Despesas públicas e o sigilo estatal

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A questão das despesas feitas com cartões corporativos do Governo Federal, e agora, sabe-se que no âmbito do Estado de São Paulo as despesas da espécie são infinitamente maiores que as da União, deve merecer análise serena,  sem paixões e radicalismos de parte a parte.

O Governo alega questões de segurança nacional para não revelar a natureza de inúmeros dos gastos feitos com esses cartões. De outro lado, setores respeitáveis de nossa sociedade sustentam que a Constituição Federal não permite quaisquer despesas sem observância dos princípios da publicidade e da transparência. Tudo deve ser mostrado ao público.

Escudar-se no dever de sigilo estatal para deixar de esclarecer a natureza dos gastos dos tipos apontados pela mídia não faz o menor sentido. Soa pior do que a surpreendente declaração do novo ministro da Integração Racial que diz colocar “a mão no fogo” quanto à legalidade das despesas feitas pela sua antecessora, o que  já o desqualifica para o exercício de tão importante cargo público que implica, necessariamente, gerenciamento de vultosa soma de dinheiro público. A tolerância de uma situação como essa é sinal de que o anormal já se incorporou na rotina da administração pública. É preciso que a sociedade vigie e examine as despesas feitas pelo novo Ministro.

Por outro lado, afirmar categoricamente que a Constituição não permite despesas públicas sem publicidade é incorrer no grave defeito de omitir a norma expressa no art. 5º, XXXIII da CF:

“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Por isso, seria insustentável, por exemplo, a tese de que a natureza de todas as despesas feitas com as atividades de informação e contra-informação de órgãos públicos competentes, deveria ser revelada e disponibilizada ao público em geral.

A Lei nº 11.111, de 5-5-2005, regulamenta o inciso constitucional retrotranscrito, elegendo como regra geral o acesso aos documentos públicos, ressalvadas as hipóteses de sigilo indispensável à segurança da sociedade e do Estado. No mesmo sentido prescreve o art. 4º da Lei nº 8.159, de 8-1-1991, que dispõe sobre a política de arquivos públicos e privados.

O art. 3º dessa Lei nº 11.111/05 permite que o Regulamento classifique os documentos abrangidos pelo sigilo estatal como sendo de mais alto grau de sigilo, hipótese em que o acesso a esses documentos ficará restringido por 30 anos, prorrogável, por uma única vez, por igual período (§ 2º do art. 23 da Lei nº 8.159, de 8-1-1991).

A classificação de documentos sigilosos, apesar de não regulada em lei, não pode ser feita aleatoriamente, mediante aposição de carimbo “confidencial” ou “reservado” neste ou naquele documento, como tem denunciado a imprensa. Ela deve ser precedida de análise criteriosa pela Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.

Cabe à autoridade competente para classificação dos documentos no mais alto grau de sigilo, antes da expiração do prazo de prorrogação de que cuida o § 2º do art. 23 da Lei nº 8.159/91, provocar a manifestação daquela Comissão existente na esfera da Casa Civil da Presidência da República, para que avalie quanto à permanência da situação de ameaça à soberania, à integridade territorial ou às relações internacionais do País, decidindo pelo levantamento da interdição ou de sua manutenção pelo tempo que estipular (§ 2º do art. 6º da Lei nº 11.111/05).

Qualquer interessado poderá, também, provocar a manifestação, a qualquer momento, daquela Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que reveja a decisão de ressalva ao acesso a documento público classificado com sendo de mais alto grau de sigilo, a qual, poderá decidir pela autorização de acesso condicionado ao documento, ou permanência da ressalva a seu acesso (§§3º e 4º do art. 6º da Lei nº 11.111/05).

Resta verificar se documentos relativos à execução de despesas públicas subsumem-se, ou não, às hipóteses de sigilo ditadas pela segurança da sociedade ou do Estado.

O Decreto nº 5.482/05, que instituiu um sítio na Internet – o Portal da Transparência do Poder Executivo Federal – em seu art. 4º excepciona do princípio da publicidade “os dados e as informações” sobre a execução orçamentária e financeira de União, “cujo sigilo seja ou permaneça  imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos da legislação”. Esse preceito regulamentar tem sua matriz no art. 86 do Decreto-lei nº 200/67, que institui o sigilo sobre movimentação de créditos com despesas reservadas ou confidenciais, prescrevendo que a tomada de contas dos responsáveis por essas despesas deve observar o seu caráter sigiloso. Resta claro, portanto, que o sigilo não afasta o dever de prestar contas.

Esse dispositivo do Decreto-Lei nº 200/67, que implantou a Reforma Administrativa, está sendo questionado no STF pelo Partido Popular Socialista, por meio de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sob o fundamento de que não teria sido recepcionado pela Carta Política de 1988.

Cabe à Corte Suprema dar a última palavra sobre o assunto, porém, documentos públicos, concernentes à execução de despesas públicas podem, em tese, no nosso entender, constituir documentos sigilosos no interesse da segurança da sociedade ou do Estado, de que cuida a parte final do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal em vigor. Afinal, tornar pública e transparente a despesa pública não se resume na indicação do montante da despesa realizada, como tem sido feito no Portal da Transparência do Poder Executivo Federal. Envolve, necessariamente, a indicação da causa da despesa e da menção expressa de sua finalidade, fato que pode, eventualmente, esbarrar nos segredos do Estado.

Outrossim, com relação às despesas públicas feitas por certas autoridades e determinados servidores públicos, como as veiculadas pela mídia (saques em dinheiro, compras em feiras de piratarias, em bares e supermercados, compras de tapiocas, abastecimento de residências oficiais etc.) difícil saber o que é pior: esconder essas despesas debaixo do tapete, ou publicá-las no Portal da Transparência. No meu modo de entender, quando esses desvios de finalidade são noticiados em órgão público,  em nome da transparência, é sinal de que há total perda de referencial ético. Querem que a sociedade aceite como normal algo que é irregular, é incorreto, é danoso ao erário e que configura improbidade administrativa, e, às vezes, conduta criminalmente tipificada.

Esses cartões corporativos devem ser extintos por ausência de base legal e que por isso mesmo são incontroláveis. As pequenas despesas, e nem sempre são tão pequenas como sustenta o governo, devem obedecer ao regime de adiantamento previsto no art. 68 da Lei nº 4.320/64, que pressupõe prévio empenho na dotação própria.

No documento materializador do empenho – a chamada nota de empenho – constará obrigatoriamente a indicação do nome do credor, a especificação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria (art. 61 da Lei nº 4.320/64), elementos esses indispensáveis ao efetivo controle e fiscalização de gastos públicos.

Finalizando, essa questão de sigilo das despesas com familiares do Senhor Presidente, que a mídia vem trazendo à tona, nada tem a ver com a segurança da sociedade ou do Estado. Outrossim, a alegação de que todas as despesas do gabinete da Presidência da República estão sob sigilo por razões de segurança do Estado não é de ser aceita, por implicar afastamento imotivado da regra geral da publicidade e transparência. Apenas os documentos públicos classificados como de mais alto grau de sigilo, por órgão público competente, é que estão sob restrição quanto à sua publicidade. E é preciso que se fundamente a existência desse ato declaratório, sob pena de tudo ser sonegado ao conhecimento público pela simples alegação de segurança do Estado.

Por outro lado, não é de ser aceito, incondicionalmente, a tese de que não devam existir despesas sigilosas, em razão da própria ressalva constitucional, para preservar a segurança sociedade e do Estado.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

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