Resumo: A presente pesquisa tem por mira traçar alguns delineamentos sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) no âmbito do direito ambiental, notadamente decorrente das disposições contidas no art. 4º da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Para isso, a fim de sedimentar conceitos essenciais para a compreensão do instituto em destaque, dividiu-se o presente trabalho em 4 (quatro) capítulos, sendo que no primeiro, buscou-se conceituar a pessoa jurídica e a personalidade jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela doutrina como pela jurisprudência. No segundo capítulo, passa-se ao estudo da teoria da desconsideração jurídica, havendo a abordagem do breve histórico desta teoria, sua conceituação e espécies. O terceiro capítulo visa estudar o surgimento da disregard doctrine, no ordenamento jurídico brasileiro, cabendo aprofundamento na teoria menor da desconsideração, posto que acolhida pelo direito ambiental. Dado tais fundamentos teóricos, apresenta-se o último capítulo, questão chave para este trabalho, intitulado desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica do direito ambiental brasileiro, começando-se o estudo com os conceitos referente ao dano ambiental, cabendo aprofundamento nas espécies de responsabilidades – civil, administrativa e penal -, ao final, apresenta-se as críticas dirigidas ao instituto da desconsideração da pessoa jurídica, aplicada ao direito ambiental.
Palavras – chave: Desconsideração da personalidade jurídica. Meio Ambiente. Lei nº 9.605/1998. Teoria Menor.
Abstract: This research has the aim to draw some designs on the implementation of piercing the corporate veil (disregard doctrine) under environmental law, notably arising from the provisions of art. 4 of Law No. 9,605, of February 12, 1998. Therefore, in order to settle essential concepts for understanding Featured institute, divided this work into four (4) chapters, and at first sought If conceptualize the legal entity and the legal personality, as of concepts structured by both the doctrine and case law. The second chapter goes to the study of the theory of legal disregard, with the approach of the brief history of this theory, its concept and species. The third chapter aims to study the emergence of the disregard doctrine, the Brazilian legal system, leaving deepening the smallest theory of disregard, since welcomed by environmental law. Given such theoretical foundations, the last chapter, key question presents itself for this work, entitled piercing the corporate veil from the perspective of the Brazilian environmental law, the study of the concepts related to the environmental damage is begun, leaving deepening in species responsibilities – civil, administrative and criminal – in the end, we present the criticisms of disregard of the Institute of Legal person, applied to environmental law.
Key – words: Disregard of legal personality. Environment. Law n. 9.605 / 1998. Theory Minor.
Sumário: 1 Introdução. 2 Da pessoa jurídica. 2.1 Personalidade jurídica. 3 Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. 3.1 Breve histórico. 3.2 Conceito. 3.3. Princípio da autonomia patrimonial. 3.4 Espécies. 3.4.1 Desconsideração Direta. 3.4.2 Desconsideração Inversa. 3.4.3 Desconsideração Indireta. 3.4.4 Desconsideração Incidental. 4 Desconsideração da pessoa jurídica no direito brasileiro. 4.1 Teoria menor e teoria maior da desconsideração. 4.1.1 Maior. 4.1.2 Menor. 5. Desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica do direito ambiental brasileiro. 5.1 Princípio do Poluidor Pagador ou (predador). 5.2 Princípio da reparação integral. 5.3 Dano ambiental. 5.3.1 Teoria da responsabilidade objetiva. 5.3.2 Da responsabilidade ambiental no direito brasileiro. 5.3.2.1 Responsabilidade administrativa. 5.3.2.2 Responsabilidade civil. 5.3.2.3 Responsabilidade penal. 5.4 Críticas à desconsideração da personalidade jurídica aplicada no âmbito do direito ambiental. 6 Considerações finais.
1 INTRODUÇÃO
A proteção à biodiversidade e ao meio ambiente é necessária para a manutenção da qualidade de vida das atuais e futuras gerações, outrossim, para atingir o desenvolvimento sustentável que é um dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, conforme preceitua o artigo 2º da Lei n. 6.938/81.
De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, impõe-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Em atenção ao imperativo constitucional supra e com foco no Direito Ambiental, auxiliado, diretamente, pelo Código de Defesa do Consumidor, visa este estudo analisar como é aplicada a desconsideração da personalidade na responsabilidade ambiental, para tanto, analisa-se o artigo 4º da Lei n. 9.605/98, a influência da Lei n. 8.078/1990 na formulação do dispositivo da lei ambiental e sua interpretação à luz dos pressupostos doutrinários da disregard.
A importância deste tema reside na grande expectativa voltada aos danos ambientais que acontecem a todo instante no mundo, e a nova preocupação legislativa na defesa do meio ambiente (CFRB/1988, Lei de crimes ambientais, CDC, dentre outros institutos esparsos pelo ordenamento jurídico brasileiro) por se tratar de um bem de caráter difuso (art. 6 da CRFB/1988), devendo ser garantido às próximas gerações, por possuir importância primordial para a existência humana.
Conquanto, o ponto de partida deste trabalho está no afastamento do princípio da autonomia patrimonial, conferido às pessoas jurídicas, para, assim, responsabilizar a sociedade pela ingerência dos seus sócios, quando apurado o uso abusivo.
Ressalte-se que a autonomia da pessoa jurídica deve ser analisada não como consequência de um princípio absoluto, isto é, a completa separação entre o ente coletivo e seus integrantes. Com este desiderato e sem olvidar os princípios do direito ambiental, dentre eles o do poluidor pagador, é um mister, numa perspectiva funcional, harmonizar o valor social da empresa, espelho da livre iniciativa, com a defesa , a fim de que os bens dos sócios sejam atingidos, de forma direta, em razão de lesão ao meio ambiente.
De todo modo, como restará demonstrado, ao longo deste trabalho, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica associada à tutela do meio ambiente é um importante instrumento jurídico de proteção da biodiversidade e garantia de efetivação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da defesa do meio ambiente, eis que permite ao juiz afastar a limitação da responsabilidade dos sócios para imputar-lhes os efeitos do dano ambiental.
Assim, a técnica principal de estudo foi a pesquisa bibliográfica em conjunto com a jurisprudência pátria, explicando-se os conceitos, alcance e limitação do tema.
Esse trabalho foi dividido, didaticamente, em quatro capítulos, de modo a facilitar o entendimento sobre o assunto em análise.
No primeiro capítulo serão tratadas as considerações sobre a personalidade jurídica em si, sua criação e suas principais características, principalmente quanto a questão da responsabilidade patrimonial, esclarecendo sua necessidade e a relevância de tal tema.
Por sua vez, no segundo capítulo, buscou-se estudar a origem histórica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, assim como a aplicabilidade e finalidade do instituto.
O terceiro capítulo, introduziu-se o estudo da teoria da desconsideração jurídica no Direito Brasileiro. Neste ponto, trouxe à baila as referências legislativas do instituto no ordenamento pátrio.
O último capítulo teve por mira tratar das nuances da desconsideração da pessoa jurídica no direito ambiental.
Alfim, a presente monografia se encerra com as considerações finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre desconsideração mediante o Dano Ambiental.
2 DA PESSOA JURÍDICA
Antes de adentrar especificamente no instituto da desconsideração da personalidade jurídica, faz-se necessário conceituar a pessoa jurídica e a personalidade jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela legislação como pela doutrina.
Destarte, o indivíduo pela impossibilidade de exercer, realizar, por si só, certas atividades e atingir determinadas finalidades que ultrapassam suas forças e limites, se une a outras pessoas, formando grupo com desiderato próprio. A esta entidade o ordenamento jurídico brasileiro confere autonomia, dotando-as de estrutura própria e personalidade jurídica diferente daqueles que a instituíram.
Denota-se, desse modo, que a pessoa jurídica é a “união de pessoas naturais ou de pessoas naturais e patrimônios destinados a um fim específico, no exemplo das fundações”, como bem anotam os doutrinadores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2007, p. 260).
Esse também é o entendimento de DINIZ (2014, p. 270) para quem a “pessoa jurídica é a unicidade de pessoas naturais ou de patrimônio, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações.”.
Por isso, bem assinala Clóvis Beviláqua (1953, p. 169) que “a pessoa jurídica, como sujeito de direito, do mesmo modo que no ponto de vista sociológico, é uma realidade social, uma formação orgânica investida de direitos pela ordem jurídica, a fim de realizar certos fins humanos.”.
Observe-se que não é qualquer reunião de pessoas ou qualquer destinação de patrimônio que caracteriza a pessoa jurídica. É mister que a além do fato externo da sua aglomeração, estabeleça-se uma vinculação jurídica específica, que lhe imprima uma unidade orgânica.[1]
Não é por outro motivo que Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2007, p. 264), dividem a pessoa jurídica em intersubjetiva ou patrimonial. Aquela é constituída pela união de duas ou mais pessoas com o escopo de formar uma entidade autônoma e independente. Esta, por sua vez, corresponde à afetação de um patrimônio destinado a um fim específico.
A partir dessas premissas é fácil extrair os elementos caracterizadores da pessoa jurídica, da seguinte forma: a) a vontade humana que lhe dá origem; b) a organização de pessoas ou destinação de um patrimônio afetado a um fim específico; c) a licitude de seus propósitos; d) a capacidade jurídica reconhecida pela norma jurídica.
Em reforço com as ponderações apresentadas até o momento, oportuna a lição de DINIZ (2002. p. 65):
“A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente de seus membros, pois efetua negócios sem qualquer ligação com a vontade deles; além disso, se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais que a compõem, se o patrimônio da sociedade não se identifica com os dos sócios, fácil será lesar credores, mediante abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade, tendo-se em vista que os bens particulares dos sócios não podem ser executados antes dos bens sociais, havendo dívida na sociedade. Por isso, o Código Civil pretende que, quando a pessoa jurídica se desviar dos fins determinantes de sua constituição, ou quando houver confusão patrimonial, em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, esteja autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes de sócios que dela se valeram como escudo sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica”.
Ao lado disso, há que se assinalar que segundo o art. 45 do Código Civil (Lei n. 10.406/2002), o surgimento da pessoa jurídica de direito privado se dá com a inscrição do ato constitutivo no registro competente. Após tal providência, a pessoa jurídica adquire personalidade, logo, também possui capacidade e legitimidade para praticar atos jurídicos (art. 1022 do CC).
Nesse sedimento, pode-se dizer que a pessoa jurídica é uma realidade autônoma, detentora de direitos e obrigações, independente das pessoas que a integram, com os quais não detêm nenhum vínculo. Nesta senda, impõe lançar mão das lições de Sílvio Rodrigues (2003, p.86), em especial quando leciona que pessoas jurídicas “são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”.
Em razão da distinção supra, se desfralda como flâmula orientadora o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e os bens da empresa, o qual tem como finalidade precípua, traçar linhas limitadoras no que concerne à responsabilidade do sócio, resguardando, o patrimônio pessoal de eventuais intempéries.
Sobre a matéria em questão, colaciona-se, ainda, o seguinte julgado:
“Agravo de instrumento. Civil. Cumprimento de sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Desvio de finalidade ou confusão patrimonial. comprovação. 1. A desconsideração da personalidade jurídica é medida de caráter excepcional, cuja aplicação somente é possível quando o desvio de finalidade, caracterizado pelo uso abusivo da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ou a confusão patrimonial, demonstrada pela inexistência de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os dos seus integrantes. 2. Havendo provas nos autos da alegada confusão patrimonial entre as empresas integrantes do mesmo grupo econômico, aplica-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 3. Deu-se provimento parcial ao agravo de instrumento”. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal/Acórdão n.873924, 20150020015164AGI, Relator: Sérgio Rocha, 4ª Turma Cível, Data de Julgamento: 10/06/2015, Publicado no DJE: 25/06/2015. Pág.: 193) – Sem grifos no original.
Cabe avultar que a limitação de responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é decorrente de sua personalidade, revelando-se como uma de suas maiores vantagens, sendo, como dito alhures, detentora de direitos e obrigações, independente das pessoas que a integram.
2.1 Personalidade jurídica
Personalidade jurídica está intimamente ligada à ideia de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Esta aptidão é hodiernamente reconhecida a todo ser humano.
No entanto, não se diz que somente o homem, individualmente considerado, é dotado de personalidade, o direito positivo brasileiro reconhece esta aptidão às pessoas jurídicas, sejam os que se constituem de agrupamentos de indivíduos que se associam para a realização de uma finalidade econômica ou social, sejam os que se formam mediante a destinação de um patrimônio para um fim determinado.
Como bem anotam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2007, p. 283), a “decorrência natural do reconhecimento de personalidade jurídica à pessoa jurídica é o seu reconhecimento como sujeito de direito pela ordem jurídica, passando a ter a suscetibilidade de titularizar relações jurídicas como as próprias pessoas humanas.”
Ademais, é pressuposto indispensável à incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a existência de sujeito de direito, pelo fato de ser a personalidade um atributo conferido pelo direito pátrio.
3 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
3.1 Breve histórico
A pessoa jurídica caracteriza-se como um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos com personalidade jurídica. O instituto da pessoa jurídica foi criado para dar autonomia patrimonial e, também, limitação de responsabilidade à comunhão de interesses em relação às pessoas que lhe deram origem, porém, essa função pode se desviar da finalidade para a qual foi instituída, alcançando, assim, fins ilícitos ou resultados injustos.
Quando resta caracterizado que o instituto da pessoa jurídica se contrapõe ao ordenamento jurídico, torna-se, sem dúvida, necessário proteger o instituto.
Razão pela qual, no século XIX, os Tribunais, cientes da inversão de finalidades a que as pessoas jurídicas estavam se prestando, principalmente os países da Commun Law, iniciaram uma batalha contra esse tipo de postura desconsiderando a personalidade jurídica e atingindo pessoalmente os sócios da empresa.
Registros doutrinários informam que o precedente jurisprudencial precursor da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ocorreu no ano de 1809, nos Estados Unidos da América, no caso Bank of United States vs Deveaux, quando o magistrado desconsiderou a personalidade jurídica da devedora para atingir o patrimônio de seus sócios.
Contudo, o leading case que teria atribuído repercussão mundial à teoria ocorreu no ano de 1877 na Inglaterra (Salomon vs Salomon & Company), o qual tratava de uma S/A cujas ações pertenciam unicamente aos membros de uma mesma família.
No caso em apreço, o comerciante Aaron Salomon detinha 2.001 das 2.007 ações da empresa Salomon & Co. Ltda, enquanto as seis ações pertenciam a sua esposa e a seus cinco filhos. Como forma de integralizar o capital correspondente a sua participação acionária, Aaron Salomon cedeu seu fundo de comércio particular, desta forma, passou a ser credor da sociedade pela diferença, instituindo, ainda, uma garantia real a seu favor.
Na falência da referida sociedade, essa manobra permitiu ao sócio majoritário, Aaron Salomon, primeiramente, o direito de não honrar os débitos sociais, já que dispunha de prerrogativa legal da limitação de sua responsabilidade, e, posteriormente, de executar seu crédito preferencialmente aos demais credores sociais. Tal estratagema gerou um litígio entre Aaron Salomon e a massa falida de Salomon & Co.Ltda.
Nesse caso, tanto a High Court quanto Court of Appeal (em sede recursal) deram ganho de causa à sociedade condenando o sócio, Salomon, no pagamento de uma determinada quantia, não pelo fato de o comerciante deter o controle acionário, mas sim sob a fundamentação de que esse sócio teria usado a sociedade de modo a confundir sua personalidade com o da pessoa jurídica, a fim de prevalecer seu crédito em detrimento dos demais credores.
Em que pese a paternidade referente ao pioneirismo da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica possa ser disputada entre o país da Inglaterra e EUA, a melhor doutrina aponta de que seu desenvolvimento, deu-se pelos tribunais norte-americano.
Hodiernamente muitos países já acataram a indigitada teoria, podendo-se falar em abus de la notion de personalitá sociale, no direito francês; “superamento della personalitá giuridica”, na Itália; “Durchgriff derr juristichen person”, no ordenamento alemão; desestimácion de la personalidad, no direito argentino. Nos países da Commun Law é conhecida como disregard of legal entity” ou mesmo the liffiting of corporate viel.
De qualquer forma, o desenvolvimento no direito alienígena da teoria da desconsideração da personalidade jurídica[2] ganhou força no direito brasileiro graças ao estudioso Rubens Requião, mediante uma palestra realizada na Universidade Federal do Paraná.
3.2 Conceito
Uma das principais vantagens da pessoa jurídica é a sua autonomia patrimonial, onde não se confunde os bens dos sócios com os da sociedade, possibilitando, assim, que a pessoa jurídica criada seja a detentora de direitos e obrigações.
Todavia, em razão do instituto da autonomia patrimonial, a pessoa jurídica pode ser utilizada como instrumento para a realização de fraude contra credores ou mesmo abuso de direito.
Conquanto, em determinadas situações, ao se prestigiar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelas pessoas físicas que estão por detrás da empresa, permanece oculto, resguardado pela ilicitude da conduta da sociedade empresária.
Diante de tal quadro, a doutrina e a jurisprudência criaram então a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando considerar ineficaz, episodicamente, a estrutura da pessoa jurídica utilizada de maneira desvirtuada.[3]
A respeito do tema, dignas de ponderação são as assertivas do jurista Massami Uyeda (Resp: 1169175/DF, 2011) que ao definir a desconsideração da pessoa jurídica, dispõe que:
“A desconsideração da personalidade jurídica é um mecanismo do qual se vale o ordenamento para, em situações absolutamente excepcionais, desencobrir o manto protetivo da autonomia, propiciando ao credor buscar a satisfação de seu direito junto às pessoas físicas que compõem a sociedade, mais especificamente, seus sócios e/ou administradores.”
Nessa mesma linha, Nancy Andrigni (Resp. n. 970.635) em suas reflexões sobre o instituto, assevera que:
“A desconsideração da personalidade jurídica pode ser entendida como a superação temporária da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o intuito de, mediante a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores, possibilitar o adimplemento de dívidas assumidas pela sociedade.”
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica tem o propósito de garantir que as obrigações assumidas pela pessoa jurídica se estenda aos seus sócios, obstando, com isso, que os mesmos se valham da separação patrimonial em detrimento de terceiros.
Por sua vez, Fábio Ulhoa (2011, p. 55-56), ensina com proficiência que o objetivo da “teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disrregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica.”. Em outras palavras, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.
Como bem esclarece Maria Helena Diniz (2014, p. 348):
“a doutrina da desconsideração da pessoa jurídica visa impedir a fraude contra credores, levando o véu corporativo, desconsiderando a personalidade jurídica para determinados efeitos, portanto, para outros fins permanecerá incólume. Com isso alavancar-se-ão pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos, pois a personalidade jurídica não pode ser um tabu que entrave a ação do órgão judicante.”
Em meio a esses argumentos, Fabio Ulhoa (2011, p. 58) verbera que:
“A teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam”.
Não de deve, contudo, perder de mira que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com a terminologia despersonalização, ao passo que despersonalizar quer dizer anular definitivamente a personalidade, em contrapartida, a disregard doctrine visa retirar a eficácia da personalidade, de forma temporária e tópica, perdurando, até que os credores se satisfaçam no patrimônio pessoal dos sócios infratores.
Nesse sentido, pontifica Pablo Stolze e Pamplona (2012, p. 278) que a expressão “despersonalização, traduz a própria extinção da personalidade jurídica e o termo desconsideração se refere apenas ao seu superamento episódico, em função de fraude, abuso ou desvio de finalidade.”.
Palmilhando essa mesma trilha, Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 250) expressa que:
“Despersonalização acarreta a dissolução da pessoa jurídica ou a cassação da autorização para seu funcionamento, enquanto desconsideração da pessoa jurídica subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão só para o caso concreto. “
Por isso, vale registrar que, tecnicamente, pelo fato de a desconsideração ser uma sanção que se aplica a um comportamento abusivo, ela é decretada, e não declarada.
3.3 Princípio da autonomia patrimonial
Pelo instituo da autonomia patrimonial, a pessoa jurídica possui patrimônio e personalidade distinta de seus sócios, possibilitando sua responsabilização pelas obrigações contraídas.
Sobre esse particular, o doutrinador Fábio Ulhoa disserta que o princípio da autonomia patrimonial é o alicerce do direito societário. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações. Nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais.
De outra parte, Carlos Roberto (2011, p. 249) aduz que o “princípio da autonomia patrimonial possibilita que sociedades empresárias sejam utilizadas como instrumento para a prática de fraudes e abusos de direito contra credores, acarretando-lhes prejuízos.”
Afirma ainda o renomado doutrinador que pessoas inescrupulosas têm se aproveitado desse princípio, com a intenção de se locupletarem em detrimento de terceiros, utilizando a pessoa jurídica como uma espécie de “capa” ou “véu” para proteger os seus negócios escusos.
Por certo, a autonomia patrimonial como instrumento destinado a resguardar a origem e destinação da ficção traduzida na pessoa jurídica – que é viabilizar e estimular as atividades produtivas com separação da pessoa dos sócios da empresa – não é absoluta, podendo ser desconsiderada quando detectado que a empresa fora conduzida de forma abusiva – não podendo essa anomalia ser presumida – traduzindo desvio de finalidade da personalidade jurídica, de forma a se alcançar o patrimônio dos sócios como meio para a satisfação das obrigações contraídas em seu nome.
3.4 Espécies
As espécies de desconsideração da personalidade jurídica têm sido definidas pela jurisprudência e doutrina, quando várias questões foram chanceladas pelo Poder Judiciário.
3.4.1 Desconsideração Direta
A chamada desconsideração direta ocorre quando a fraude for de plano aferida, de forma que o Poder Judiciário desconsidera a personalidade jurídica, a fim de permitir que o patrimônio pessoal daquele sócio que praticou o ato lesivo responda pelo adimplemento das obrigações formalmente assumidas pelo ente coletivo.
Ademais, mesmo assente a possibilidade em se alcançar diretamente o patrimônio do sócio, não se afigura aconselhável o ajuizamento de ação apenas em face deste, sendo viável a inclusão da pessoa jurídica, sob a forma de litisconsórcio passivo.
Sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já teve oportunidade de se manifestar, in verbis:
“PROCESSO CIVIL. PESSOA JURÍDICA. DESPERSONALIZAÇÃO. A despersonalização da pessoa jurídica é efeito da ação contra ela proposta; o credor não pode, previamente, despersonalizá-la, endereçando a ação contra os sócios. Recurso especial não conhecido.” (STJ – REsp: 282266 RJ 2000/0104223-8, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 18/04/2002, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 05.08.2002 p. 328)
Ao que se vê, o Tribunal da Cidadania, considera parte ilegítima o endereçamento da ação diretamente sobre a pessoa do sócio, havendo a necessidade da pessoa jurídica integralizar o polo passivo da demanda.
3.4.2 Desconsideração Inversa
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica permite de certa forma, a execução de bens particulares dos sócios por dívidas da empresa. Entretanto, a jurisprudência e a doutrina brasileira admitem que se faça o caminho inverso, em que se permite, excepcionalmente, que a empresa responda por eventuais obrigações pessoais de seus sócios. Esse mecanismo processual, denomina-se desconsideração da personalidade jurídica inversa.
Nas palavras do renomado escritor, Fábio Ulhoa (2011, p.65), “desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.”.
Um exemplo seria o sócio, em sua esfera individual, pratica um ato fraudulento, causando prejuízo a terceiro, e a sociedade responde com seu patrimônio. Outro exemplo seria a hipótese em que um dos cônjuges, a fim de fraudar o regime de bens do casamento, adquire um bem para si mesmo, mas em nome da pessoa jurídica. O cônjuge fraudado poderá exigir da pessoa jurídica a entrega do bem ou o seu equivalente em dinheiro, se não mais existir.
Percebe-se, portanto, que a fraude que a desconsideração inversa coíbe é, basicamente, o desvio de bens por parte do sócio-devedor que transfere seu patrimônio para a pessoa jurídica, mas continua a usufruí-lo, apesar de não ser de sua propriedade, mas do ente jurídico, o que impossibilita que seus credores, em princípio, possam responsabilizá-lo executando tais bens.
Nesse sentido, mister se faz transcreve o enunciado nº 283 do Conselho da Justiça Federal (CJF): "É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo à terceiros."
A jurisprudência admite ainda que para a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, devem estar presentes os pressupostos relacionados com o abuso de personalidade jurídica – desvio de finalidade ou confusão patrimonial – (art. 50, CC), senão vejamos:
“Pessoas físicas também tentam usar pessoas jurídicas para escapar de suas obrigações. No REsp 948.117, um devedor se valeu de empresa de sua propriedade para evitar execução. Para a relatora, ministra Nancy Andrighi, seria evidente a confusão patrimonial e aplicável a “desconsideração inversa”. A ministra ressalvou que esse tipo de medida é excepcional, exigindo que se atendam os requisitos do artigo 50 do CC”
3.4.3 Desconsideração Indireta
Esta modalidade de disregard ocorre nos casos de sociedades controladoras, controladas e coligadas em que uma delas se vale da condição dominante para fraudar seus credores. Esse tipo de desconsideração se aplica a qualquer das empresas que se encontre inserida no mesmo grupo econômico, a fim de alcançar a efetiva fraudadora que está sendo encobertada pelas coligadas.
De todo modo, a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem está por trás dela não se afigura suficiente, já que existirá outra ou outras integrantes das constelações societárias que também têm por intuito encobrir algum fraudador.
Nesse diapasão, percebe-se que a jurisprudência dos tribunais superiores tem adotado tal posicionamento, senão vejamos por meio do aresto abaixo colacionado:
“DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURIDICA. PRESSUPOSTOS. EMBARGOS DE DEVEDOR. E POSSIVEL DESCONSIDERAR A PESSOA JURIDICA USADA PARA FRAUDAR CREDORES.” (STJ – REsp: 86502 SP 1996/0004759-6, Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento: 21/05/1996, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 26.08.1996 p. 29693)
Observe-se que o acórdão embargado admitiu a aplicação da doutrina do “disregard of legal entily, para impedir a fraude contra credores.
3.4.4 Desconsideração Incidental
A desconsideração da personalidade jurídica incidental, nada mais é, do que a possibilidade de ser decretada a desconsideração no mesmo processo, sem que seja deflagrada uma demanda autônoma para tanto.
O Código Civil positiva a teoria da desconsideração da personalidade jurídica na modalidade incidental, em sua parte geral, na regra inserta do art. 50, ao indicar que o pedido pode ser formulado pela parte ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo – só há parte ou atuação do Ministério Público como “custus legis” quando pendente o processo.
Em razão disso, a jurisprudência tem chancelado o posicionamento de que a aplicação da disregard dispensa a propositura de ação autônoma para tal, desde que verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja terceiros envolvidos, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros.
No sentido acima esposado, a jurisprudência pátria precisou que:
"FALÊNCIA – EXTENSÃO DOS SEUS EFEITOS ÀS EMPRESAS COLIGADAS – TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – POSSIBILIDADE – REQUERIMENTO – SÍNDICO – DESNECESSIDADE – AÇÃO AUTÔNOMA – PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO DESTA CORTE. I – O síndico da massa falida, respaldado pela Lei de Falências e pela Lei n.º 6.024/74, pode pedir ao juiz, com base na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que estenda os efeitos da falência às sociedades do mesmo grupo, sempre que houver evidências de sua utilização com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. II – A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses. Recurso especial provido". (REsp 228357, de São Paulo, Rel. Min. Castro Filho, j. em 09.12.2003).
"PENHORA DE BEM PERTENCENTE À SOCIEDADE COMERCIAL APONTADA COMO ESTRANHA À RELAÇÃO PROCESSUAL – EXECUTADO POSSUIDOR DE 97% (NOVENTA E SETE PORCENTO) DAS COTAS SOCIAIS – INDÍCIOS DE FRAUDE – USO INDEVIDO DO ENTE SOCIETÁRIO PARA EVITAR CUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL – APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – DECISÃO MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO.
Verificada a dissipação do patrimônio pertencente à empresa executada, tendo um dos seus sócios adquirido 97% (noventa e sete por cento) das cotas sociais de outra empresa do mesmo ramo, tem-se a presença de fortes indícios do uso indevido da pessoa jurídica, motivada pelo interesse de se ver eximida do pagamento do valor executado. Assim, possível a constrição dos bens pertencentes à nova sociedade, com respaldo da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica"(Agravo de instrumento n. , de Santo Amaro da Imperatriz. Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento).
"MANDADO DE SEGURANÇA. FALÊNCIA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA MANTIDA. PRECEDENTE DO STJ. Havendo fortes indícios da ligação entre as empresas, a ordem de arrecadação dos bens para que sejam submetidos ao regime falencial não é ilegal, posto que a segunda empresa serve de fachada e a extensão dos efeitos da falência é decorrência desta constatação. Nestes casos, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Segurança denegada". (TJRS. MS N. 70009038506, Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, j. 25.08.2004).
4 DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO
O postulado disregard legal entity, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro no final dos anos 1960, numa conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, pelo nobre Doutrinador Rubens Requião (1977:67/86), e posteriormente publicada na Revista dos Tribunais com o nome de “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”. A tese apresentada visava superar os conflitos entre questões éticas, que norteavam a autonomia patrimonial.
KOURY (1995, pg. 139) esclarece:
“A partir do trabalho de Rubens Requião, que teve o mérito de apresentar a sua formulação sistemática entre nós, a Disregard Doctrine passou a ser objeto da apreciação de vários doutrinadores, juízes e tribunais, além de ter sido diretamente consagrada pelo legislador em alguns casos.”
Conquanto, embora Rubens Requião tenha sido o precursor do estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no país, referido instituto somente veio a ganhar efetividade no direito pátrio no ano de 1990, com o advento da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), ao declarar em seu art. 28 que:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (…)
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
Todavia, essa previsão legislativa trouxe controvérsias na seara doutrinária. A respeito do tema, interpreta FIUZA (2014, p. 189).
“Este artigo possui dois problemas sérios. Em primeiro lugar, mistura casos de genuína aplicação da teoria a casos em que não se aplicaria, por terem outra solução legal, em que os sócios já são penalizados pessoalmente. Em segundo lugar, há um grande exagero no último período do caput, que impõe aos sócios as penalidades do insucesso gerado pela má administração. Ocorre que foi exatamente para proteger os sócios de eventuais problemas externos e mesmo de uma eventual má administração, que surgiu a responsabilidade limitada. É também exatamente por isso, que se faz a distinção entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios. O Código do Consumidor, em sua ânsia protetiva, se olvidou de tudo isso. Não se deve confundir má administração com má-fé.”
Assim, percebe-se nitidamente o descontentamento e as severas críticas por parte da doutrina quanto à falta de probidade técnica do dispositivo legal consumerista, pelo fato das previsões da redação do caput do art. 28 do CDC não ensejarem hipóteses que preenchem os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, na verdade apenas configuram hipótese de responsabilização pessoal dos sócios.
Outro diploma normativo que faz referência à doutrina da desconsideração da personalidade jurídica é o art. 18 da Lei n. 8.884/1994 – Lei Antitruste, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
A terceira referência à teoria encontra-se no art. 4º, da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, ou seja, a Lei de Crimes Ambientais, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e outras providências.
Nesse particular, vale a pena invocar a preciosa lição de Fábio Ulhoa (2011, p. 73-74).
“Mas não se pode, também, interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria da desconsideração. Quer dizer, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes. Se determinada sociedade empresária provocar sério dano ambiental, mas, para tentar escapar à responsabilidade, os seus controladores constituírem nova sociedade, com sede, recursos e pessoal diversos, na qual passem a concentrar seus esforços e investimentos, deixando a primeira minguar paulatinamente, será possível, por meio da desconsideração das autonomias patrimoniais, a execução do crédito ressarcitório no patrimônio das duas sociedades”.
Por fim, chega-se ao Código Civil, Lei n.º 10406/02, que declarou em seu artigo 50 uma norma para nortear a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Senão vejamos:
“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Nota-se que apenas com ao advento do artigo 50 do Código Civil ao ordenamento jurídico brasileiro, ficou concreta a positivação de uma norma que regulamentasse a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, utilizando-se a tecnicidade.
Novamente, vale-se dos ensinamentos ditado pelo renomado Fabio Ulhoa (2011, pg. 74-75), na qual, em obra dedicada ao tema, pondera com acerto que:
“A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis que se reportam ao tema (Código Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo de credor. Por outro lado, nas situações abrangidas pelo art. 50 do CC e pelos dispositivos que fazem referência à desconsideração, não pode o juiz afastar-se da formulação doutrinária da teoria, isto é, não pode desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores sociais. A melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre a desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica”.
A partir dessa noção fundamental, lícito será concluir que embora se encontre albergada no direito pátrio – artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), artigo 4º da Lei n. 9.605/98, artigo 50 do Código Civil (CC), dentre outros dispositivo legal -, a disregard doctrine deve ser aplicada com cautela, diante da previsão de autonomia e existência de patrimônios diferentes entre as pessoas físicas e as pessoas jurídicas.
4.1 Teoria maior e teoria menor da desconsideração
Existe no ordenamento jurídico brasileiro duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica, com formulações completamente distintas, quanto a hipóteses a serem aplicadas. São elas, a teoria maior (em suas vertentes objetiva e subjetiva) e a teoria menor.
4.1.1 Maior
A teoria maior[4], regra geral no sistema jurídico brasileiro, condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas a comprovação de fraude e do abuso por parte dos sócios da empresa.
A teoria “maior”, por sua vez, divide-se em objetiva e subjetiva. Segundo a concepção objetiva, o pressuposto da desconsideração se encontra, precipuamente, na confusão patrimonial, basta para tanto, a constatação de existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade e vice-versa.
Pode-se dizer que haverá confusão patrimonial quando não for possível estabelecer claramente o que é da sociedade e o que é dos sócios.
Exemplo poderá aclarar o conceito. Suponha-se que pelo exame de escrituração contábil ou das contas bancárias de uma empresa, apurar-se que a sociedade paga dívidas do sócio ou que este recebe créditos dela, ou o inverso, ou constatar-se a existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade, e vice-versa, comprovada estará a referida confusão.
Nessa linha, Fábio Ulhoa (2011, p. 64) em sua reflexão sobre o tema, aduz que a teoria maior objetiva tutela os interesses de credores ou terceiros lesados pelo uso fraudulento do princípio da autonomia patrimonial, mas “ela não exaure as hipóteses em que cabe a desconsideração, na medida em que nem todas as fraudes se traduzem em confusão patrimonial.”.
Para a teoria “maior” subjetiva os elementos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica são a fraude e o abuso de direito.
Nesse sentido, Fábio Ulhoa (2011, p. 64) se posiciona:
“Entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como o critério para circunscrever moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude”.
Nessa linha de intelecção, verificado o desvio de finalidade, caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, teria lugar a teoria maior subjetiva da desconsideração, ao passo que, caracterizada a confusão patrimonial, evidenciada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios, aplicável seria a teoria maior objetiva da desconsideração. Nesse sentido são as lições da Ministra Nancy Andrighi ( vide, STJ – REsp. n° 970.635 – SP).
No mesmo sentido é o enunciado 146 do Conselho da Justiça Federal (CJF): “Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial)”.
4.1.2 Menor
De outra parte, de acordo com a teoria menor[5], o simples prejuízo do credor é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica. Esta teoria não se preocupa em verificar se houve ou não a utilização fraudulenta do princípio da autonomia patrimonial, nem se houve ou não abuso da personalidade. Em outros termos, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isto basta para responsabilizá-lo por obrigações da empresa.
Pode-se dizer que os contornos da teoria menor foram delineados em aresto proferido pelo Tribunal da Cidadania (STJ) em meados de 2004 da seguinte forma:
“(…) A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência deste dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (STJ, REsp 279.273, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T, DJ 29/03/04). – sem grifos no original.
Ao que se vê, a teoria menor da desconsideração foi acolhida em nosso ordenamento jurídico de maneira excepcional como pode ser visto no Direito Ambiental[6] – artigo 4° da lei n° 9605/98, que trata de crimes ambientais -, na qual a desconsideração da personalidade jurídica incide com a simples prova de insolvência da pessoa jurídica. Como pontifica Frederico Amado (2014, p. 586):
“Em que pese se tratar de lei predominantemente criminal, cuida-se de uma hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, em que se poderá declarar a ineficácia da personalidade notadamente nas ações indenizatórias por danos ambientais. (…) é uma modalidade de disregard of legal entity norteada pela Teoria Menor, não se exigindo abuso da personalidade jurídica, bastando, por exemplo, a simples impossibilidade de a pessoa jurídica arcar com a reparação ambiental, podendo atingir os sócios e os gestores do ente de existência moral, a exemplo do que ocorre no Código de Defesa do Consumidor”.
Do mesmo modo, no Direito do Consumidor, a exemplo do Direito Ambiental, há de se observar o acolhimento da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica nos termos do § 5° do artigo 28, da Lei n. 8.078/1990.
Dentro desta perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Resp. n° 737.000/MG, assentou o entendimento de que a inatividade da pessoa jurídica decorrente de sua má administração é uma circunstância apta a justificar a desconsideração da personalidade jurídica. Conforme o STJ, no contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, §5°, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação do disregard doctrine, bastando, tão somente, a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária.
5 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOB A ÓTICA DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO
Com base nas premissas teóricas acima declinadas, proceder-se-á a análise do instituto da desconsideração da pessoa jurídica na lei ambiental.
Destarte, o caput do art. 225 da Constituição Federal de 1988, dispõe que a preservação e a defesa do meio ambiente são deveres do Estado e da coletividade como um todo, logo, o descumprimento das normas ambientais acarreta sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
De todo modo, no âmbito do direito ambiental, a Lei 9.605/1998, albergou a possibilidade da utilização da desconsideração da pessoa jurídica, quando sua personalidade passar a ser um óbice para o ressarcimento do prejuízo causado ao meio-ambiente.
Nesse sentido, é a lição do art. 4º da referida lei, a qual dispõe que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”.
Como se vê, a disregard of legal entity, no direito ambiental, para que seja concretizada, independe da existência de culpa, outrossim, da atuação com excesso de poderes por parte daqueles que compõe a sociedade, bastando para tanto, a verificação de insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para reparar ou compensar os prejuízos por ela causados à qualidade do meio ambiente.
Da mesma maneira, o indigitado dispositivo, visa por meio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, estender a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente às pessoas físicas mandatárias das pessoas jurídicas, causadoras do respectivo dano.
Desse modo, aquele que se esconde por detrás de uma pessoa jurídica, objetivando praticar ato ilícito contra a qualidade do meio ambiente natural, artificial, cultural e do obreiro, deverá responder na esfera administrativa, cível e criminal, mediante a aplicação do instituto da disregard of legal entity.
Neste sentido, foram proferidas as seguintes decisões jurisprudenciais:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Execução de sentença – Dano ao meio ambiente: "uma vez praticados atos que danificaram o meio ambiente por pessoa jurídica e na impossibilidade de obter recursos para satisfação de sua condenação, nada mais justo que se aplique a desconsideração da pessoa jurídica, arcando seus sócios também com o prejuízo" – Recurso não provido. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. 6ª Câmara de Direito Público. Agravo de Instrumento nº 139.758-5 – Relator: Vallim Bellocchi – julg,. em 13.03.00) – sem grifos no original.”
“Execução fiscal por multa ambiental – desconsideração da pessoa jurídica – cabimento – desrespeito à legislação ambiental – todos os sócios administradores que, à frente da cooperativa, causaram danos ao meio ambiente, devem ser responsabilizados – direito indisponível ao meio ambiente sadio titularizado pelas presentes e futuras gerações – responsabilidade solidária caracterizada – agravo provido. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento 8432505600, Relator (a): Renato Nalini, Comarca: Promissão, Data de registro: 26/03/2009) – sem grifos no original.”
Em vista dos argumentos apresentados, conclui-se que a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica[7] na seara ambiental, visa inibir a fraude de pessoas que utilizam as regras jurídicas da sociedade para fugir de suas responsabilidades ou mesmo agir fraudulentamente.
5.1. Princípio do Poluidor Pagador ou (predador)
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) agasalhou em seu art. 4º, inciso VII, o princípio do poluidor-pagador, dispondo que um de seus fins é “a imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados.”.
Em reforço a isso, o § 1.º, do artigo 14, do mesmo estatuto, prevê que “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
Conquanto, a doutrina de Paulo Affonso (2014, p. 91), assenta que o princípio poluidor-pagador “é aquele que obriga o poluidor a pagar a poluição que pode ser causada ou que já foi causada.
Note-se que em decorrência deste princípio, o degradador é obrigado, independentemente da existência de culpa, a reparar todos os danos que cause ao meio ambiente, sendo prescindível perquirir acerca do elemento subjetivo, o que, consequentemente, torna irrelevante eventual boa ou má-fé para fins de acertamento da natureza, conteúdo e extensão dos deveres de restauração do status quo ante ecológico e de indenização.[8]
Como diz Édis Milaré (2014, p. 270) “o princípio não objetiva, por certo, tolerar a poluição mediante um preço, nem se limita apenas a compensar os danos causados, mas sim, precisamente, evitar o dano ao meio ambiente.”.
Vale frisar que o princípio poluidor pagador não deve ser interpretado de forma que haja abertura incondicional à poluição, como bem diz Frederico Amado (2014, p. 94), “desde que se pague (não é pagador-poluidor), só podendo o poluidor degradar o meio ambiente dentro dos limites de tolerância previstos na legislação ambiental, após licenciado.”.
Advirta-se, todavia, que deve o poluidor responder pelos custos sociais da degradação causada por sua atividade impactante, devendo-se agregar esse valor no custo produtivo da atividade, para evitar que se privatizem os lucros e se socializem os prejuízos.[9]
5.2. Princípio da reparação integral
Paulo Affonso aponta ainda, o princípio da reparação integral que prega a necessidade de restauração ou compensação dos danos ambientais, sendo objetiva esta responsabilidade civil no Brasil (artigo 14, § 1.º, da Lei 6.938/1981).
Perfilha o mesmo entendimento o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região:
“Ambiental. Dano ambiental. Ação civil pública. Área degradada. Atribuições do IBAMA. Legitimidade para o ajuizamento da ação coletiva. Desmatamento. Regeneração natural e recuperação. Princípio da reparação integral. Proteção especial do meio ambiente. Art. 225 da Constituição. 1. O art. 2.º da Lei n. 7.735/1989 atribuiu ao IBAMA a preservação e conservação do meio ambiente, estando a autarquia federal legitimada para, no exercício da função que lhe cabe, o ajuizamento de ação coletiva na defesa do meio ambiente, tal como prevê os art. 1.º, I e 3.º da Lei 7.347/1985. 2. Comprovado o dano ambiental e o ato ilícito, cumpre ao causador o dever de repará-lo. 3. O meio ambiente goza de proteção especial, prevista no art. 225 da Constituição. Daí exsurge o princípio da reparação integral em caso de degradação. 4. A regeneração natural da reserva legal é um procedimento demorado e tem sentido apenas se se tratar de pequenos espaços. Se o tamanho da área desmatada não é pequeno (375 hectares no caso), a reparação deve se dar por meio da recuperação ambiental” (AC 2006.41.00.002874-8, de 20.07.2011)..
A jurisprudência do STJ vem aplicando o Princípio da Reparação Integral nas ações civis públicas que objetivam a reparação do dano ambiental (v.g. REsp 625.249, de 15.08.2006), a fim de impedir qualquer margem de lucro para os responsáveis.
5.3. Dano ambiental
A Lei de Crimes ambientais (Lei n. 9.605/1998) declara expressamente a obrigatoriedade do ressarcimento dos prejuízos gerados ao meio ambiente, pela pessoa jurídica, penetrando quando se fizer necessário, no patrimônio dos sócios, administrador, diretor, mandatários ou a quem de alguma maneira responda pela pessoa jurídica que deu causa a degradação.
Sobre o assunto, o art. 225, §3ª da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, aponta que:
“As condutas e atividades consideradas lesivas ao Meio Ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
Pelo que se depreende da literal leitura do dispositivo constitucional supracitado, na seara ambiental, as infrações estão sujeitas à tríplice responsabilidade[10]: penal, administrativa e civil. Desta forma, o sistema de responsabilidade ambiental é múltiplo e deve ser articulado conjunta e sistematicamente.
Não se olvida, é certo, de que o descumprimento de uma obrigação ou de um dever, ainda que redundante de um fato ou ato único, pode resultar em várias espécies, na forma de cumulação de responsabilidade, em virtude das diversas sanções previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
5.3.1 Teoria da responsabilidade objetiva
Segundo José Afonso (apud, Edna Célia, 2002, pg. 71):
“O direito brasileiro assume o princípio da responsabilidade objetiva pelo dano ecológico o que é uma tendência do direito estrangeiro. (…) é muito nítida no direito francês a evolução para uma responsabilidade objetiva acompanhada de uma diminuição do ônus da prova da exigência do nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido e a atividade danosa ao meio ambiente. (…) Na responsabilidade fundada na culpa, a vítima tem de provar não só a existência do nexo entre o dano e a atividade danosa, mas também e especialmente a culpa do agente. Na responsabilidade objetiva por dano ambiental, basta a existência do dano e o nexo com a fonte poluidora ou degradadora.”
Em outras palavras, para se exigir a responsabilidade civil e administrativa objetiva, basta a ocorrência do dano ambiental, decorrente de fonte poluidora ou degradadora, sem que haja necessidade de que seja provado, ainda em relação à pessoa jurídica, que o dano ocorreu por força das pessoas descritas no art. 2º, da Lei n. 9.605/1998, ou no interesse destas, ou ainda, que a elas tenha resultado benefício.
Nesse diapasão, percebe-se que a responsabilidade objetiva é apurada com base na ocorrência do dano e seu nexo com a ação que o provocou, independentemente da existência de culpa ou dolo por parte do agente.
Merece referência, o fato de o princípio da teoria da responsabilidade objetiva, para a apuração da responsabilidade civil e administrativa pelo cometimento de dano ambiental, ser universalmente aceito, sem restrições, por corresponder às estruturas básicas de responsabilização que dão base ao estado de providência.
Isso é o que nos leva crer o art. 3º, inciso IV c/c o art. 14, § 1º da Lei n. 6.938/1981, ao mencionar, respectivamente, que é poluidor, a pessoa física ou jurídica de direito público interno ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental que é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente ou a terceiros, afetados por sua atividade.
5.3.2 Da responsabilidade ambiental no direito brasileiro
O direito ambiental, tem 3 (três) esferas de atuação, a saber: a preventiva (administrativa), a reparatória (cível) e a repressiva (penal).
5.3.2.1 Responsabilidade administrativa
Custódio (apud, José Rubens e Patryck de Araújo, 2010, pg. 123) conceitua responsabilidade administrativa como:
“A responsabilidade que resulta da transgressão de toda classe de deveres administrativos perante a administração, que importe sanção administrativa e deva ser aplicada pela autoridade administrativa no âmbito administrativo.”
O entendimento mais balizado de José Rubens e Patryck de Araújo (2010, pg.123), assinala que com a edição da Lei de Crimes Ambientais e da regulamentação do Decreto n. 6.514/2008, o sistema de sanção administrativa ambiental ganhou um novo rigor, uma vez que, esta deu maior sistematização à política administrativa ambiental e tornou um pouco mais eficaz os ditames da Lei n. 6.938/1981, estipulando valores mais alta nas multas e sanções mais rigorosas, tais como apreensão, destruição e inutilização de produtos, suspensão de venda e produto, embargo de obra e atividades, demolição de obras, suspensão das atividades e restritivas de direitos, mais condizentes com as necessidades da tutela ambiental do poder público.
Por seu turno, o caput do art. 70, da Lei n. 9.605/1998, dispõe que a infração administrativa ambiental, caracteriza-se como toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
Logo, os pressupostos para a configuração da responsabilidade administrativa resumem-se na conduta ilícita, considerada como qualquer comportamento contrário ao ordenamento jurídico.
Discorrendo sobre o assunto, Édis Milaré (2014, p. 354) aduz ser da essência do regime da responsabilidade administrativa ambiental a ocorrência de uma infração, vale dizer, a desobediência a normas constitucionais, legais ou regulamentares, ou, como se queira, a subsunção do comportamento do agente a um tipo emanado de qualquer esfera de poder, inclusive de condicionantes técnicas constantes de licenças ambientais.
Assevera ainda, que a essência da infração ambiental não é o dano em si, mas sim o comportamento em desobediência a uma norma jurídica de tutela do ambiente. Se não há conduta contrária à legislação posta, não se pode falar em infração administrativa.
Nesse passo, sobreleva reconhecer que o dano ambiental, isoladamente, não é gerador de responsabilidade administrativa, em contrapartida, o dano ensejador da responsabilidade administrativa “é aquele enquadrável como o resultado descrito em um tipo infracional ou o provocado por um comportamento omissivo ou comissivo violador de regras jurídicas.”, como aponta Édis Milaré (2014, p. 355).
5.3.2.2 Responsabilidade civil
A responsabilidade civil “pressupõe prejuízo a terceiro, ensejando pedido de reparação do dano, consistente na recomposição do status quo ante (repristinação = obrigação de fazer) e/ou numa importância em dinheiro (indenização = obrigação de dar”, como aponta Édis Milaré (2014, p. 427).
Reza a Lei de Crimes Ambientais (Lei n.9.605/1998) que os reflexos cíveis sobre reparabilidade de dano ambiental são mecanismos interligados com a responsabilidade civil, sendo que a principal função, aqui, ao contrário, é o exercício do “jus puniendi” pelo Estado, ou seja, o motivo fundamental desta função não é a reconstituição do bem lesado, que só se concretiza a dependência do “persecutio criminis” e incidente da prévia vista à instância processual penal.
E arremata Édis Milaré (2014, p. 429)
“Coube à Lei n. 6.938/1981, instituidora da Política Nacional do Meio Ambiente – ciente de que a atividade ruinosa do poluidor corresponde a uma indevida apropriação pessoal de bens de todos -, dar adequado tratamento à matéria, substituindo, decididamente, o princípio da responsabilidade subjetiva, fundamentado na culpa, pelo da responsabilidade objetiva, fundamentado no risco da atividade”.
Desse modo, tanto a responsabilidade civil quanto a administrativa da pessoa jurídica, para serem apuradas, não necessitam de que a infração haja sido praticada por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da entidade. Na realidade, como bem alerta Edna Célia (2002, pg. 70), “somente a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, é que exige tal condição, posto assentar-se na teoria da responsabilidade subjetiva”.
Já se teve oportunidade de asseverar, que as responsabilidades civil e administrativa por dano ambiental são apuradas com base na teoria da reponsabilidade objetiva, razão pela qual a sua apuração independe de ter sido a infração praticada pela pessoa jurídica por decisão de seus agentes ou representantes, bem como se esgota na pessoa do transgressor do direito.
5.3.2.3 Responsabilidade penal
A responsabilidade no âmbito penal trata-se, pois, de um recurso extremo de que se vale o Estado para coibir as ações consideradas ilícitas.
Ao cuidar com especificidade da responsabilidade penal na seara ambiental, SILVA (apud, Edna Célia, 2002, pg. 74), ensina-nos que:
“A responsabilidade criminal emana do cometimento de crime ou contravenção ficando o infrator sujeito a pena de perda da liberdade ou a pena pecuniária. Há pois dois tipos de infração penal: o crime e a contravenção. O primeiro constitui-se em ofensas graves a bens e interesses jurídicos de lato valor, donde resultam danos ou perigos próximos, surgindo as duas categorias de crimes: de dano ou perigo, a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, acumulada ou não com multa. A segunda, refere-se a condutas menos gravosas, apenas reveladoras de perigo, as quais a lei comina sanção de pequena monta, prisão simples ou multa. Na verdade, a lei é que vai dizer o que é contravenção e o que é crime”.
No magistério de José Rubens e Patryck de Araújo (2010, pg. 121) a função da tutela penal, ou seja, da conduta típica, antijurídica prevista em lei, na área ambiental, tendo como objeto a proteção do meio ambiente em todas as suas formas, “é de inibir as ações humanas lesivas a este ou à proteção jurídica de interesses relevantes da sociedade.”.
Além do mais, a tutela penal do meio ambiente tem o seu núcleo na Lei 9.605/1998 – regulamentou preceito constitucional (art. 225, da CRFB/1988) -, na qual passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas conjuntamente com as pessoas físicas (sistema da dupla imputação), por danos gerados ao meio ambiente.
Nesse sentido, prevê o art. 3º da Lei 9.605/1998:
“As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato. – Sem grifos no original.”
Observa-se que a Lei Ambiental estabelece dois pressupostos para a responsabilização penal das pessoas jurídicas, a serem preenchidos de forma cumulativa: 1) que a infração penal seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado e; 2) que a infração penal seja cometida no interesse ou benefício da sua entidade.[11]
Nessa linha, Frederico Amado (2014, p. 630), em suas reflexões sobre o assunto, assevera que “o legislador ordinário, ao regulamentar o citado preceito constitucional, adotou a corrente doutrinária que aceita a responsabilização penal da pessoa jurídica, porém com condicionantes, ao contrário dos EUA.”.
Ocorre que ainda é predominante entre os criminalistas brasileiros a posição sobre a impossibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica. Para eles, é impossível imputar culpabilidade à pessoa jurídica, já que são desprovidos de vontade própria. De igual modo, existem ainda os que vislumbram a desnecessidade da tutela penal, ante a suficiência da administrativa.
Todavia, tais argumentos são de menos importância, e, de resto, não esgotam o rol de objeções que podem ser encontradas na jurisprudência e doutrina.
Com percuciência leciona Frederico Amado (2014, p. 631).
“Destarte, considerando que a Constituição é a decisão política fundamental, tomada por quem detém a soma dos fatores reais do poder, que institui o dever-ser, deve-se aceitar a opção do poder constituinte originário, ao inaugurar o novel regime constitucional, que adotou o sistema da dupla imputação na seara penal, alcançando pessoas físicas e jurídicas pelo cometimento de crimes ambientais. Deveras, o Código Penal e respectiva legislação extravagante é que devem girar em torno da Constituição, astro-rei no nosso ordenamento jurídico, e não o contrário. É decorrência natural do Princípio da Supremacia da Constituição, notadamente empós o constitucionalismo contemporâneo, devendo ser criada, se necessário, uma teoria geral do delito e das penas adaptada às características peculiares da responsabilização criminal da pessoa jurídica na seara ambiental. Ademais, a tutela penal do meio ambiente realiza o Princípio da Intervenção Mínima, pois os recursos ambientais são bens de extrema relevância jurídica, pressupostos indispensáveis a uma existência humana digna, devendo ser tutelados também na esfera criminal.”
De resto, a doutrina majoritária, já assentou o entendimento – tese esta, que já encontra respaldo na jurisprudência do STF – da admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica por crime ambiental.
Inclusive em 06 de agosto de 2013, no julgamento do RE 548.181, por 3 votos a 2, a 1.ª Turma do STF condenou a pessoa jurídica por crime ambiental e absolveu as pessoas físicas, inclusive o gestor da empresa, confira passagem do Informativo 714:
“Crime ambiental: absolvição de pessoa física e responsabilidade penal de pessoa jurídica – 2 No mérito, anotou-se que a tese do STJ, no sentido de que a persecução penal dos entes morais somente se poderia ocorrer se houvesse, concomitantemente, a descrição e imputação de uma ação humana individual, sem o que não seria admissível a responsabilização da pessoa jurídica, afrontaria o art. 225, § 3º, da CF. Sublinhou-se que, ao se condicionar a imputabilidade da pessoa jurídica à da pessoa humana, estar-se-ia quase que a subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva condenação da pessoa física. Ressaltou-se que, ainda que se concluísse que o legislador ordinário não estabelecera por completo os critérios de imputação da pessoa jurídica por crimes ambientais, não haveria como pretender transpor o paradigma de imputação das pessoas físicas aos entes coletivos. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, que negavam provimento ao extraordinário. Afirmavam que o art. 225, § 3º, da CF não teria criado a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Para o Min. Luiz Fux, a mencionada regra constitucional, ao afirmar que os ilícitos ambientais sujeitariam “os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas”, teria apenas imposto sanções administrativas às pessoas jurídicas. Discorria, ainda, que o art. 5º, XLV, da CF teria trazido o princípio da pessoalidade da pena, o que vedaria qualquer exegese a implicar a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por fim, reputava que a pena visaria à ressocialização, o que tornaria impossível o seu alcance em relação às pessoas jurídicas.” (RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, 6.8.2013.(RE-548181).
Exsurge do julgado supracitado que o STF desvinculou a responsabilidade penal da pessoa jurídica em relação às pessoas físicas supostamente autoras e partícipes do delito ambiental, em interpretação ao artigo 225, § 3.º, da Constituição.
Não há dúvida de que a responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial.
Ademais, note-se que para ser responsabilizado o representante legal deverá ter ingerência direta sobre o fato penalmente relevante, pois inexiste responsabilidade penal objetiva, ante o Princípio Constitucional da Culpabilidade, uma vez que deverá haver nexo causal, conforme já decidiu a Suprema Corte:
“Habeas corpus. 2. Responsabilidade penal objetiva. 3. Crime ambiental previsto no artigo 2.º da Lei 9.605/1998. 4. Evento danoso: vazamento em um oleoduto da Petrobrás
5. Ausência de nexo causal. 6. Responsabilidade pelo dano ao meio ambiente não atribuível diretamente ao dirigente da Petrobras. 7. Existência de instâncias gerenciais e de operação para fiscalizar o estado de conservação dos 14 mil quilômetros de oleodutos. 8. Não configuração de relação de causalidade entre o fato imputado e o suposto agente criminoso. 8. Diferenças entre conduta dos dirigentes da empresa e atividades da própria empresa. 9. Problema da assinalagmaticidade em uma sociedade de risco. 10. Impossibilidade de se atribuir ao indivíduo e à pessoa jurídica os mesmos riscos. 11. Habeas corpus concedido” (STF, HC 83.554, de 16.08.2005).
Pelo até aqui visto, é fácil perceber que as responsabilidades que advêm do cometimento do dano ambiental possuem características específicas e geram resultados diversos para o infrator, bem como, apenas a responsabilidade penal é apurada com base na teoria da responsabilidade subjetiva, estando as demais apoiadas na teoria da responsabilidade objetiva do risco integral, que considera para a sua apuração o nexo de causalidade entre a ação do agente e o dano ambiental dela resultante.
5.4 Críticas à desconsideração da personalidade jurídica aplicada no âmbito do direito ambiental
Nos termos delineados alhures, resta evidenciado que havendo dano ao meio ambiente, poderá o juiz desconsiderar a pessoa jurídica para atingir os culpados, fazendo-os ressarcir o prejuízo, quando a personalidade jurídica da sociedade for obstáculo para a recomposição do dano ou prejuízos.
É certo e incontroverso que o art. 4º da Lei 9605/98, disciplina – no âmbito do direito ambiental – o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Nos termos do indigitado dispositivo, o juiz poderá se valer da medida sempre que a personalidade da sociedade responsável pelo evento ilícito “for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. A interpretação deste dispositivo deixa visível a sua fórmula demasiadamente aberta, conforme aponta Fabio Ulhoa (2011, pg. 73-74), in verbis:
“Não se pode (…) interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria da desconsideração. Quer dizer, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes. “
Não é diferente o entendimento de Elida Séguin (2002, pg. 399), para quem:
“O art. 4.º da LCA expressamente admite a desconsideração da personalidade jurídica sempre que ela for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do Meio Ambiente, conforme valor fixado na execução civil da sentença (art. 20 parágrafo único da LCA). Deve ser comprovada a fraude contra o credor e que a personalidade jurídica esteja sendo usada para salvaguardar os bens dos sócios. Provada a simulação, a disregard theory pode ser aplicada no caso de insuficiência do patrimônio da empresa, pois a responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a da pessoa física, que da atividade da primeira tira proveito” (SÉGUIN, 2002, p. 399, grifo do autor).
Portanto, para esses doutrinadores, a interpretação do art. 4º da Lei de crimes ambientais, deve ser feita de acordo com a formulação teórica acerca do instituto da desconsideração, ou seja, é indispensável perscrutar a utilização indevida da personalidade jurídica, seu desvirtuamento.
Isto se deve ao fato de que se assim não fosse interpretado o artigo, este estaria em desacordo com a disregard theory.
Entretanto, ao se atentar para a redação do art. 4.º, verificar-se-á que, conquanto seja permitida a desconsideração da personalidade jurídica, essa permissão não se sujeita ao preenchimento dos pressupostos da doutrina original.
De outra parte, SOUZA (2000, p. 49) fazendo uma interpretação axiológica ao art. 4º da Lei dos Crimes ambientais, assinala que “bastará a pessoa jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento”, ou seja, havendo um dano e esgotado seu patrimônio, se não for possível alcançar os bens dos sócios em razão da limitação legal de responsabilidade, ou da aplicação do princípio da autonomia do ente jurídico, será possível a desconsideração.
Por certo, bem mais coerente é este último posicionamento, uma vez que, mostra-se mais compatível com os princípios do direito ambiental e com a teoria do risco.
Nesse particular, há que se ter em conta que a desconsideração da personalidade jurídica, na esfera ambiental é informada pela Teoria Menor, pois não se exige o abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial para a sua concretização, nesse sentido confira o REsp. 279273 SP da lavra da ministra Nancy Andrighi.
Ao fim e ao cabo, não desmerecendo o entendimento esposado pelos doutrinadores Fábio Ulhoa e Elida Séguin, o fato é que a posição de SOUZA deve ser acatada. A uma, porque o art. 4º da lei de crimes ambientais é claro quanto aos requisitos a serem preenchidos para a desconsideração da personalidade jurídica não exigindo o requisito específico do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. A duas, porque a lei de crimes ambientais por ser especial prevalece sobre a lei geral (Código Civil). A três, porque na seara ambiental incide a teoria menor – para a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, basta que a personalidade da pessoa jurídica caracterize óbice ao ressarcimento dos prejuízos causados ao meio ambiente. – e não a maior.
Ademais, não se olvida é certo que no caso dos crimes ambientais o bem tutelado é o meio ambiente que é considerado como bem de uso comum do povo (vide art. 225 da CRFB/1988), por ser um bem difuso e de interesse de todos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A desconsideração da pessoa jurídica é tema de grande relevância para os operadores do direito, especialmente no âmbito do Direito Ambiental, uma vez que visa coibir fraudes perpetradas pelas pessoas jurídicas, na figura das pessoas físicas – seus sócios -. Daí porque o instituto da desconsideração não se confunde com o instituto da despersonificação, já que, ao contrário deste, trata-se de uma medida sanatória excepcional de efeito provisório, e que não tem o condão de cancelar o registro da sociedade empresária.
Pois bem, no âmbito do direito ambiental, a Lei n. 9.605/98, em seu art. 4º, rompendo com a rigidez do princípio da autonomia das pessoas jurídicas, acolheu os ditames da chamada disregard doctrine, segundo esse dispositivo, a penetração no seio da sociedade para atingir os sócios tem como único pressuposto a impossibilidade de obter o ressarcimento do dano ambiental, exclusivamente da pessoa jurídica, permitindo ao juiz, independentemente da verificação de culpa de qualquer sócio, imputar-lhes responsabilidade pessoal e ilimitada, afastando qualquer efeito da personificação que represente obstáculo ao pagamento dos prejuízos decorrentes de danos ambientais.
Frente a isso, a pessoa jurídica que pratica algum ilícito ambiental responde juntamente com a pessoa física causadora do dano, pelos atos praticados por esta em seu nome. Conquanto, aquele que se esconder por detrás de uma empresa, seja qual for, para praticar infrações contra o meio ambiente, responde na esfera cível, administrativa e penal por eles, com aplicação do instituto da desconsideração da pessoa jurídica.
Acrescente-se mais, que a desconsideração da personalidade jurídica, na esfera ambiental é informada pela Teoria Menor, pois não se exige o abuso da personalidade jurídica para a sua concretização.
Todavia, este entendimento é bastante conturbado no meio doutrinário, uma vez que existem aqueles que sugerem a existência do abuso de direito e desvio de finalidade para que possa incidir o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no direito ambiental, enquanto outros aduzem que basta a existência do dano para descaracterizar a personalidade jurídica da empresa.
Ante o exposto, embora exista entendimento contrário, chega-se a conclusão de que, hodiernamente, impera na jurisprudência e doutrina o entendimento de que a desconsideração no direito ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume 1: Introdução ao Direito Civil. Teoria geral de direito civil. 20ª edição, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002. Editora Forense. 2004
Informações Sobre o Autor
Flávia Wanzeler Carvalho
Advogada. Pós-graduação em Advocacia Trabalhista em andamento