Dialeticidade dos recursos, novo CPC e o princípio da primazia do julgamento do mérito

Resumo: ao interpor qualquer recurso, a parte deve apresentar as razões recursais, declinando os fundamentos pelos quais é necessária a reforma ou anulação da decisão recorrida (princípio da dialeticidade dos recursos), sob pena de não conhecimento da irresignação recursal. A questão que se coloca, e tem sido debatida nos meios acadêmico e jurisprudencial, diz respeito à possibilidade, ou não, de saneamento de eventual deficiência na fundamentação do recurso, nos termos do art. 932, parágrafo único, do novo Código de Processo Civil, sendo o principal objeto deste ensaio.

Palavras chave: recursos. Dialeticidade. Primazia julgamento mérito. Novo CPC.

Abstract: When lodging an appeal, the party must present the grounds of appeal, declining the grounds on which it is necessary to reform or annul the contested decision (principle of the dialeticity of appeals), failing which there is no knowledge of the lack of appeal. The question that arises, and is already debated in the academic and jurisprudential circles, concerns the possibility, or not, of sanitation of any deficiency in the grounds of the appeal, under the terms of art. 932, sole paragraph, of the new Code of Civil Procedure, being the main object of this test.

Keywords:  resources. Dialeticity. Primacy judgment merit. New CPC.

A irresignação é inerente ao ser humano e por isso a legislação prevê a possibilidade de reexame da decisão judicial através da interposição de recursos, julgados por órgão jurisdicional hierarquicamente superior. Mas para tanto é indispensável que o recorrente aponte e demonstre os equívocos interpretativos do julgador.

Trata-se do princípio da dialeticidade dos recursos que preconiza que “o recurso tem de combater a decisão jurisdicional naquilo que ela o prejudica, naquilo que ela lhe nega pedido ou posição de vantagem processual, demonstrando o seu desacerto, do ponto de vista procedimental (error in procedendo) ou do ponto de vista do próprio julgamento (error in judicando)”[1].

Não obstante, na prática são comuns recursos que se limitam a reproduzir, em seu corpo, os fundamentos da petição inicial ou da contestação sem atacar especificamente os fundamentos da decisão. E tal prática vem sendo combatida pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (v. g. Súmulas 182, STJ).

O novo Código de Processo Civil, aprovado pela 13.105, de 16 de março de 2015, engrossou o coro e positivou o princípio da dialeticidade dos recursos, mitigando a prática consistente em copiar e colar os fundamentos expostos em outros atos processuais.

Nesse sentido, o art. 932, inciso III, do CPC, autoriza o relator a não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida. No mesmo sentido, o § 1º do art. 1.021 estabelece que “na petição de agravo interno, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada”. Comentando o art. 932, inciso III, Teresa Arruda Alvim Wambier et al esclarece que “[…] O que se pretende com esse dispositivo é desestimular as partes a redigir recursos que não sejam umbilicalmente ligados à decisão impugnada”[2].

Daniel Amorim Assumpção Neves, a propósito do novo comando do art. 1.021, § 1º, considera que o recorrente, ao invés de “copiar” e “colar” os fundamentos da petição inicial ou da contestação, pode fazer remissão aos mencionados fundamentos jurídicos. E arremeta argumentando que “o limite dessa fundamentação remissiva é verificado na matéria fática, porque nesse caso a impugnação deverá se desenvolver no tocante à valoração probatória, o que, por razões lógicas, não poderá ser feita nem na petição inicial, nem na contestação”[3].

A jurisprudência do STJ, ainda na vigência do CPC/1973, registrava precedente no sentido de que “a reprodução, na apelação, dos argumentos contidos na petição inicial não impede, por si só, o conhecimento do recurso, mormente quando da fundamentação se extraia irresignação da parte com a sentença prolatada”[4]. O mencionado acórdão serve de alerta aos magistrados para que interpretem com cautela as novas disposições legais, analisando casuisticamente o mencionado pressuposto recursal.

A ideia é a mesma daquela constante do disposto no § 2º do art. 322 do CPC, que trata da interpretação do pedido e determina que nessa atividade o intérprete analise o conjunto da postulação.  

De outro lado, não se pode olvidar que a nova Codificação consagrou um modelo cooperativo de processo e, consequentemente, impôs ao magistrado um dever de prevenção, consistente na necessidade de apontar as deficiências postulatórias das partes e facultar-lhes oportunidade para correção. Não por outra razão que o parágrafo único do art. 932 assentou que “antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível”.

O referido preceptivo legal prestigia o que se tem denominado de princípio da primazia do julgamento do mérito, ao valorizar o conhecimento da irresignação recursal com a possibilidade de suprimento de vícios formais. A questão, contudo, torna-se complexa quando se pensa nos limites à sanabilidade dos vícios formais, especialmente tendo em mira as particularidades recursais.

Emerge, nesse cenário, a seguinte situação: diante da deficiência de fundamentação do recurso, que não impugna especificamente os fundamentos da decisão recorrida, o relator deve conceder prazo para que a parte complemente as razões de seu recurso ou deve inadmiti-lo imediatamente? A questão posta relaciona-se ao pressuposto recursal da regularidade formal que, como é sabido, exige que o recurso seja acompanhado das respectivas razões recursais, o que, aparentemente, seria um vício sanável.

No entanto, a fundamentação insuficiente não pode ser complementada, porque, sendo a pretensão recursal manifestada quando da sua interposição, a omissão enseja preclusão consumativa. Até porque o princípio da complementariedade tem aplicação restrita no processo civil, incidindo apenas e, excepcionalmente, nos embargos de declaração.

Nesse sentido é o magistério de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha, para quem “a regra não permite a complementação das razões recursais nem a formulação de pedido recursal que não fora formulado originariamente. Nesses casos, a boa-fé processual impede que se permita esse tipo de fracionamento da elaboração da demanda recursal”[5].

Parece que a tendência é o prevalecimento deste entendimento, valendo lembrar, a propósito, que o Superior Tribunal de Justiça editou o Enunciado Administrativo nº 06, o qual dispõe que “nos recursos tempestivos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016), somente será concedido o prazo previsto no art. 932, parágrafo único, c/c o art. 1.029, § 3º, do novo CPC para que a parte sane vício estritamente formal”.

Na mesma linha, os integrantes da 1ª Turma do STF, durante a discussão e julgamento do ARE 953.221/SP e do ARE 956.666/PR, ambos de relatoria do Ministro Luiz Fux (julgados em 07 de junho de 2016) abordaram o tema, oportunidade em que os magistrados registraram os seus posicionamentos: Marco Aurélio manifestou-se favoravelmente à concessão de prazo para a complementação das razões recursais, enquanto os Ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso entenderam inadmissível a concessão de prazo em razão da preclusão. Vale dizer, a maioria dos Ministros consideraram que o prazo de cinco dias previsto no parágrafo único do artigo 932 do novo Código de Processo Civil aplica-se apenas em relação à sanabilidade dos vícios formais, tais como a ausência de procuração ou de assinatura, e não para complementar a fundamentação.

É bem verdade que o Pretório Excelso não decidiu a questão em sede recurso extraordinário com repercussão geral, constituindo o mencionado entendimento mero obter dictum.
 

Notas
[1] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 671,
[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil: Artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1327.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 1491.
[4] STJ, AgRg no AREsp 207.336/SP, 3ª T., rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 09.06.2015, DJe 12.06.2015.
[5] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3: Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processos nos Tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 54.

Informações Sobre o Autor

Renato Pessoa Manucci

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Tutor do curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Estácio/CERS. Professor Universitário. Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Bragança Paulista. Advogado


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