Descrição: Analisa o crime de desacato e a possibilidade de seu cometimento por meio de videoconferência, tendo em vista no novo procedimento permitido pela Lei 11.900/09.
O crime de desacato é previsto no artigo 331, CP, com a seguinte redação:
“Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”.
Trata-se de “crime de forma livre” que inclusive tem sido objeto de severas críticas devido à sua redação por demais aberta, dando azo a infração ao Princípio da estrita legalidade.[1]
Não obstante, doutrina e jurisprudência têm, ao longo dos anos, traçado os contornos do alcance e dos limites do referido tipo penal. Um dos aspectos mais destacados é o da necessidade, para a configuração do desacato, de que a ofensa se opere na presença física do funcionário público. Eventuais ofensas proferidas, ainda que relativas ao exercício da função, se o forem à distância, não configurarão desacato, mas tão somente crime contra a honra na forma de possível injúria qualificada (artigo 140 c/c 141, I, CP). São casos exemplares as ofensas perpetradas por meio de “carta, telefone, rádio, telegrama. televisão, e-mail, fax etc.”.[2]
Este tem sido o entendimento claramente predominante na doutrina e na jurisprudência, apontando-se como pensamento dissonante praticamente isolado Paulo José da Costa Júnior.[3] Este autor distingue o tratamento da ofensa proferida pela televisão dos demais casos para defender a tese de que nesta hipótese, excepcionalmente, operar-se-ia o crime de desacato à distância. Para o autor não é relevante que o ofendido esteja face a face com o ofensor, mas sim que possa “inteirar-se de imediato da ofensa”. Em suas palavras: “o que se faz necessário é que o funcionário seja atingido diretamente, que ouça o aleive que lhe é assacado”. [4]
Note-se que o pensamento externado por Costa Júnior, na verdade, alarga mais do que o próprio autor parece perceber o campo de aplicabilidade do crime de desacato. Ora, se o que importa não é a presença física coincidente entre autor e ofendido em dado ambiente, mas sim o fato de que o segundo “seja atingido diretamente”, ouvindo ou tomando ciência de imediato da ofensa, não seria somente viável a prática de desacato pela televisão, mas também por telefone, por MSN, ORKUT, salas de “bate – papo” da internet, rádio etc. Nessa toada, em qualquer situação em que a ofensa chegasse ao destinatário de forma imediata, configurado estaria o crime de desacato, logicamente satisfeitos seus demais requisitos típicos objetivos e subjetivos. Restariam excluídas tão somente a atuação por meio de carta, telegrama, fax e e-mail, sendo ainda que nos dois últimos casos somente se o destinatário não estivesse à frente da tela do computador ou do aparelho de fax quando da chegada da mensagem.
É neste contexto que emerge o questionamento oportunizado pela inovação processual promovida pela Lei 11.900/09, permitindo no Processo Penal o interrogatório e oitiva de testemunhas por videoconferência. O novo procedimento pode ensejar a ocorrência de situação em que o réu, advogado ou qualquer pessoa que esteja participando da audiência “on line” venha a ofender, por exemplo, o Juiz ou o Promotor com palavras de baixo calão. E neste caso surgiria a dúvida quanto à configuração ou não do crime de desacato.
Seguindo a linha de pensamento minoritária defendida por Costa Júnior, levando em conta todas as suas potencialidades e consequências, não restaria dúvida de que configurado estaria o delito de desacato. Ainda mais tendo em vista a alegação dos processualistas defensores do interrogatório “on line”, de que a audiência por videoconferência poderia ser equiparada à “presença real”. [5]
É bem verdade que a doutrina e a jurisprudência predominantes não têm imposto o rigor de que a ofensa se dê face a face. Pode haver desacato se o ofensor está a certa distância e profere gritos contra o funcionário; se estão separados por um biombo, uma divisória ou uma parede etc. [6] Mas, por outro lado, também é fato que o entendimento praticamente consolidado exige sim a presença física (real, não virtual) entre ofensor e ofendido em certo ambiente, não bastando a imediatidade da ofensa e de sua transmissão e respectivo conhecimento pelo ofendido.
Os contornos dados à aplicabilidade do crime de desacato pela doutrina e jurisprudência vão exercendo uma função de limitação do exercício do poder estatal muito valiosa para a conformação de um “Estado de Direito” que procura conter o “Estado de Polícia” que inevitavelmente carrega em seu bojo. Não se pode desprezar a lição de que “o direito penal deve programar o exercício do poder jurídico como um dique que contenha o estado de polícia, impedindo que afogue o estado de direito”. [7]
Por isso o Direito Penal deve ser conceituado como “o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito”. [8]
Observe-se que a interpretação restritiva dada pela maioria da doutrina ao menos vem minimizando a característica aberta do tipo penal de desacato, exercendo então, com certo êxito, a função de contenção do poder punitivo atribuída ao Direito Penal em uma perspectiva garantista de um Estado Constitucional Democrático de Direito.
A ampliação interpretativa possibilitada até para além do que antevisto por seu próprio idealizador, conforme demonstrado anteriormente, deita por terra todo um esforço limitador bem sucedido e consolidado, criando um perigo para a garantia de um Direito Penal limitado e limitador, que ganha ainda maiores contornos com as possibilidades práticas ensejadas pelas audiências por videoconferência instituídas pela Lei 11.900/09.
Assim sendo, considera-se o melhor entendimento aquele que tradicionalmente afasta a possibilidade de crime de desacato sem que haja a presença física real entre ofensor e ofendido. Em circunstâncias diversas restaria o recurso aos crimes contra a honra, em especial à injúria qualificada (artigo 140 c/c 141, II, CP). Dessa forma preserva-se a conquista limitadora construída ao longo dos anos, sem que a novidade da videoconferência gere uma nova oportunidade de expansão em um Direito Penal já tão inflacionado.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.