Resumo: Na sociedade globalizada em que vivemos, onde ocorre uma perda cada vez maior do sentido de humanidade, a religião possui como aliada em seu processo cego de propagação, um dos meios de comunicação mais perigosamente acessíveis à população: a televisão. Os telespectadores, crédulos, incorporam toda parafernália salvadora que lhes é transmitida, eivada de vícios de manipulação midiática. Isso nos leva a fazer a seguinte indagação: onde está a liberdade de escolher em que acreditar? O presente artigo tem como fulcro examinar o posicionamento tomado pelos meios de comunicação quando da exibição de informações pertinentes aos conflitos religiosos imensamente debatidos nos dias de hoje.
Palavras-chave: Televisão; Manipulação Midiática; Conflitos Religiosos.
Abstract: In the globalized society that we live, in which exists an increasing loss of the sense of humanity, religion has as an ally in its blind process of spreading, the type of media more dangerously accessible to the population: television. Viewers, gullible, incorporate all the saving paraphernalia that is transmitted to them, contaminated with addictions of media manipulation. This leads us to ask the following question: where is the freedom to choose what to believe? This article has the fulcrum to examine the position taken by the media in order to display informations about the religious conflicts, greatly debated nowadays.
Keywords: Television; Media Manipulation; Religious Conflicts.
Sumário: 1. Introdução 2. Breve Traçado Histórico da Religião: Da Escolástica ao Iluminismo 2.1. A Fundação do Estado Laico 3. Conflitos Ocasionados Pela Religião 3.1. Israel (Judaísmo) x Palestina (Islamismo) 3.2. Irlanda do Norte (Protestantismo x Catolicismo) 3.3. EUA (Protestantismo) x Oriente Médio (Islamismo) 4. O Quarto Poder e a Religiosidade 4.1. Guerra Religiosa ou Política? 5. Conclusões
1. Introdução
Ao observarmos a situação alarmante que vive o Oriente Médio, onde os conflitos entre judaísmo e islamismo obrigam sua população a subsistir em constante estado de alerta, podemos constatar que nos encontramos vivendo em meio a uma intensa guerra religiosa. Entretanto, a religiosidade envolvida neste cenário difere um pouco daquela existente nos tempos medievais – quando a Igreja Católica fez milhares de vítimas através de sua Cruzada em direção à Terra Santa e dos embates travados contra o protestantismo: diante da perda cada vez maior do sentido de humanidade, hoje a religião possui como aliada em seu processo cego de propagação, um dos meios de comunicação mais perigosamente acessíveis à população: a televisão.
Os telespectadores, crédulos, incorporam toda parafernália salvadora que lhes é transmitida, eivada de vícios de manipulação midiática. Isso nos leva a fazer a seguinte indagação: onde está a liberdade de escolher em que acreditar?
Na Idade Média já existia a idéia de livre-arbítrio, mas este só poderia ser utilizado se não estivesse em desacordo com a Bíblia, ou seja, com os ditames da Igreja Católica. Sendo assim, a liberdade de ontem era tão restrita quanto a de hoje, afinal, nossa idéia de livre-arbítrio é mais do que um conceito utópico: é uma mentira.
Como disse Norbert Elias em sua consagrada obra “A Sociedade dos Indivíduos”:
“por nascimento o indivíduo está inserido num complexo funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e, talvez, desenvolver-se com base nele. Até sua liberdade de escolha entre as funções preexistentes é bastante limitada.” (ELIAS, 1994, p. 21)
Ora, também podemos escolher agir e protestar contra experiências científicas que agridam a integridade de nossa raça, ao invés de fechar os olhos e apoiar a conduta criminosa da matança de animais em prol das mesmas. Também podemos levantar e manifestar nossa indignação quando morrem, por causa do petróleo, nossos irmãos do Oriente Médio, ao invés de fingir que acreditamos nas boas intenções do Tio Sam com a invasão do Iraque. Mas não é bem assim que agimos.
Os valores televisionados nos parecem corretos, mesmo quando outras vidas humanas estão em jogo. E, por que isso acontece? Comodismo? Ignorância? Medo dos castigos e convenções estipulados? Ou simplesmente, incapacidade de amar as pessoas – nos dizeres de Renato Russo – como se não houvesse amanhã?
A TV torna-se repetitiva quando o assunto é caracterizar muçulmanos como terroristas. Mas, silencia-se na hora de divulgar a Faixa de Gaza como aquilo que realmente é: um campo de concentração[1] do presente. Por mais que a mídia tente nos convencer das justas razões do uso indiscriminado e despótico da força pelos grandes impérios, não há como não se compadecer com o genocídio que vem sendo executado contra o povo palestino.
Defendendo e disseminando sempre os seus próprios interesses – ou melhor, a intenção de seus produtores – as emissoras deixaram de lado a imparcialidade, e transformaram esse aparelho, aparentemente inofensivo, em uma das mais nocivas armas de nossos dias.
2. Breve Traçado Histórico da Religião: Da Escolástica ao Iluminismo
“Igualdade significa: poder ser diferente dos demais sem medo. Por isso sempre importa mais, aos seres humanos, a sua capacidade de ser peculiar que a sua capacidade de generalizar: sua competência para a diversidade. E toda universalização há de promover a diversidade ou não serve para nada.” Odo Marquard (in MATA, 2010, p. 5)
No ano de 391, a religião cristã foi transformada em religião oficial do Império Romano. A partir deste momento, a Igreja Católica começou a se organizar e ganhar força no continente europeu. Nem mesmo a invasão dos povos bárbaros (germânicos) no século V atrapalhou a expansão do catolicismo.[2]
Durante a Idade Média, a Igreja Católica conquistou e manteve grande poder – tudo tinha temática religiosa: desde pintura, escultura, até livros. Possuía muitos terrenos (poder econômico), influenciava nas decisões políticas dos reinos (poder político), interferia na elaboração das leis (poder jurídico) e estabelecia padrões de comportamento moral para a sociedade (poder social).
A partir do século IX, desenvolveu-se a principal linha filosófica do período, que ficou conhecida como Escolástica[3]. Essa filosofia ganhou acentos notadamente cristãos, surgidos da necessidade de responder às exigências de fé, ensinadas pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade e, por assim dizer, responsável pela unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé.
No século XIII, Tomás de Aquino incorporou elementos da filosofia de Aristóteles no pensamento escolástico. A questão chave que vai atravessar todo o pensamento filosófico medieval é a harmonização de duas esferas: "a fé" e "a razão".
Contudo, o desenvolvimento do iluminismo no Renascimento permitiu o florescimento de um pensamento crítico e individualista, o que constituiu um fator importante para o surgimento de uma corrente de reforma dos ideais da Igreja. Outros fatores também podem ser considerados como causas de contestação dos princípios tradicionais da religião cristã, ensinados pela Igreja de Roma, tais como, a ignorância do clero, a vida pouco exemplar dos clérigos e o acúmulo de privilégios eclesiásticos.
Os iluministas preocupavam-se, sobretudo, em denunciar a injustiça, a dominação religiosa, o estado absolutista e os privilégios enquanto vícios de uma sociedade que, cada vez mais, afastava os homens do seu direito natural à felicidade.
É nesse contexto que, em fins do século XVIII, a Igreja Católica passa a se sentir ameaçada por uma série de críticas feitas aos dogmas sobre os quais se apoiava a Doutrina Cristã. Essas críticas e dúvidas sobre a verdade absoluta da mensagem da Igreja aumentaram, e os indivíduos que partilhavam dessas idéias contestadoras da doutrina oficial do catolicismo eram chamados de hereges (sinônimo de ateus, ou irreligiosos). Os hereges eram condenados à fogueira no Ocidente Medieval, sendo que:
“as heresias mais obstinadas defenderam freqüentemente a tradição contra a sacralização do casamento no século XII ou a institucionalização do espírito de São Francisco no século XIII. No entanto, por mais conservadora que fosse a inspiração dos pregadores heréticos, o próprio fato de a expressarem era uma solicitação de endosso popular contra a ordem estabelecida. A austeridade de suas vidas, assim como a eloqüência de suas palavras, ofereciam a seus seguidores uma lealdade e solidariedade alternativas.” (LOYN, 1997, p. 461)
Na verdade, conforme Sérgio da Mata, o tema “religião” comporta três atitudes possíveis e distintas. A primeira é a da certeza incondicional afirmadora, que pode ser exemplificada através da resposta do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung a alguém que lhe indagou se acreditava em Deus: “Eu não creio, eu sei”.
A segunda atitude é a da certeza incondicional negadora:
“Nós a encontramos em Karl Marx, quando evoca os dizeres de Prometeu no prefácio de sua tese de doutorado: “Numa palavra, eu odeio todos os deuses”. Para o jovem jurista, tal deveria ser o principal mandamento da filosofia, a sua “sentença contra os deuses celestiais e terrestres que não reconhecem a autoconsciência do homem como a maior das divindades”. (MATA, 2010, p. 11)
A terceira atitude é a do lírico grego Simônides, cuja pitoresca história é relatada por Cícero em seu De natura deorum:
“Instado pelo tirano Hierion a dizer-lhe o que seria “Deus”, Simônides pediu um dia para refletir a respeito. Quando Hierion o procurou no dia seguinte, o sábio disse-lhe que precisaria de mais dois dias. A cada nova investida, um edido de prorrogação maior era feito. Até que o tirano, evidentemente irritado, exigiu uma explicação. Simônides disse-lhe: “Quanto mais eu penso sobre esta questão, mais obscura ela se torna”. (MATA, 2010, p. 11)
Enfim, a simples análise da história da igreja da Idade Média até os dias de hoje, nos mostra quão cruel tem sido as crendices cegas, que não aceitam opiniões divergentes sobre um assunto tão passível de contradições quanto esse. A crueldade proveniente de atitudes drásticas agride, em geral, toda a civilização humana. Logicamente, temos como representação bastante conhecida, o caso da Igreja clássica, que através do terror – período conhecido como Santa Inquisição –, da dominação política e econômica, impôs as trevas ao mundo ocidental. A selvageria cometida em nome de um Deus e um Diabo criado a partir do conhecimento dos medos mais profundos das pessoas daquela época nos releva um passado, que se faz recente, irracional. A verdadeira antítese da vida, da liberdade e do pensamento. (BETHENCOURT, 2000)
O jornalismo sensacionalista e infundado é capaz de trazer conseqüências hostis e destrutivas tanto à liberdade quanto à identidade dos indivíduos que os acompanha.
2.1. A Fundação do Estado Laico
O Estado Laico – também designado Estado Secular[4] – é aquele que não possui uma religião oficial, permanecendo neutro e imparcial no que se refere aos temas religiosos. Geralmente, o Estado laico favorece, através de leis e ações, a boa convivência entre os credos e religiões, combatendo o preconceito e a discriminação religiosa. Desta forma, no Estado laico, a princípio, todas as crenças são respeitadas. Não há perseguição religiosa.
Em alguns países laicos, o governo cria normas para dificultar manifestações religiosas em público, evitando qualquer espécie de indução à escolha de uma determinada religião.
O Brasil, teoricamente, é um país com Estado laico, pois nossa Constituição estabelece em seu artigo 5°, o qual dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, o seguinte:
“Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (…)”
Vivemos uma Era em que é preciso libertar-se de toda espécie de preconceito e pré-determinismo para só então garantir ao indivíduo a capacidade de tomar suas próprias posições. Com muita lucidez, Leonardo Boff afirma:
“A descriminalização do aborto e a união civil de homossexuais, (…) ensejam uma reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro, expressão do amadurecimento de nossa democracia. Laico é um Estado que não é confessional, como ocorre ainda em vários países que estabelecem uma religião, a majoritária, como oficial. Laico é o Estado que não impõe nenhuma religião, mas que respeita a todas, mantendo-se imparcial diante de cada uma delas. Essa imparcialidade não significa desconhecer o valor espiritual e ético de uma confissão religiosa. Mas por causa do respeito à consciência, o Estado é o garante do pluralismo religioso”. (BOFF, 2010, on-line)
Garantindo o pluralismo religioso, nosso Estado possibilita a cada um definir quais são os valores que lhe completam e quais os ideais que lhe conduzem. Entretanto, nosso Estado peca ao relegar ao esquecimento a garantia de uma outra laicidade: a laicidade cultural e política. Lamentavelmente, entre nós esta laicidade é geralmente desrespeitada:
“A maioria das sociedades atuais laicas são hegemonizadas pela cultura do capital. Nesta prevalecem valores materiais questionáveis como o individualismo, a exaltação da propriedade privada, a lassidão dos costumes e a magnificação do erotismo. Utilizam-se os meios de comunicação de massa, a maioria deles propriedade privada de algumas famílias poderosas que impõem a sua visão das coisas”. (BOFF, 2010, on-line)
É exatamente este o problema central de nossa complexa contemporaneidade. Enquanto acreditamos sermos livres e independentes para tomarmos nossas decisões, deixamos passar despercebido o fato de que somos controlados o tempo inteiro pela mídia e seu invisível comando. Será mesmo que em um país onde um bispo é exaltado como chefe de Estado e recebido com honrarias pela Presidente da República, pode-se julgar laico?
Quando ligo a televisão e por um descuido me deparo com o canal onde Edir Macedo, líder da Igreja Universal e um dos proprietários da Rede Record, deleiteia a platéia com seus despautérios embasados em uma fé alienada e cega com intuito predominantemente lucrativo, apresso-me em mudar a sintonia: toda estratégia e energia envolvidas nessa atração para hipnotizar os espectadores são demasiadamente impactantes para meu desiludido e desesperançado olhar. Não estou certa do grau de sapiência que possuo para não cair na tentação da necedade.
3. Conflitos Ocasionados Pela Religião
3.1. Israel (Judaísmo) x Palestina (Islamismo)
Uma luta que dura mais de sessenta anos e parece estar longe de uma decisão harmoniosa, a questão Palestina – surgida com a criação do Estado de Israel em 1948, que culminou com a 1ª Guerra Árabe-Israelense – com o Estado de Israel, não se restringe, apenas, à questão religiosa.
Para o professor Peter Demant (FERRAZ, 2009, on-line), o conflito diz respeito a duas populações que se debatem por um mesmo pedaço de terra:
“Porém, o conflito recebeu, nas últimas décadas, cada vez mais significações religiosas. Segundo ele, uma suposta proibição divina contra uma solução de meio termo, ou seja, de partilha do território em dois Estados, impossibilita a única solução política que pode funcionar aqui na Terra: a criação de dois Estados, um árabe-palestino e um israelense-judeu”. (FERRAZ, 2009, on-line)
Enquanto não se faz possível vislumbrar uma solução pacífica, os atentados continuam e milhares de palestinos continuam refugiados em países como a Síria e o Líbano.
3.2. Irlanda do Norte (Protestantismo x Catolicismo)
O conflito entre a minoria nacional católica, Ulstler, e a maioria protestante na Irlanda do Norte é produto da formação da Grã-Bretanha como Estado-nação, e consiste em uma combinação de fatores étnicos, políticos, econômicos, religiosos e sociais que surgiram ainda na Idade Média. Durante o século XIX, cresceram as organizações nacionalistas católicas no sul da Ilha, principalmente na cidade de Dublin. Eram as sementes do Exército Republicano Irlandês (popularmente conhecido como IRA, que provém do inglês Irish Republican Army), é um grupo paramilitar católico e reintegralista, que pretende a separação da Irlanda do Norte do Reino Unido e reanexação à República da Irlanda.
Em 2005, o IRA anunciou que abandonaria sua "campanha armada" e continuaria o processo de desarmamento, o que deve ajudar a retomada do processo de paz na Irlanda do Norte. Declarou também que deve prosseguir com sua luta pela unificação da região com a República da Irlanda pela "via política". Com a decisão, o grupo põe fim a mais de 30 anos de violência, que deixaram ao menos 3.600 mortos.
3.3. EUA (Protestantismo) x Oriente Médio (Islamismo)
O choque entre duas culturas define o mundo contemporâneo. Na véspera de completar nove anos dos atentados do 11 de Setembro, um pastor americano ameaçou queimar o Alcorão, mobilizando lideranças mundiais para evitar uma crise entre o Ocidente e o Islã. Enquanto isso, na Europa, o Senado francês aprovou uma lei polêmica que proibia o uso de véu por muçulmanas, seguindo uma tendência conservadora entre governos europeus. Cada vez mais, o antagonismo entre as modernas nações capitalistas e países islâmicos se torna fonte de conflitos políticos e religiosos no mundo pós-Guerra Fria . Mas, parodiando Shakespeare, “há algo de podre no Reino da Dinamarca”… Afinal, como o Islã ganhou tanta importância no panorama geopolítico do mundo moderno? Por que a mídia ocidental tem tanta necessidade em estigmatizar o Oriente como uma região violenta?
De acordo com José Renato Salatiel (2010, on-line)[5], até poucas décadas atrás, durante a Guerra Fria, o mundo era dividido em três blocos econômicos e ideológicos distintos: havia o Primeiro Mundo, representado pelos Estados Unidos; o bloco socialista, liderado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e o chamado Terceiro Mundo, formado por países pobres e não alinhados (entre eles o Brasil).
Neste contexto, o islamismo surgiu em sua versão fundamentalista como movimento religioso e intelectual, nos anos 1970, e se espalhou rapidamente pelo Oriente Médio, África, Ásia e Europa. Para isso, contou com o financiamento de potências árabes, ricas em petróleo, e ocidentais, que os viram como alternativa a movimentos nacionalistas e comunistas. (SALATIEL, 2010, on-line)
Com o colapso dos regimes comunistas no final dos anos 1980, os choques culturais com o Islã substituíram a antiga disputa entre as superpotências. Isso ocorreu primeiro devido à crescente importância das nações árabes, decorrente da alta do preço do petróleo, até os anos 1980, e depois em razão do crescimento populacional. O aumento da população de jovens também alimentou o fundamentalismo. Depois de doutrinados, os jovens se espalharam pelo Ocidente e, com a maior proximidade entre os povos, foram acentuadas as diferenças religiosas e de valores culturais. (SALATIEL, 2010, on-line)
Em segundo lugar, enquanto na maior parte da Europa a queda de ditaduras socialistas deu lugar a regimes democráticos, em países islâmicos, ausentes de tradição democrática, o fundamentalismo foi adotado. Um exemplo foi a Revolução Iraniana de 1979, que precedeu o fim do comunismo. Com a esquerda combalida, a afirmação de identidades regionais em torno do islamismo emergiu como principal resposta ao processo de globalização. (SALATIEL, 2010, on-line)
Os ataques do 11 de Setembro nos Estados Unidos foram o ponto alto desse embate cultural. Desde então, a tensão entre os povos islâmicos e ocidentais tem ditado manobras diplomáticas e políticas, com um forte – e perigoso – apelo a radicais de ambos os lados. Parafraseando Drummond, e agora meu caro José? O que esperar dos próximos anos? O fim do embate ou o início de uma nova grande guerra? Se depender da mídia, talvez os ânimos nunca se acalmem, e os sentimentos de indignação e ira só se agravem. Afinal, atraindo a população para se rebelar contra causas assim, ela se esquece das mazelas sociais em que vive e contra as quais deveria realmente se manifestar.
4. O Quarto Poder e a Religiosidade
“A mídia sempre serviu o poder, é um dos rostos do poder. Depende do Estado e o Estado da mídia. E eis que surge a oportunidade de desfazer a relação maligna. E de aproximar o Brasil e seus meios de comunicação da contemporaneidade do mundo. Que se ajude quem merece, esta é a questão. Mas que se estabeleça, via Congresso, uma lei da mídia, para limitar os poderes de cada um e definir as regras da competição justa. Aquela que nunca houve.” Mino Carta
O conceito de “quarto poder” surgiu como sinônimo de jornalismo e, de acordo com Venício A. de Lima (2009), foi no contexto das revoluções liberais, isto é, da luta da burguesia contra o absolutismo e o poder da nobreza no final do século XVIII (iluminismo). O "quarto poder" pressupunha, além da liberdade de expressão individual, uma imprensa independente, livre da censura do Estado, formadora da opinião pública e exercente do papel de "contrapoder" em relação aos três poderes concebidos por Montesquieu — o Executivo, o Legislativo e o judiciário. Assim, nessa antiga visão da imprensa como "quarto poder", “sua independência era entendida como independência do Estado e seu vínculo com o poder econômico era considerado apenas parte da ordem natural das coisas. Hoje, nada pode ser mais distante da realidade.
Afinal, a televisão é vista como um instrumento para obter lucros financeiros e não transmitir cultura e informação real e autônoma como atesta LIMA (2009) nas linhas que se seguem:
“A mídia, ou a indústria da comunicação, apesar de eventuais crises financeiras localizadas, transformou-se num dos principais negócios das últimas décadas. Exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado, o setor está reduzido a uns poucos megagrupos privados que tendem, cada vez mais, a controlar o que vemos, ouvimos e lemos. No Brasil, uma dezena de grupos familiares empresariais, alguns associados a conglomerados multinacionais, controlam praticamente todo o fluxo da informação, do entretenimento, da publicidade e, mais recentemente, da telefonia fixa e móvel”. (LIMA, 2009, on-line)
Detentora tanto de um poder econômico quanto de um poder político, a televisão está munida de todo o aparato necessário para dominar e incutir o que bem entender. Recentemente, porém, ela tem servido para propagar os interesses políticos ocultados pela religião ou ainda, pela religiosidade. A sutil diferença entre estes dois conceitos que parecem sinônimos é estabelecida por Karina Kosicki Bellotti no seguinte trecho:
“Na nossa sociedade ocidental, tem-se a idéia de que a "essência" da religião estaria expressa na sistematização teológica (conhecimento acadêmico institucional). Porém, se pensarmos em religião como um sistema de crenças e práticas, constatamos que religião não é somente Teologia, pois é necessário compreender as relações de poder que definem o que é correto e o que é errado dentro de uma tradição institucionalizada. Do mesmo modo é importante ter em mente que, além desses lugares de poder, há práticas religiosas não institucionalizadas, tanto comunitárias quanto individuais – estas, mais conhecidas como religiosidades. Não há como desqualificar um elemento em favor de outro – dentro da perspectiva histórico cultural, tanto crenças como práticas conferem os mais variados sentidos religiosos. Tomar posicionamento de uma ou de outra significa identificar-se com um lugar de poder. O que devemos fazer é entender como diferentes crenças e práticas fazem sentido para as pessoas e os grupos que as adotam, em contextos históricos específicos”. (BELLOTTI, 2004, p. 101)
Tomando como ponto de partida tanto crenças quanto práticas contemporâneas, notamos um preocupante alastramento da intolerância religiosa.
Necessitamos realizar um diálogo constante e, diga-se de passagem, elucidante, à respeito da lavagem cerebral – e de dinheiro – que vem ocorrendo indiscriminadamente em nossa sociedade através da parceria religião-televisão. Esse diálogo deve consistir em uma forma tolerante de escolher uma religião respeitando e aceitando as outras mutuamente, sem exaltar e apelar para conceitos irracionais e desprovidos de veracidade. Quem sabe assim, o ser humano e o mundo poderão ser redimidos perantede todas as atrocidades que cometeram e continuam cometendo?
4.1. Guerra Religiosa ou Política?
Será mesmo que todas as tragédias que têm sido noticiadas envolvendo tão distintas facções humanas são apenas de cunho religioso?
Na verdade os povos não estão em guerra unicamente por causa da religião. Os homens estão nessa guerra guiados pelos mesmos motivos de outrora: poder. Em outras palavras, estão guerreando para determinar quem sairá vencedor e poderá mandar e dominar os perdedores, ou ainda, quem será o detentor supremo do poder político e econômico.
Logicamente, nos países do Oriente Médio há uma porcentagem muito grande de indivíduos com baixa escolaridade o que facilita sua manipulação e os tornam propensos ao fanatismo. Os homens-bomba palestinos[6], por exemplo, são preparados desde a infância, pelos ditadores no poder, para o suicídio. Lamentavelmente, um homem-bomba consegue ferir pessoas a um raio de até 200 metros da explosão. Portanto, na hora da detonação, os terroristas escolhem locais cheios de gente, como centros comerciais… Escolhe… escolhem não apenas tirar sua própria vida como também a de outros inúmeros inocentes. Que sociedade é essa? Que valores são esses que estão sendo passados de geração a geração? Aonde vamos chegar desse jeito – na nossa autodestruição?
Outro fato interessante a respeito da Palestina é que na conhecida luta que trava com Israel, a causa do conflito é bem mais territorial do que religiosa. Se analisarmos com acuidade o percurso histórico, veremos que antes da ocupação do território pelos judeus não havia homens-bomba que explodissem por causa da religião.
Baruch Espinoza esteve à frente de seu tempo pela racionalidade do seu pensamento ao combater a irracionalidade religiosa vigente na época, como podemos perceber neste excerto extraído da obra de André Cresson:
“Quanto ao homem, Spinoza tem razão: não é “um império dentro de um império” malgrado a tradição. É um animal como os outros: mas um animal que a vida em sociedade protegeu e conduziu a um estado de perfeição superior. Nenhum motivo para emprestar-lhe uma alma independente do corpo: seus sentimentos, seus pensamentos, suas vontades procedem da sua atividade cerebral. Não tem, além do mais, uma razão inata distinta dos seus sentidos. A razão do adulto é o resultado dos hábitos que adquiriu e da educação que recebeu. Não tem uma consciência moral de nascença que se oponha aos seus instintos egoístas. Sua consciência é apenas o produto das pressões exercidas sobre ele pela sociedade. Não tem um livre-arbítrio de que dependam as suas decisões. É o indivíduo, sim, o eu que age. Mas sempre age apenas segundo o que é, em virtude das circunstâncias em que se encontra. Ora, ele não escolheu ser o que é, nem nascer onde nasceu. Tudo o que pensa, tudo o que faz, é determinado. E que loucura imaginar que o homem, surgido no Paraíso terrestre, deva a um pecado ridículo a decadência em que caiu! A idade de ouro não está atrás de nós mas à nossa frente. O homem não é um “Adão degradado”. É um animal que a sociedade sem cessar melhora. Graças ao progresso, será, no futuro, bem superior ao que é.” (CRESSON, p. 18-19)
Assim como Espinoza não precisava ir contra os ensinamentos e normas de conduta existentes, nós também não precisamos. Mas, se existir qualquer vestígio de sobriedade em nossa consciência, devemos isso a nós – seres humanos – como o todo que constituímos.
Há uma diferença entre racionalidade humana propriamente dita – se é que podemos assim denominá-la, afinal, a racionalidade por si só já é humana – e a racionalidade técnica.
Essa racionalidade técnica, predominante nos dias de hoje, que está sendo desenvolvida em uma velocidade absurda, acaba por suscitar apenas a destruição. É como se houvesse uma falta de razão na própria racionalidade, posto que não existe uma razão capaz de explicar, convincentemente, o motivo de uma nação como o Japão se submeter a uma catástrofe como a explosão da usina nuclear de Fukushima, depois de ter sofrido violentamente com outros desastres nucleares: Hiroshima e Nagasaki. Como chamar de racionalidade técnica, a realização de experimentos nucleares em Chernobyl, Ucrânia, onde a liberação de uma quantidade letal de material radioativo contaminou uma quilométrica região atmosférica resultou em uma quantidade
5. Conclusões
Qualquer espécie de extremismo suscita consequências drásticas para quem o pratica. Norteados pelo poder e pelo dinheiro, não colocamos limite algum na satisfação de nossas vontades mais desapiedadas. Devemos nos policiar, e muito, ao ligarmos a TV, ao lermos uma notícia, ao ouvirmos uma versão da história. A mídia constitui um meio de dominação ideológica, capaz de ludibriar a audiência com falsas promessas de milagres, curas, prosperidade, em troca de doações em dinheiro – uma extensão religiosa do que a mídia como um todo já seria (conforme teóricos marxistas da comunicação).
Seja através da religião, seja através da ciência, o homem tem-se utilizado desses subterfúgios de forma apelativa para conquistar seguidores e obter êxito em sua empreitada, esquecendo da relevância dos seres humanos que serão esvaziados pelo caminho.
Ao transmitir informações ambíguas e pouco contundentes, os responsáveis pela programação da televisão convertem-se em vilões sem alma, que privam as pessoas de sentir compaixão, de conhecer a realidade, de se identificar ou se rebelar com os acontecimentos e, de tomar qualquer atitude viável para viabilizar a vida em meio ao caos.
A demência que a Igreja semeou ao longo da evolução do mundo ocidental, através da exportação de câmaras de torturas e bárbaros inquisidores, bem como da procura de pessoas que se atreviam a pensar, representa um atraso tecnológico e cultural de pelo menos mil anos na idade cronológica do homem. Então, por que insistimos em regredir e incidir no mesmo erro cometido? Evoluímos tão pouco assim?
A única coisa que a guerra consegue alcançar, depois de sua concretização, é a propagação de um sentimento de repugnância, de arrependimento e, sobretudo, de desumanidade. O progresso, que não deve ser confundido com evolução, passa por cima de tudo e todos, chegando ao ponto de utilizar a religião de forma deturpada, como pretexto para justificar e eclodir guerras, cujos exemplos mais flagrantes são a guerra árabe-israelita e a guerra no Iraque.
Deixemos que sejam resolvidos, por vias diplomáticas, os questionamentos que a racionalidade, enquanto sã, indagar. Deixemos a televisão desligada e os livros e corações abertos. Creio serem esses os melhores – e únicos – remédios.
Referências bibliográficas
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LIMA, Venício A. de. Mídia – a ilusão do quarto poder. 2009. Disponível em: <http://www2.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/coluna-midia-ilusao-do-quarto-poder>. Acesso em: 23 mar. 2011.
LOYN, Henry R. Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1997.
MATA, Sérgio da. História & religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. Disponível em: <http://www.autenticaeditora.com.br/download/capitulo/20100713114955.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2011.
SALATIEL, José Renato. Choque entre duas culturas define mundo contemporâneo. 2010. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/atualidades/ocidente-e-isla-choque-entre-duas-culturas-define-mundo-contemporaneo.jhtm>. Acesso em: 25 mar. 2011.
Notas:
[1] Campo de Concentração: local cercado, às vezes com cercas eletrificadas, para onde pessoas são levadas contra a sua vontade, por ordem de governos, comandos militares etc., em período de guerra ou não, sob o pretexto de serem indivíduos nocivos à sociedade, inimigos em potencial, elementos perigosos ou qualquer outro motivo que sirva para justificar a supressão da sua liberdade. Fonte: Dicionário Houaiss.
[2] Disponível em: < http://www.suapesquisa.com/idademedia/igreja_medieval.htm>. Acesso em: 23 mar. 2011.
[3] Por Escolástica, em sentido restrito, entende-se a especulação filosófico-teológica que se desenvolveu nas escolas da Idade Média de Carlos Magno até a Renascença. Fonte: HIRSCHBERGER, Johannes. A filosofia escolástica. Disponível em: < http://www.consciencia.org/filosofia_medieval8_escolastica.shtml>. Acesso em: 21 mar. 2011.
[4] Há quem entenda que o termo laico provém de leigo, portanto diretamente do universo religioso; outros, no entanto, entendem que laico provém de laikós, do grego antigo, que significa povo. Com uma origem ou com outra, o termo foi redefinido, de modo a designar um atributo do Estado. Como a língua inglesa não tem uma palavra equivalente a laico, quem usa essa língua emprega o termo secular no lugar daquele.
[5] No final de seu texto, Salatiel indica alguns livros e filmes visando um aprofundamento no assunto. São eles: “Ocidente x Islã: uma história do conflito entre dois mundos” (L&PM, de Voltaire Schilling, que investiga as origens históricas das hostilidades entre o Ocidente e os povos islâmicos); “O Choque de Civilizações” (Ponto de Leitura, de Samuel Huntington, que argumenta que a maior rivalidade do panorama internacional que emerge após a Guerra Fria se dá em torno de diferenças culturais); “O Islã” (Publifolha, de Paulo Daniel Farah, que explica as origens do islamismo e tem um capítulo dedicado à comunidade islâmica no Brasil); “Lawrence da Arábia” (1962, clássico do cinema baseado na biografia de T.E. Lawrence, um oficial inglês enviado à península arábica durante a Primeira Guerra Mundial); “Cruzada” (2005, filme ambientado no tempo das Cruzadas, no século XII, quando cristãos e muçulmanos lutavam pelo controle da Terra Santa); e “Shahada” (2010, película que narra a história de três jovens muçulmanos que vivem entre a tradição islâmica e os hábitos modernos na Alemanha).
[6] Inspirados pelas ações de xiitas iranianos, grupos radicais palestinos como Hamas, Jihad Islâmica e a Brigada dos Mártires de Al-Aqsa fizeram do homem-bomba sua arma favorita na luta contra Israel. Hoje, jovens são doutrinados em escolas muçulmanas ou mesquitas e recebem prêmios pelo "ato de fé" – o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein chegava a pagar 25 mil dólares para a família de um suicida. Fonte: Revista Mundo Estranho. Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/historia/pergunta_287059.shtml>. Acesso em: 21 mar. 2011.
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Mestranda em Sociologia pela mesma Universidade.
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