Analisar a transação penal, instituída pela Lei 9.099/95, e as implicações pelo seu descumprimento injustificado, principalmente no que diz respeito à possibilidade de detração penal pelo cumprimento de parte da pena com a concessão do benefício. Inicialmente, tecemos algumas considerações a respeito da Lei 9.099/95 e conceituamos transação penal, seu âmbito de aplicação. Depois, analisamos as conseqüências pelo seu descumprimento injustificado, o instituto da detração e, finalmente, a possibilidade de abatimento da pena imposta em sentença condenatória daquela cumprida parcialmente na transação penal.
1. TRANSAÇÃO PENAL.
Inicialmente se faz necessário tecer alguns comentários a respeito da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais, por sua importância para o sistema penal e processual brasileiro, que estabeleceu um marco no direito, ante seu caráter despenalizador e busca da solução consensual dos conflitos.
A Lei dos Juizados Especiais Criminais veio a dar efetividade ao artigo 98, inciso I, da Constituição Federal e minimizar a intervenção do Poder estatal, bem como agilizar e simplificar o procedimento e julgamento para as infrações penais de menor potencial ofensivo. O avanço foi significativo, contudo entendemos que poderia ter ido além em diversos outros pontos, em busca da resolução das lides penais.
As infrações penais de menor potencial ofensivo foram limitadas, inicialmente, às contravenções penais e aos crimes com pena máxima não superior a um ano, excetuados aqueles que a lei preveja procedimento especial, consoante artigo 61 da mencionada legislação. Tímida, nos pareceu, a definição, vez que já em 1995 o sistema judiciário brasileiro estava atravancado pelas inúmeras ações penais e a lei poderia ter aumentado o leque dos delitos de menor potencial ofensivo, sem qualquer prejuízo ao sistema repressivo, já que a severidade das punições penais não é causa determinante para diminuição da criminalidade[1]. Em 2001, com a entrada em vigor da Lei 10.259, que criou os Juizados Especiais Criminais Federais, o conceito de infrações de menor potencial ofensivo foi alargado para todas aquelas com pena não superior a dois anos, posicionamento que nos parece hoje sedimentado[2].
Por óbvio, não se pode deixar de reconhecer como válida a preocupação de Cezar Roberto Bitencourt a respeito da utilização indiscriminada ou a elevação exagerada do conceito de infrações de menor potencial ofensivo para fins de transação penal, que implicará em violação de inúmeras garantias penais-constitucionais, tais como o devido processo legal, ampla defesa e presunção de inocência (Bitencourt, 2003, p. 526). Todavia, não postulamos pela ampliação do conceito para fins único de transação penal, mas sim para aplicação de medidas alternativas sem finalidade punitiva, tais como as conciliações civis, já que não é a lei penal que transforma a realidade social (Franco, 2002).
Luiz Flávio Gomes, igualmente, demonstra sua preocupação com o instrumento ao se permitir uma facilitação de pronta reabilitação ao infrator (o que sinceramente não consigo vislumbrar com a mesma clareza e autenticidade); economizam-se recursos humanos e materiais. Em contraposição, e com procedência inequivocamente maior aos meus olhos, há um exército de desvantagens do porte do sacrifício do princípio da presunção de inocência (que adquire um caráter farisaico no sistema norte-americano atual), da verdade real, do contraditório, do devido processo legal; há, ademais, o risco das injustiças, da flagrante desigualdade das partes, da falta de publicidade e de lealdade processual, dentre tantos outros (Gomes, 1992, p. 88-109).
A transação penal, até então inexistente em nosso direito, permitiu a mitigação da obrigatoriedade da ação penal, estabelecendo um novo modelo de Justiça Criminal, centrado na busca da solução dos conflitos e não mais na decisão (formalista) do caso (Gomes, 2003, p. 62). Cuida-se de um revolucionário instrumento de política criminal a possibilitar a solução rápida, sumaríssima, da lide penal (Smanio, 1998, p. 79).
A busca da solução dos conflitos e aplicação de penas diversas da privativa de liberdade, frente à falência do sistema penitenciário brasileiro, parece-nos um norte a seguir, obrigatoriamente, até mesmo para se respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana. A transação penal, aqui, é de suma importância e sua ampliação para diversas outras infrações nos parece irremediável, sem, é claro, nos esquecermos das preocupações anteriormente mencionadas.
O artigo 76 da Lei 9099/95 define transação penal como a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas:
Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.
Damásio de Jesus diz tratar-se de um negócio entre o Ministério Público e a defesa, possibilitando-se ao juiz, de imediato, aplicar uma pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e defesa (Jesus, 1995, p. 62).
É medida alternativa que visa impedir a imposição de pena privativa de liberdade, mas não deixa de constituir sanção penal. Como o próprio dispositivo estabelece, claramente, a pena será aplicada de imediato, ou seja, antecipa-se a punição. E pena no sentido de imposição estatal, consistente em perda ou restrição de bens jurídicos do autor do fato, em retribuição à sua conduta e para prevenir novos ilícitos (Dotti, 2004, p. 433).
Para a transação penal, há requisitos a serem observados, preenchidos. Requisito prévio é a existência das condições da ação, não se admitindo a apresentação de proposta se o caso determina o arquivamento do procedimento investigatório. Mais: a partir da criação do estudado instrumento, entendemos não se admitir sua apresentação quando houver dúvidas quanto à autoria, materialidade, existência do fato típico e ilícito. Ao contrário da análise que se faz no momento do oferecimento da denúncia, informada pelo princípio in dubio pro societate, a transação penal deve ser informada pelo princípio in dubio pro reo, ou seja, na dúvida não se pode admitir a aplicação imediata de sanção penal, sob pena de se afrontar os princípios constitucionais anteriormente indicados. Aqui, sim, justifica-se o temor da flagrante desigualdade das partes (Gomes, 1992, p. 88-109). Os demais requisitos estão estabelecidos no artigo 76, parágrafo 2º, da Lei 9.099/95.
A pena a ser proposta pelo Ministério Público e aplicada ao autor do fato deve seguir os parâmetros do artigo 68 do Código Penal, não se podendo admitir que fique ao livre arbítrio, sem qualquer fundamentação, a sanção[3]. Cabe registrar que o Ministério Público é o titular da proposta e há discricionariedade regrada em sua atuação, tanto que a mesma será apreciada pelo juiz.
2. DESCUMPRIMENTO INJUSTIFICADO: CONSEQÜÊNCIAS.
A alteração legislativa promovida pela Lei dos Juizados Especiais foi sem dúvida profunda, contudo lacunas marcaram a citada lei, tanto que Cezar Roberto Bitencourt diz ser completamente deficiente o instituto (Bitencourt, 2003, p. 578).
Aceita a transação penal pelo autor do fato e seu advogado, será submetida à apreciação do juiz, que não pode se resumir a mero telespectador. Não há vinculação ao juiz à proposta formulada e aceita, vez que tem ele o dever de apreciar a legalidade da medida quanto ao preenchimento de todos os requisitos legais e aplicar a pena não privativa de liberdade.
A decisão jurisdicional na transação penal não tem natureza condenatória e sim homologatória, consoante Ada Pellegrini Grinover (1998, p. 87). Cezar Roberto Bitencourt explica que é da tradição do Direito brasileiro, sempre que as partes transigem, pondo fim à relação processual, a decisão judicial que legitima jurisdicionalmente essa convergência de vontades, ter caráter homologatório, jamais condenatório (2003, p. 582).
Por sua vez, Mirabete entende ser a decisão condenatória e não homologatória, visto que declara e reconhece a situação do autor do fato, tornando-o certo e impondo a sanção penal, produzindo, então, efeitos de coisa julgada material e formal (1996, p. 90). O posicionamento é dominante perante o Superior Tribunal de Justiça[4].
Entendemos como mais abalizado o posicionamento de Grinover e Bitencourt, por inexistir sentença de mérito, com observância do devido processo legal, culpabilidade e demais princípios constitucionais-garantistas. O posicionamento vem sendo acolhido perante o Supremo Tribunal Federal[5].
Há ainda divergência na conseqüência pelo injustificado descumprimento da transação penal, frente à lacuna legislativa. Alguns posicionamentos se firmaram, doutrinários e jurisprudenciais, e aqui abordaremos somente os mais destacados.
A conversão em pena de prisão pelo descumprimento nos parece ser uma violência abominável, ante o desrespeito aos princípios constitucionais-garantistas da ampla defesa, contraditório, devido processo legal. O Ministro Marco Aurélio de Mello, em decisão proferida no HC 79.572-GO, sustentou que não há como aplicar, à espécie, a menos que sejam colocados em plano secundário princípios constitucionais, o disposto no art. 45 do Código Penal. Está-se diante de incompatibilidade reveladora de não ser o preceito nele contido fonte subsidiária no processo submetido ao juizado especial. Essa conclusão decorre do fato de a conversão das penas restritivas de direitos em penas restritivas do exercício da liberdade, tal como prevista no artigo 45 do Código Penal, pressupor, sempre, o regular processo, a regular tramitação da ação penal, a persecução criminal, viabilizando o direito de defesa, e a prolação de sentença condenatória, vindo a ocorrer, ai sim, em passo seguinte, a conversão. Alias, o princípio da razoabilidade, a razão de ser das coisas, cuja força é insuplantável, direciona no sentido de a conversão pressupor algo já existente, e isso diz respeito à pena privativa do exercício da liberdade.
Sem o devido processo legal, ampla defesa, contraditório e sentença penal condenatória, entendemos incabível a conversão da transação em pena privativa de liberdade. Fere-se, com a adoção do posicionamento, o próprio espírito que norteou o trabalho legislativo, qual seja, a despenalização, a aplicação de pena diversa do encarceramento.
A execução da medida transacionada, posicionamento sustentado por Bitencourt, consiste em proceder à execução forçada, exatamente como se executam as obrigações de fazer. Há decisão da lavra do Ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça[6], RHC 10.369/SP, a determinar a execução:
Recurso em Habeas Corpus. Transação Penal. Lei 9.099/95. Pena de Multa. Descumprimento. Oferecimento de Denúncia. Impossibilidade. Coisa Julgada Formal e Material. Ressalva de Entendimento Contrário. 1. “(…) 1 – A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória, gera a eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal. 2 – Não se apresentando o infrator para prestar serviços à comunidade, como pactuado na transação (art. 76, da Lei nº 9.099/05), cabe ao MP a execução da pena imposta, devendo prosseguir perante o Juízo competente, nos termos do art. 86 daquele diploma legal. Precedentes.” (REsp 203.583/SP, in DJ 11/12/2000). 2. Ressalva de entendimento contrário do Relator. 3. Recurso provido.
Todavia, a prática nos tem mostrado que a execução da decisão não surte efeito algum, pois a esmagadora maioria dos autores de delitos de menor potencial que descumprem injustificadamente a medida são pobres, na acepção jurídica do termo. Há, então, ineficácia da tutela jurisdicional e, em última analise, ofensa ao princípio de proteção aos bens jurídicos, por não se alcançar a pacificação dos conflitos sociais e proteção desses bens[7].
Resta-nos, portanto, avaliar a propositura da ação penal. Os partidários contrários sustentam a impossibilidade do início da ação penal sob o argumento de que a natureza jurídica da decisão homologatória gera eficácia de coisa julgada material e formal, o que impede a propositura da ação. O posicionamento vem sendo seguido pelas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça[8].
Os adeptos da corrente que sustenta o início da ação penal em caso de descumprimento da transação penal, a qual filiamo-nos, não vêem coisa julgada material na decisão homologatória e, sim, perda de sua eficácia pelo descumprimento do acordo.
Oportuna a lição de Pontes de Miranda:
Se os efeitos da declaração de vontade dependem do adimplemento da contraprestação ou a declaração de vontade, prestada pelo Estado, não compôs o negócio jurídico, por ser necessário que outra declaração de vontade ou algum ato de credor seria emitido, ou a declaração de vontade só tem os efeitos obrigacionais ou reais após contraprestação. Esses pormenores não importam no que concerne à rescindibilidade da sentença que presta a declaração. Se, depois, de ser contraprestada a declaração que se fazia mister e o prazo para ser contraprestada precluiu, tudo se passa como a respeito da oferta a que se não seguiu aceitação: o negócio jurídico bilateral não se concluiu (MIRANDA, 1975).
A perda da eficácia se dá pelo descumprimento total ou parcial do transacionado, já que somente o cumprimento integral significa adimplemento da obrigação e determina a extinção do poder de punir estatal.
Com a perda da eficácia da decisão homologatória, abre-se ao Ministério Público, titular da ação penal pública, a oportunidade de oferecimento de denúncia para início da ação e, eventual, condenação. O autor do fato vê-se agora compelido ao cumprimento da sentença condenatória, com as conseqüências pelo seu descumprimento. Porém, o cumprimento parcial do transacionado e a posterior condenação pelo mesmo fato, ante o descumprimento injustificado da transação, pode levar ao bis in idem.
3. DETRAÇÃO E PRINCÍPIO NOM BIS IN IDEM
O Código Penal, em dois dispositivos da parte geral, adotou expressamente o princípio nom bis in idem.
O primeiro deles é o artigo 8º, que possibilita a atenuação ou desconto da pena cumprida no estrangeiro da pena imposta no Brasil pelo mesmo fato. Evita-se, assim, a dupla punição – bis in idem. Como única condição vê-se a exigência de um único fato criminoso. Por conseguinte, não é condição a existência de sentença penal condenatória no estrangeiro. Ora, conclui-se que o cumprimento de pena imposta através do instituto norte-americano do plea bargaining, ou de qualquer outro instituto assemelhado, atenua ou desconta a pena imposta no Brasil pelo mesmo fato.
Apenas a título de esclarecimento a atenuação se dará quando houver diversidade de penas e o cômputo quando houver identidade delas. Assim, cumprida a pena pelo sujeito ativo do crime no estrangeiro, será ela descontada na execução pela lei brasileira quando forem idênticas (penas privativas de liberdade, por exemplo), respondendo efetivamente o sentenciado pelo saldo a cumprir se a pena imposta no Brasil for mais severa. Se a pena imposta no estrangeiro for superior à imposta no Pais, é evidente que esta não será executada (Mirabete, 2003, p. 81).
O segundo dispositivo a vedar a dupla punição é o artigo 42, que prevê a detração, que é a possibilidade de se descontar na pena ou na medida de segurança, o tempo de prisão ou de internação que o condenado cumpriu provisoriamente, no Brasil ou no estrangeiro.
René Ariel Dotti, em singular explicação, diz:
há um princípio clássico de justiça segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. A detração visa impedir que o Estado abuse do poder-dever de punir, sujeitando o responsável pelo fato punível a uma fração desnecessária da pena sempre que houver a perda da liberdade ou a internação em etapas anteriores à sentença condenatória (Dotti, 2004, p. 604/605).
Aníbal Bruno diz que a detração evita que a privação da liberdade resultante da pena provisória constitua um acréscimo, contrário à justiça, do período de duração da pena decretada na sentença condenatória (Bruno, 1969, p. 77).
O ponto determinante está em impedir a dupla punição pelo Estado, pouco importando se a pena anterior foi privativa ou não de liberdade, já que a questão não gira na qualidade da sanção e sim na sua existência.
O dispositivo penal fez menção somente ao abatimento da prisão cautelar e tempo de internação da pena privativa de liberdade e medida de segurança, nada prevendo quanto à detração da pena restritiva de direitos ou pecuniária do tempo de prisão provisória.
Julio F. Mirabete aponta como inexplicável a omissão e afirma que deve se reconhecer a detração penal nessa hipótese por medida de equidade. Assim, se esteve o sentenciado preso preventivamente por três meses, tal prazo deverá ser descontado, por exemplo, dos quatro meses da limitação de fim de semana ou de prestação de serviços à comunidade que lhe forem aplicados em substituição à pena privativa de liberdade. Solução diversa implica tratamento mais severo para os que, por suas condições pessoais, merecem da lei o tratamento mais benigno da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (Mirabete, 2003, p. 263).
No mesmo sentido é a posição de Cezar Roberto Bitencourt:
Há entendimento respeitável de que, ´por necessária e permitida interpretação analógica´, deve ser admitida a detração também das penas restritivas de direitos, como limitação de fim de semana e prestação de serviços à comunidade. Acreditamos que as interdições temporárias de direitos também devem ser contempladas com o mesmo tratamento que for dispensado às outras duas espécies de penas restritivas de direitos (Bitencourt, 2003, p. 441).
A doutrina é unânime a indicar a possibilidade de detração para penas restritivas de direitos, contudo nem todas as espécies a admitem. Por isso, cita a prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana e interdição temporária de direitos, únicas a substituírem a pena privativa de liberdade pelo mesmo tempo de sua duração (artigo 55 do Código Penal).
A lacuna legal do artigo 42 do Código Penal admite a analogia, ou seja, a norma penal que prevê situação semelhante aplica-se ao caso não previsto. É a analogia in bonan partem, que vem para impedir a dupla punição pelo mesmo fato criminoso.
4. PRINCÍPIO NOM BIS IN IDEM E TRANSAÇÃO PENAL.
As lacunas da Lei 9.099/95 devem ser supridas pela doutrina e jurisprudência, com o fim de buscar o seu exato alcance e real significado. A solução dos conflitos foi o ideal da lei e sua inovação, sem dúvida alguma, revolucionou o sistema processual e penal brasileiro. Se por um lado há críticas quanto à possibilidade de violação dos direitos constitucionais-penais, de outro há elogios pelo caráter despenalizador, informado pelos princípios da mínima intervenção, fragmentariedade, necessidade e idoneidade.
O descumprimento injustificado da transação penal deve ensejar, consoante vimos anteriormente, o oferecimento e início da ação penal. Ao final, com a prestação da tutela jurisdicional, se procedente a pretensão punitiva estatal, deve-se observar, obrigatoriamente, no juízo competente[9], a possibilidade de detração pelo cumprimento parcial da pena transacionada da pena imposta em definitivo.
O artigo 42 do Código Penal, modificado pela reforma de 1984, por óbvio não poderia prever a detração em caso de cumprimento parcial da transação penal, instituto novo no direito brasileiro. A previsão da norma penal resume-se aos casos de privação da liberdade, mas o ponto determinante, o princípio balizador do dispositivo, é evitar a dupla punição num mesmo fato criminoso – nom bis in idem.
Assim, entendemos ser possível, analogicamente, abater da decisão condenatória, proferida ao final da ação penal pública ou privada, a pena parcialmente cumprida por força do transacionado. Com a transação há aplicação de pena, de imediato, ao autor do fato, e, com a decisão condenatória, igualmente, há aplicação de pena ao autor daquele mesmo fato.
A analogia in bonam partem vem para suprir uma lacuna legislativa e impedir a violação ao princípio clássico de justiça segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato (Dotti, 2004, p. 604/605).
Não há que se argumentar que o descumprimento da transação tornou ineficaz também a pena parcialmente cumprida ou levou a sua perda. A interpretação, em casos omissos, jamais pode se dar em prejuízo do acusado e a lei penal, sempre que determinou a perda do período de cumprimento da pena, o fez expressamente. Soma-se a isto a existência de efetiva aplicação de pena na transação penal, entendida como uma perda de bens jurídicos imposta pelo órgão da justiça (Fragoso, 2003, p. 348).
Na transação penal pode-se aplicar quaisquer das espécies de penas restritivas de direito ou multa, mas nem todas poderá admitir a detração, por incompatibilidade. Todavia, existindo compatibilidade entre as penas aplicadas, a detração há de ser feita, sob pena de se afrontar o princípio nom bis in idem.
Ad exemplum, se aplicada pena de prestação de serviços à comunidade por transação penal e na condenação a mesma pena for aplicada, a detração é possível, ou seja, obrigatória. Mas, se aplicada pena de prestação de serviços à comunidade e, ao final, pena pecuniária, a detração é impossível. Se, na transação penal ficou estabelecida a prestação pecuniária em favor da vítima e o autor do fato adimpliu parcialmente com sua obrigação, o início da ação penal torna-se possível. Caso seja condenado ao final do processo e aplicada novamente pena de prestação pecuniária, obrigatoriamente, deverá se proceder à detração, para não se dar causa ao enriquecimento injusto da vítima e dupla punição do autor do fato.
A compatibilidade deverá ser analisada em cada caso, mas uma regra pode desde já ser estabelecida:
a. é possível a detração sempre que as penas forem idênticas.
Exemplificando: prestação pecuniária e prestação pecuniária; multa e multa; limitação de fins de semana e limitação de fins de semana; prestação de serviços à comunidade e prestação de serviços à comunidade.
b. havendo penas diversas, a detração é possível se as sanções forem substitutivas da privação de liberdade pelo tempo de sua duração.
Alguns exemplos: prestação de serviços à comunidade e interdição temporária de direitos; limitação de fins de semana e prestação de serviços à comunidade.
Importante observar que a doutrina não admite a possibilidade de detração em penas pecuniárias, mas observa-se que a maioria não discorre a respeito da pena imposta em transação penal. As brechas legislativas determinam estudo do assunto, visto que o descumprimento da transação penal, com a crise social enfrentada em nosso país, aumenta a cada ano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal, em seu artigo 98, instituiu um novo modelo de Justiça criminal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais, 9.099/95, daí decorrente, apresentou significativas e profundas mudanças no panorama processual e penal, com instrumentos e ritos novos, até então desconhecidos em nossa legislação.
O princípio da dignidade humana, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Carta Constitucional, é o norte de atuação do legislador e aplicador do direito e dele decorrem diversos outros princípios, reguladores do sistema penal. A mínima intervenção, a fragmentariedade do direito penal, devem ser observadas continuamente, para que este ramo do direito não sirva unicamente como meio de exclusão social. A Lei dos Juizados Especiais Criminais, neste ponto, veio em total sintonia com os princípios nominados e a transação penal apresenta-se, hoje, dentro do nosso ordenamento jurídico, como a mais importante forma de despenalizar, sem descriminalizar.
As limitações da lei 9.099/95 devem ser supridas por alterações legislativas e, enquanto estas não se produzem, cabe a doutrina e jurisprudência a interpretação dos institutos.
A lei nova deve solucionar os conflitos hoje existentes não só quanto aos efeitos pelo descumprimento da transação penal, mas também na possibilidade de detração penal pelo cumprimento parcial da pena, em respeito ao princípio nom bis in idem e, por conseqüência, a dignidade da pessoa humana.
[1] Alberto Silva Franco, em entrevista publicada no Jornal Sou da Paz, ano 2, nº3, 20 de abril de 2002, discorreu a respeito da produção legislativa que visa somente respostas a explosões de violência e asseverou que a Lei dos Crimes Hediondos não diminuiu a criminalidade. “Ela não aumenta, diminui ou estabiliza os índices de determinados delitos. A lei penal não serve para resolver conflitos sociais, problemas próprios de um sistema que é desigualitário”. Não é o aumento de pena que vai diminuir a criminalidade. Quando foi criada a Lei de Crimes Hediondos, se estabeleceu um desequilíbrio dentro do sistema penal. Não se pode valorar um bem jurídico chamado vida em igualdade de condições de um bem jurídico chamado patrimônio. Por exemplo, há uma lei que incluiu como crimes hediondos a falsificação de remédios. Nessa mesma lei se estabelece que a falsificação de cosméticos e de água sanitária se equipara à falsificação de remédios, e a pena prevista é de 10 anos de reclusão. Então, se uma pessoa falsificar um batom, ela pode estar subordinada a uma pena de 10 anos de reclusão. Agora faça um paralelo com uma pessoa que mata outra. Qual é a pena prevista? É de no mínimo 6 anos de reclusão. Então, essas modificações feitas na legislação levam a verdadeiros absurdos.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Gonçalves Saliba
Promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, mestrando em Ciências Juridicas pela FUNDINOPI, professor de Direito Penal e Processual Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO