessária para a livre manifestação desse poder, despida de perseguições e represálias; e, por fim, a remuneração desses agentes, eventualmente fundamentada no desempenho, poderia levar a ocorrência de desvios de poder (Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia).
Defende essa corrente Alexandrino e Paulo os quais sustentam que lei atribuindo à pessoa jurídica de direito privado exercícios de atividades de polícias seria inconstitucional, mesmo que integrante da Administração Pública Indireta (2017, p. 303).
Em uma posição intermediária, situa-se corrente que defende a possibilidade de delegação de algumas atividades relacionadas ao poder de polícia. Para tanto, divide-se a atividade do poder de polícia em quatro ciclos: (i) ordem de polícia, (ii) consentimento de polícia, (iii) fiscalização de polícia e (iv) sanção de polícia.
Nesse contexto, caberiam, exclusivamente, às pessoas jurídicas de direito público a ordem de polícia e a sanção podendo ser delegadas a fase do consentimento e da fiscalização. Nesse sentido é a jurisprudência do STJ:
“ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE
(…). 2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista). 3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção. 4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção). 5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público. 6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro – aplicação de multas para aumentar a arrecadação. 7. Recurso especial provido.” (REsp817.534/ MG, 2ª Turma, Min. Mauro Campbell Marques; data de julgamento: 10/11/2009)
Por fim, há corrente doutrinária que entende pela possibilidade de delegação do poder de polícia às empresas estatais sustentando que o regime híbrido delas possibilitaria tal.
Pagani de Souza ressalta ser uma imprecisão frequente a de estender às empresas estatais argumentos de indelegabilidade que só se aplicariam a particulares. Sustenta que se toma “o traço comum entre empresas estatais e empresas particulares, que é o de serem pessoas jurídicas de direito privado e, a partir daí, coloca-se todas na mesma categoria” (Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia).
Adepto, também, dessa corrente Vicente de Mendonça refuta as críticas de que o poder de polícia seria privativo de pessoas públicas apontando o paradoxo, na realidade atual, da execução por entidades totalmente privadas de serviços públicos por meio de concessões e permissões e da impossibilidade de atividades de polícia por entes da própria Administração Pública (Estatais com Poder de Polícia: por que não?).
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Posicionamento do STF: RE 633.782/ MG
Diante do intenso embate doutrinário e de diversos posicionamentos, o STF reconheceu repercussão geral ao RE 633.782 no qual eram partes o Ministério Público de Minas Gerais ((MPMG) e a empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte e discutia-se sobre a possibilidade dessa empresa exercer a delegação do poder de polícia que a Lei municipal n. 5.953/91 havia instituído.
Então no dia 26 de outubro de 2020, sob relatoria do Ministro Luiz Fux, assentou-se a seguinte tese:
“É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial”. (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020)
O voto do relator, inicialmente, salienta a necessidade de se definir que o tema dos autos trata da delegação do poder de polícia administrativa a entidades da Administração Pública Indireta não se estendendo a pessoas físicas ou jurídicas desvinculadas da Administração.
Perpassando pelas premissas teóricas, e colacionado sua jurisprudência de extensão do regime inerente a Fazenda Pública às sociedades de economia mista e empresas públicas prestadoras de serviço público, o relator adentra no tema da delegação, propriamente dito, ressaltando que as estatais prestadoras de serviços públicos em regime de monopólio, embora sejam pessoas jurídicas de direito privado, possuem características identificadoras de traços de natureza jurídica híbrida, ora se aproximando do regime de direito público, ora se afastando.
O relator, também, aduz a necessidade de uma interpretação contemporânea do fenômeno reconhecendo a dinamicidade do Direito Administrativo de modo que uma afirmação genérica, raramente, se mantém incólume perante as diferentes possíveis realidades.
É enfrentado, no voto, a análise da indelegabilidade do poder de polícia por ausência de permissivo legal, discorre que a CRFB/88 possibilitando a criação de empresas públicas e sociedades de economia mista cujo objeto exclusivo seja prestação de serviços públicos de atuação típica do Estado, autoriza, consequentemente, a delegação dos meios necessários à realização do serviço público delegado, sob pena de restar inviabilizada a atuação dessas entidades na prestação de serviços públicos.
“Consectariamente, a Constituição da República, ao autorizar a criação de empresas públicas e sociedades de economia mista que tenham por objeto exclusivo a prestação de serviços públicos de atuação típica do Estado, autoriza, consequentemente, a delegação dos meios necessários à realização do serviço público delegado, sob pena de restar inviabilizada a atuação dessas entidades na prestação de serviços públicos”. (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020) (grifo nosso)
A questão da falta de estabilidade, característica do regime estatutário, dos empregados públicos das estatais como obstáculo a uma atuação livre de ingerências e pressões foi, também, analisada pelo relator. Analisa que, quando se trata de empregados públicos de empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado, tal conclusão não pode subsistir.
“Data maxima venia aos que aderem a essa posição, essa conclusão não pode subsistir, quando confrontada com o exercício da atividade de polícia por empregados públicos de empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado”. (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020)
Explica-se que nem todos os servidores públicos possuem a garantia da estabilidade, como os ocupantes de cargos em comissão e aqueles em estágio probatório, e nem por isso deixam de possuir legitimidade para praticar atos do poder de polícia. Elenca, também, jurisprudência do Tribunal que impõe à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o dever jurídico de motivar, em ato formal, a demissão de seus funcionários e analisa a possibilidade de controle administrativo e judicial sobre possíveis interferências indevidas, pois essas estatais devem obedecer aos comandos do art. 37 da CRFB/88.
Outro ponto enfrentado pelo relator orbita sobre a tese de que o poder de polícia seria indelegável a pessoas jurídicas de direito privado, em razão de seu atributo da coercibilidade. Trouxe o entendimento de que a CRFB/88 outorga, no artigo o 144, § 5º da CRFB/88, taxativamente, às entidades listadas a competência para a coação na hipótese de policiamento ostensivo para preservação da ordem pública, o que não ocorre em se tratando do exercício do poder de polícia em relação a outros valores, a exemplo da ordenação do trânsito.
Analisa, assim, não haver incompatibilidade em relação às estatais prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado e em regime de monopólio por não existirem justificativas para o afastamento desse atributo da coercibilidade, inerente ao exercício do poder de polícia, sob pena, inclusive, de esvaziamento da finalidade para a qual aquelas entidades foram criadas.
“Verifica-se que, em relação às estatais prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado e em regime de monopólio, não há razão para o afastamento do atributo da coercibilidade inerente ao exercício do poder de polícia, sob pena de esvaziamento da finalidade para a qual aquelas entidades foram criadas” (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020)
Encara, também, o relator a alegação de que a finalidade lucrativa inviabilizaria a função de polícia, pois uma pessoa jurídica de direito privado poderia, a pretexto de exercer esse poder, utilizar tal prerrogativa para auferir lucros. Contudo, conforme analisa o relator, quando se tratar de delegação a estatais prestadoras de serviços público de atuação própria do Estado as quais não exploram atividade econômica em regime de concorrência, essa preocupação ter-se-ia por afastada tendo em vista que se a entidade exerce função pública típica, a obtenção de lucro não é o seu fim principal.
“Da mesma forma, não há motivo para, in casu, afastar a delegação sob este fundamento, porquanto as estatais prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado não exploram atividade econômica em regime de concorrência. A razão é óbvia: a atuação típica do Estado não se dirige precipuamente ao lucro. É dizer, se a entidade exerce função pública típica, a obtenção de lucro não é o seu fim principal”. (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020)
Quanto à possibilidade de desvios e abusos no exercício dessa delegação do poder de polícia, o relator discorre que tal alegação, por si só, não justifica a impossibilidade da delegação, pois não é a natureza jurídica da entidade determinante para existência desses excessos. Ainda, salienta, que o foco deveria ser na elaboração mecanismos de exercício e controle dos poderes administrativos.
“Os riscos, per se, de ocorrerem abusos e desvios no exercício do poder de polícia administrativa por entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado não revela fundamento capaz de afastar o instituto da delegação daquela atividade. Por certo, excessos no exercício de poderes administrativos não são determinados pela natureza jurídica da pessoa que os exerce. Isso porque, diuturnamente, são constatados excessos perpetrados pelo próprio Estado. O enfoque deve ser outro. Os mecanismos de exercício e controle dos poderes administrativos, em especial, do poder de polícia, devem garantir, por meio de um sistema efetivo, a proteção adequada dos cidadãos frente a eventuais excessos praticados pelas pessoas investidas daqueles poderes”. (RE 633782, Relato: Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020)
Por fim, aduz o relator que para haver a delegação do poder de polícia é necessária a “edição de lei formal” e, ainda, ressalta a indispensabilidade de observância do devido processo legal quando da aplicação de qualquer sanção.
Termina a sua relatoria destacando a única fase do poder de polícia absolutamente indelegável: a ordem de polícia (edição de leis), podendo as demais fases, quais seja, o consentimento, a fiscalização e a sanção, serem delegadas as estatais que, à luz do entendimento desta Corte, possam ter um regime jurídico próximo daquele aplicável à Fazenda Pública. A tese proposta pelo relator venceu tendo o Recurso Extraordinário RE 633.782/ MG transitado em julgado no dia 03/02/2021.
CONCLUSÃO
Conforme mostrado da análise da história do poder de polícia, a evolução de seu conceito foi moldada pelos diferentes momentos em que estava inserido.
Faz-se necessário, então, uma leitura atual da possibilidade da delegação do poder de polícia a estatais prestadoras de serviços público, em regime de exclusividade, sem apego a defesas ultrapassadas que desconsideram o regime híbrido dessas.
O julgado do STF, de maneira coerente, privilegiou a sua própria jurisprudência que vem reconhecendo as peculiaridades dessas entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos. Verifica-se, também, a valorização de uma maior eficiência na prestação desses munindo as estatais de poder de polícia com o propósito de realizar os fins públicos para os quais se destinam, claro, sempre, nos termos da lei responsável pela delegação.
Defender o contrário seria um verdadeiro atraso e descompasso com a realidade que permite a prestação de diversos serviços por particulares, possibilita a prática de atos de desapropriação por concessionárias, entre outros.
REFERÊNCIAS
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_______. Lei n° 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 26 de março de 2021.
_______. Lei n° 8.987/95, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm. Acesso em: 28 de março de 2021.
_______. Lei n° 11.019, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm. Acesso em: 28 de março de 2021.
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