Resumo: O presente artigo é oriundo de um estudo iniciado ainda na época da minha graduação em direito, fruto de uma mazela social que se perdura por décadas em meio a nossa sociedade, onde se prende, se encarcera, tirando de circulação sem a mínima preocupação do resultado futuro daquela ação, tratando o individuo com total arbitrariedade sem qualquer dignidade. O estudo consistirá em demonstrar o resgate da dignidade da pessoa humana e será dividido em três partes, uma direcionada à dignidade da pessoa humana, que será interligada diretamente a atividade do trabalho exercida no devido cumprimento da pena por parte do indivíduo apenado, onde se buscará ressaltar a sua grande importância como um meio digno ressocializador e de reinserção social. O objetivo é dar ampla visão ao processo de ressocialização do apenado, demonstrando a importância da aplicação do trabalho de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul no País. Será demonstrada a doutrina referente ao assunto abordado, com a linha de pensamento de diversos doutrinadores, suas devidas críticas e sugestões. O artigo no seu fim trará uma narrativa com o intuito de gerar uma visão realista do que ocorre na prática, consistindo assim tal narrativa em um relato real e pessoal, direcionado a uma sociedade cansada que não aguenta mais e clama por paz.
Palavra chave: Dignidade da pessoa humana, trabalho, ressocialização e reinserção social.
Sumário: 1. Introdução 2. Conceito 3. Origem Histórica 4. Legislação Internacional 4.1. Legislação Constitucional 4.2. Legislação Infraconstitucional 5. Dignidade Humana e o Labor Ressocializador 6. Da Atividade Laborativa 6.1. Direitos e Deveres 7. Controle e Gestão 8. O Fenômeno da Ressocialização 9. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A escolha da temática cujo objeto dessa pesquisa se deu em face das mazelas do sistema carcerário brasileiro, são problemas que se arrastam por décadas e que influenciam diretamente em nosso cotidiano. É notório que esse sistema não recupera quase ninguém, trata-se de um sistema falho, e por esse motivo deve ser reformulado por inteiro, um novo programa aplicado em todo o Brasil de forma igualitária, gerido apenas pela União, proporcionado trabalho para toda a população carcerária a fim de restabelecer a dignidade dessas pessoas e assim reinseridas de maneira humanizada em meio a nossa sociedade.
Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório e de cunho bibliográfico, buscando identificar as distintas concepções e os fundamentos da problemática de maneira aprofundada.
O objetivo geral é repassar um novo entendimento a esse tão importante instituto que é a ressocialização, demonstrando os benefícios da aplicação do trabalho de maneira uniforme em face ao cumprimento da pena por parte dos apenados, aplicando a atividade laborativa de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul, pois a sua imposição tem o propósito de evitar o ócio, gerar aptidões e profissões àqueles que nunca sequer exerceram alguma atividade de forma digna, sua importância não só para quem está submetido, mas também para toda a sociedade num modo geral.
A atividade laborativa a ser exercida pelo preso está disciplinada na lei 7.210 de 11 de julho de 1984, esta lei trata da fase executória da pena num todo, estabelecendo diretrizes e regras com relação à execução. A citada lei tem por objetivo não só fazer com que o condenado cumpra sua pena, como também propiciar a reinserção social do condenado de forma humana após o cumprimento de sua sanção, podendo-se dizer que tal lei possui um “espírito humanitário”, pois reconhece a atividade do trabalho como condição favorecedora à dignidade da pessoa humana.
Primeiramente será demonstrado o conceito relacionado ao presente estudo, o surgimento do trabalho em face ao cumprimento da pena com a sua devida evolução histórica, no mundo e no Brasil. Com relação às legislações, o presente artigo trará o regramento pertinente ao estudo abordado, iniciando assim com a Legislação Internacional, passando pela Constitucional e por fim a Infraconstitucional.
No tocante aos aspectos doutrinários, será demonstrada a visão e o posicionamento de doutrinadores renomados com relação ao caso, ressaltando a importância do trabalho não só como meio ressocializador, mas também como meio propiciador e restabelecedor da dignidade da pessoa humana.
Por fim as considerações finais deste artigo, reforçando o entendimento de que o trabalho é o maior e o melhor meio capaz de gerar a devida ressocialização do indivíduo, tornando-o sociável e apto a retornar ao convívio em meio ao núcleo social. Porém, será que somente o emprego deste meio ressocializador é capaz de gerar o fenômeno da ressocialização, ou seja, será que haverá a necessidade da união de outros elementos para que tal processo se concretize a fim de evitar um futuro retorno do indivíduo ao sistema, pois um novo retorno significará uma nova reincidência por parte deste indivíduo que consequentemente voltará à estaca zero, sendo então aquele árduo processo ressocializador desprendido em vão.
2. CONCEITO
Hodiernamente existe uma grande preocupação por grande parte do mundo em tutelar a dignidade da pessoa humana, é um tema que ganha relevante destaque por ser um direito fundamental e de comando estruturante à organização do Estado, encontrando-se hoje no epicentro jurídico dos Estados respeitadores e garantidores dos direitos fundamentais em prol da valorização da pessoa humana (AFONSO DA SILVA, 2000).
Seu significado está ligado intrinsecamente ao ser humano, se traduz em respeito e proteção que ganham contornos universais, podendo seu conceito ser visto de uma forma mais técnica nas palavras do Constitucionalista Alexandre de Moraes, que assim dispõe:
“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” (MORAES, 2005, p.16).
O conceito dado por Moraes encaixa-se perfeitamente ao assunto que será abordado mais a frente, pelo fato de que realmente há uma diminuição no exercício dos direitos fundamentais do indivíduo que se encontra na custódia do Estado e não a sua total retirada.
Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco, reforçam ainda mais o entendimento acima ao acrescentar um plus a temática da seguinte forma:
“Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto […]” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p.418).
O indivíduo jamais pode ser visto ou tratado como um objeto, não podendo ser atingido por qualquer ato de caráter degradante ou desumano, mesmo estando privado de sua liberdade.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet:
“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos” (SARLET, 2001, p.60).
É tamanha a importância da dignidade na vida do ser, a sua falta causa prejuízos imensuráveis, tanto na vida daqueles que a nunca tiveram e, portanto não sabem seu real significado, quanto daqueles também que a jogaram fora. Dignificar e ressocializar a pessoa humana não é uma tarefa fácil, necessita de meios eficazes e capazes de realizar tal feito, todavia, o trabalho por sua vez, é visto como um elo por grande parte da doutrina à concretização desse feito.
O conceito abrangente de trabalho surgiu na antiguidade precisamente na idade média, Amauri Mascaro Nascimento nos traz diversas concepções remotas acerca do trabalho, cada uma buscava através de suas ideologias atribuir um significado ao trabalho conforme fez a corrente filosófica.
Sendo assim, Nascimento (2001) relata a visão de Aristóteles, visão esta de caráter negativo que buscava conceituar o trabalho como uma escravidão, porém necessária, ou seja, um regime social que o homem se sujeitava, utilizando-se de seu suor e de sua força, para que outros homens pudessem lograr fins econômicos e consequentemente tornarem-se homens virtuosos. O pensamento de Aristóteles significa dizer que o homem deve ser livre para se dedicar a própria perfeição, ou seja, o trabalho impede o homem de a consegui-la. Percebe-se que para o pensamento clássico grego o trabalho é tido como um castigo oriundo dos deuses, sendo algo que humilha o homem e por isso deve ser evitado.
O Renascimento nos traz uma nova concepção acerca do trabalho, um novo desenvolvimento, elevando a consciência em relação ao trabalho como um valor. O valor do trabalho passa a ser então o fundamento de todas as concepções segundo Amauri Mascaro Nascimento, varias contribuições surgiram ao longo do tempo no sentido de valorizar ainda mais o conceito de trabalho.
Amauri em suas palavras nos traz o pensamento exposto de Giambatista Vicco, expondo o seu conceito em relação ao trabalho como o conhecimento e realização da cultura, dos produtos históricos e morais dos homens, e não termina por aí, preceitua ainda que: “o espírito, como atividade e objetivação, faz do trabalho o próprio meio de o homem encontrar-se” (NASCIMENTO, 2001, p.160).
Há de se perceber a mudança radical na concepção do significado de trabalho, a valoração e a visão positiva faz com que o trabalho seja visto como um bem útil e necessário ao homem, pois trabalho é, em conclusão, nada mais nada menos que a vida do ser propriamente dita.
A ressocialização por seu fim, é uma palavra que diversos autores costumam utilizar para abordar temas voltados ao sistema prisional. Alguns doutrinadores procuram utilizar-se de outras denominações como reeducação social, recuperação ou reinserção social, sendo que ambas estarão voltadas à mesma finalidade, que nada mais é, do que o ato ou efeito de tornar-se sociável (MICHAELIS, 2013).
O cumpridor da pena devidamente ressocializado, torna-se uma pessoa sociável que consequentemente estará apto ao convívio em meio ao núcleo social, em seu centro, e não as margens da sociedade como vivia anteriormente. Para Bitencourt (2003, p.90), o fenômeno da ressocialização implica em um processo comunicacional de profunda interação entre indivíduo e sociedade.
Já para Damásio (1999, p.26), a ressocialização é a aplicação de um conjunto de medidas voltadas à recuperação do apenado, cujo objetivo é a sua reinserção de forma humanitária ao meio social. A forma humanitária que Damásio se refere, é aquela que vem a conceber ao individuo o respeito mínimo e o tratamento digno que um ser humano há de fazer jus.
O trabalho prisional teve seu surgimento segundo relatos históricos a partir do século XVI, em estabelecimentos prisionais holandeses e ingleses. A concepção de trabalho penitenciário seguiu historicamente o desenvolvimento progressivo da pena privativa de liberdade, sendo que, inicialmente a atividade laboral estava ligada a idéia de vingança por parte da sociedade, coadunada com o castigo ao individuo cumpridor da pena.
Com o passar do tempo houve inúmeras mudanças, dentre elas a visão do Estado em obter lucros com a mão de obra que detinha, “encontrando-se na atividade laborativa do preso uma fonte de produção para o Estado, o trabalho foi utilizado nesse sentido, dentro das tendências utilitárias dos sistemas penais e penitenciários” (MIRABETE, 2000, p.87).
O trabalho praticado pelos presos à época era exercido em regime similar ao da escravidão, não havia qualquer reconhecimento do preso como um ser humano, sem falar nas situações deploráveis que se encontravam as prisões, principalmente as da Inglaterra. As leis que vigoravam idealizavam excessivos procedimentos cruéis, permitindo aos juízes arbitrar da forma que lhe conviesse, sem qualquer tipo de tratamento isonômico, ou seja, o julgamento era feito de acordo com as condições sociais dos homens, não havendo assim qualquer tipo de equidade.
Tais situações lastimáveis perduraram até meados do século XVIII, onde houve então o surgimento e a propagação de idéias liberais voltadas à humanização e a reforma das leis, sendo esse período conhecido como o século das luzes, onde os idealistas buscavam resgatar as correntes iluministas e humanitárias de Rousseau, Montesquieu, Locke e Voltaire, pelo fato destes filósofos terem sido os grandes defensores da liberdade, da igualdade e da justiça como afirma Bitencourt (2003).
O grande apogeu veio com o advento da Revolução Francesa, a partir daí então começou a haver o reconhecimento do preso por parte das autoridades como um ser humano, sendo Cesare de Beccaria, John Howard e Jeremias Bentham os grandes causadores de tal conquista ocorrida na seara penal (BITENCOURT, 2003).
Cesare Bonessana mais conhecido como o Marquês de Baccaria, marcou sem dúvida o inicio definitivo do direito penal moderno, suas idéias voltadas à defesa social propiciaram através de sua obra – Dos delitos e das penas – o amadurecimento da trajetória da reforma penal dos últimos séculos. Beccaria em sua obra menciona o contrato social, cuja teoria prega o respeito mútuo entre os homens, contribuindo assim para a humanização e racionalização da pena privativa de liberdade com a adoção da concepção utilitarista da pena (BECCARIA, 2005).
Outro nome importante e de peso que contribuiu em especial para o processo de humanização e racionalização da pena foi o de John Howard, suas idéias foram de grande contribuição na seara penal, inspirando a corrente penitenciarista na construção de estabelecimentos adequados para o devido cumprimento da pena (BITENCOURT, 2003).
Howard nunca aceitou as condições desumanas que se encontravam as prisões inglesas, pois a Inglaterra diferentemente da Holanda, passou a não dar mais importância ao trabalho exercido dentro das casas de correição, sendo assim, deixou de realizar investimentos nesse setor que consequentemente se transformou num caos total, em completa situação de abandono, deixando os presos sem qualquer amparo, ou seja, sem nenhum respeito à dignidade da pessoa humana (BITENCOURT, 2003).
Por fim Jeremias Bentham, outro ícone que marcou muito o campo da penologia, sendo suas idéias marcadas por terem sido expostas de forma sistemática, onde era defendido um princípio ético, havendo um sistema de controle social, ou seja, um controle do comportamento humano. Bentham se importava muito com a prevenção social, considerando que o fim objetivo da pena era o da prevenção delituosa, mas também admitia a pena com seu fim correcional.
“O negócio passado não é mais o problema, mas o futuro é infinito: o delito passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer mal, porque por maior que seja o proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena” (BENTHAN, apud BITENCOURT, 2003, p.38).
Bentham realmente tinha uma visão nociva da pena, aceitava reconhecer que o castigo era um mal, porém um mal utilizado como um meio de prevenção de danos maiores a toda a sociedade. Para ele, as prisões que não oferecessem condições adequadas para o devido cumprimento da pena privativa de liberdade, acabavam por si só gerando a não reabilitação do indivíduo, e por conseqüência disto o seu retorno, ou melhor, a sua reincidência.
No Brasil, o trabalho prisional surgiu na época do Império, seu marco nas cadeias brasileiras se deu com o propósito de mudar o conceito de prisão até então vigente à época. O modelo adotado pelo Brasil trazia o trabalho em sua essência, coadunando assim a atividade laboral com a pena a ser cumprida pelo apenado. Tal regime implantado no Brasil era tido como um modelo ressocializador bastante avançado à época, seu dogma era o trabalho, com isso acreditava-se que o apenado só alcançaria a sua recuperação através da disciplina do trabalho (CABRINI, 2013).
O Brasil utilizou-se da aplicação do trabalho no cumprimento da pena de duas formas distintas, ou seja, em determinado momento de caráter obrigatório, e em um segundo momento de caráter opcional, que predominou da época do Império e se extinguiu por volta de 1937. A partir daí passou-se então a haver uma certa preocupação por parte de autoridades e juristas à época em criar e instituir uma lei especial voltada à execução penal, contudo, a criação da lei se deu somente em 11 de julho de 1984, lei esta n.º 7.210 conhecida então como LEP, ou seja, Lei de Execuções Penais.
Durante muitos séculos foram relatados casos de desrespeito a integridade e a dignidade do ser humano, relacionados não só a acontecimentos ocorridos na esfera penal, mas em todos os outros seguimentos sociais. A história voltada ao direito penal, traz inúmeros relatos de tratamentos desumanos e degradantes que eram submetidos não só os indivíduos condenados, mas também àqueles que aguardavam a sua condenação, que em alguns casos sequer tinham acometido algum ilícito e acabavam assim por sofrer tais danos que eram direcionados à sua integridade física e moral (SOUZA, 2008).
Não havia por parte do Estado nenhuma garantia ou regra de tratamento ao preso, sequer falava-se em democracia ou direitos, quanto mais em garantia. Sendo assim, houve uma grande preocupação de se fazer leis voltadas à proteção do homem num contexto geral, para que se pudesse dar um fim a tantas barbáries ocorridas ao longo da história, gerando assim o surgimento e o reconhecimento da dignidade como característica intrínseca ao ser humano (BITENCOURT, 2003).
Em 1948, surge a Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Homens através da conferência internacional americana realizada em Bogotá na Colômbia, surgindo também no mesmo ano a então Declaração Universal dos Direitos Humanos, através de uma assembléia realizada em Paris na França. Tal declaração aprovada na assembléia geral da ONU “Organização das Nações Unidas” concebeu em seus trinta artigos vários direitos e garantias, reconhecendo a dignidade como característica inerente e própria ao ser humano (ONU, 1948).
Alguns Países conseguiram reduzir em muito o tratamento desumano que era aplicado aos seus presos, contudo perduravam ainda por grande parte do mundo tais condições desumanas. A ONU muito apreensiva com os acontecimentos lastimáveis ocorridos em estabelecimentos prisionais de diversos Países, resolve assim por criar regras mínimas a serem cumpridas para o tratamento dos reclusos, adotadas através do 1º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção e tratamento de delinqüentes realizado em 1955 em Genebra na Suíça, sendo que parte das regras citadas estão voltadas diretamente ao trabalho prisional (GENEBRA, 1955).
Não há como se falar nesse assunto sem abordar direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só pode ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados.
Vale ressaltar também o surgimento de várias outras declarações com o intuito de salvaguardar e garantir a aplicação dos direitos humanos, dentre elas podemos citar a Convenção Européia para a Garantia dos Direitos Humanos de 1950, e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de San José da Costa Rica (BITENCOURT, 2003).
Diante do exposto, há de se perceber ao longo da história o forte desejo por grande parte das Nações de se fazer valer o respeito aos direitos humanos, respeito este que vem se consolidando ao longo do tempo como ressalta Souza:
“Embora tenhamos notícias do passado acerca das várias barbáries praticadas em detrimento da dignidade das pessoas submetidas à ação estatal, nos dias de hoje pelo menos no Ocidente, podemos constatar a tendência dos ordenamentos jurídicos em reconhecer o ser humano como o fim do Estado e do Direito e, consequentemente, em reconhecer a dignidade como fundamento de todo o ordenamento jurídico” (SOUZA, 2008, p.109).
As palavras de Marcelo de Souza resumem e reforçam o que fora ressaltado alhures, mencionando que nos dias atuais prevalece em grande parte do mundo o respeito a dignidade da pessoa humana, porém faz a ressalva de que tal respeito é exercido e mantido pelo menos no Ocidente. Souza se refere a política adotada em pleno século XXI em Guantánamo, cidade do sudeste de Cuba, onde os Estados Unidos da América através de sua pseudo democracia, mantêm uma base militar destinada a manter prisioneiros supostamente ligados ao terrorismo, onde os mesmos além de serem tratados de forma desumana, são também submetidos a prática de tortura, inclusive impedindo que haja qualquer tipo de controle externo, ou seja, que seja realizada qualquer interferência internacional, a fim de se valer cumprir o mínimo exigido de tratamento digno que um ser humano há de fazer jus (SOUZA, 2008).
4.1. LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988, não trata especificamente e nem expressamente do trabalho exercido pelo individuo cumpridor da pena privativa de liberdade, mas trouxe as devidas garantias a fim de que esse direito seja protegido e exercido, deixando assim o tratamento específico de tal assunto a cargo de legislações infraconstitucionais.
Os direitos e garantias individuais e coletivos estão consagrados no artigo 5º da Magna Carta, sendo eles reconhecidos como direitos humanos fundamentais destinados a todos, inclusive ao indivíduo que se encontra privado de alguns de seus direitos (MORAES, 2005).
A Constituição Federal veda expressamente a imposição de qualquer tipo de pena consubstanciada em trabalhos forçados ou de caráter cruel, conforme dispõe as alíneas ‘c’ e ‘d’ do inciso XLVII do art. 5º. A Lei Fundamental não traz somente esta garantia no artigo citado, como traz também implicitamente em seu texto o reconhecimento à prática da atividade laborativa a ser exercida pelo preso (OLIVEIRA, 2006).
Na parte reservada aos Direitos Sociais, a CRFB/88 traz expressamente em seu artigo 6º o trabalho como direito social dentre outros ali elencados. O trabalho como direito social, engloba todo tipo lícito de atividade laborativa, inclusive as praticadas no cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais impostas pelo Estado, sendo assim, adita Mirabete: “se o Estado tem o direito de exigir que o condenado trabalhe, conforme os termos legais, tem o preso o ‘direito social’ ao trabalho” (2000, p.88).
Todavia sendo o trabalho um direito social, dispõe Mirabete (2000) que o indivíduo cumpridor da pena privativa de liberdade ou de medida de segurança detentiva, possui o status de condenado, sendo assim, não pode vir a exercer tal atividade laborativa por livre e espontânea vontade devido a retirada temporária de alguns de seus direitos, cabendo então ao Estado conceder-lhe a atribuição do trabalho como um dever.
4.2. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
O ordenamento jurídico vigente de um País é composto por normas superiores e inferiores, há um escalonamento a ser respeitado e seguido, podendo-se afirmar assim que as normas de um ordenamento não se encontram em um mesmo plano (BOBBIO, 2006).
A legislação infraconstitucional é aquela lei que pela hierarquia das normas está abaixo da Constituição, suas diretrizes estão voltadas a tratar do assunto pertinente de forma específica, que nesse caso vem a ser disciplinado pela Lei n.º 7.210 de 1984, ou seja, a Lei de Execuções Penais “LEP”, que assim dispõe em seu artigo 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (VADE MECUM, 2012).
A citada Lei ao tratar da matéria em estudo, faz a devida menção sobre a dignidade da pessoa humana em seu art. 28, que assim dispõe: “O trabalho do condenado como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva” (VADE MECUM, 2012).
A LEP regula e disciplina de forma específica o exercício da atividade laboral a ser desempenhada pelo condenado, englobando tudo que esteja relacionado a essa atividade, tais como direitos, deveres e sanções. A Lei não só exauri o assunto relativo ao trabalho prisional, como também o faz no que tange ao processo de execução num todo, tratando-se, portanto, de uma Lei completa, onde há o reconhecimento do trabalho como condição de dignidade do ser humano que ali se encontra.
5. DIGNIDADE HUMANA E O LABOR RESSOCIALIZADOR
A execução da pena atualmente segundo a moderna concepção acerca do processo de execução, pode ser analisada como um conjunto de métodos e medidas voltados à dignidade da pessoa humana e a devida reinserção social, contendo assim uma finalidade reabilitadora. São vários os métodos ou meios utilizados pelo Estado com o intuito de atingir esse determinado fim, porém o trabalho, segundo grande parte da doutrina é o meio mais promissor de se alcançar tal objetivo almejado, ou seja, o da ressocialização (MIRABETE, 2000).
Pode-se dizer que o trabalho prisional possui caráter pedagógico, fazendo com que o preso que esteja ali submetido passe também a se educar ou em alguns casos a se reeducar, com relação ao cumprimento de ordens emanadas, horários a cumprir e muito mais.
Segundo Mirabete:
“O trabalho prisional não constitui, portanto, per se, uma agravação da pena, nem deve ser doloroso e mortificante, mas um mecanismo de complemento do processo de reinserção social para prover a readaptação do preso, prepará-lo para uma profissão, inculcar-lhe hábitos de trabalho e evitar a ociosidade” (MIRABETE, 2000, p.87).
O trabalho deixou de ser um meio de castigo e, sendo assim, passou a ser utilizado como uma atividade de caráter pedagógico através de sua atuação como fator ressocializador, voltado a restabelecer a dignidade, ou a trazê-la em alguns casos a quem nunca sequer soube o que é tê-la. Prossegue assim a linha de pensamento de Mirabete, que assim dispõe:
“Exalta-se seu papel de fator ressocializador, afirmando-se serem notórios os benefícios que da atividade laborativa decorrem para a conservação da personalidade do delinqüente e para a promoção do “autodomínio físico” e moral de que necessita e que lhe será imprescindível para seu futuro na vida em liberdade” (MIRABETE, 2000, p.87).
“O trabalho do preso “é imprescindível por uma série de razões: do ponto de vista disciplinar evita os efeitos corruptores do ócio e contribui para manter a ordem; do ponto de vista sanitário é necessário que o homem trabalhe para conservar seu equilíbrio orgânico e psíquico; do ponto de vista educativo o trabalho contribui para a formação da personalidade do indivíduo; do ponto de vista econômico, permite ao recluso dispor de algum dinheiro para suas necessidades e para subvencionar sua família; do ponto de vista da ressocialização, o homem que conhece um ofício tem mais possibilidades de fazer vida honrada ao sair em liberdade” (ARUS, apud MIRABETE, 2000, p.88).
Por fim a despeito de trabalho penitenciário, Mirabete ressaltou as palavras de Francisco Bueno Arus, que numa síntese bem sucedida, não só afirma, como também engloba todos os benefícios concernentes a este meio ressocializador, e, sem dúvida o mais promissor.
6. DA ATIVIDADE LABORATIVA
Não restam dúvidas que o labor analisado através deste estudo, está genuinamente voltado à dignidade da pessoa humana, seja ele exercido internamente, externamente ou na modalidade de prestação de serviços à comunidade, conforme prevê a Lei de Execuções Penais.
Sendo assim, trata-se de trabalho interno aquele exercido nas dependências do estabelecimento prisional, podendo ser de caráter industrial, agrícola ou intelectual, correlacionado assim com a profissão ou o ofício desempenhado pelo individuo antes de sua condenação.
Pode-se utilizar o Estado da mão-de-obra carcerária no que tange à reforma, construção e conservação dos estabelecimentos penitenciários, também com relação a serviços auxiliares como cozinha, lavanderia, enfermaria, ou seja, em todos os setores em prol da administração, todavia, é uma maneira de evitar gastos públicos, entretanto, deverá o Estado suportar a remuneração devida aos presos submetidos a esta forma de labor (MIRABETE, 2000).
O trabalho externo ou extramuros por sua vez, é executado por presos que se encontram no regime semi-aberto, sendo desempenhado em estabelecimentos industriais, colônias agrícolas ou em estabelecimentos similares, podendo assim ser prestado também a empresas privadas conforme previsto na LEP.
Há também a utilização dessa mão-de-obra em serviços públicos e em obras públicas, realizados pelo governo ou por empresas privadas, sempre na modalidade regida pelo direito público e não pelo direito privado (MIRABETE, 2000). Com relação às obras públicas, só poderá haver o contingente de presos na proporção de 10% do total de empregados da obra, sendo tal restrição comentada da devida forma por Mirabete:
“A finalidade do dispositivo é diluir o grupo de presos entre os trabalhadores livres, de modo que se possa efetuar melhor integração do preso a esse meio social e, por outro lado, evitar problemas que poderiam ser criados com a manutenção e o desenvolvimento, extramuros, da “subcultura” característica dos presídios. Facilita-se assim a reintegração social e permitem-se melhores condições de controle e vigilância a fim de se impedir ou ao menos dificultar os atos de indisciplina e a fuga” (MIRABETE, 2000, p.103).
Esta forma de trabalho prestado em obras públicas às empresas privadas, depende de consentimento do apenado, ou seja, não pode ser submetido a esta forma de labor sem a sua devida outorga, conforme dispõe o parágrafo 3º do artigo 36 da LEP. A administração penitenciária ao atribuir o trabalho externo aos presos, deve levar em conta as suas aptidões através de uma seleção muito bem apurada, focando inclusive o grau de responsabilidade que cada condenado possui a fim de evitar problemas disciplinares (MIRABETE, 2000)
A lei exige que o preso cumpra no mínimo 1/6 da pena (um sexto) para que lhe seja atribuído tal labor extramuros, tal requisito contribui para que a administração faça o devido aferimento do grau de responsabilidade e disciplina do apenado. Vale ressaltar que cumprido esse lapso, estaria o preso do regime fechado automaticamente apto ao regime semi-aberto, porém tal progressão não se daria de forma automática, devido a falta de alguns outros requisitos impostos pela Lei como por exemplo os exames criminológicos (MIRABETE, 2000).
O STJ entende não haver a necessidade de tais exames para a concessão do trabalho externo através de seu enunciado de número 40, que assim dispõe: “Para a obtenção dos benefícios da saída temporária e trabalho externo, considera-se o tempo de cumprimento da pena no regime fechado” (VADE MECUM, 2012).
Vale ressaltar que o indivíduo condenado ao cumprimento da pena em regime inicial semi-aberto, deve também cumprir o requisito de um sexto do cumprimento da pena para que possa ter direito a concessão do benefício extramuros, conforme entendimento da maioria dos Tribunais. Sendo assim, vigora o entendimento jurisprudencial pela falta do preceito legal.
Outra forma de trabalho que é também imposta ao indivíduo apenado a fim de ressocializá-lo é a prestação de serviços à comunidade, tal imposição está relacionada a algum tipo de acometimento ilícito de menor potencial ofensivo por parte do indivíduo, que nesse caso tem sua pena substituída por uma espécie de pena conhecida então como “pena alternativa”. Na prestação de serviços à comunidade, o trabalho é imposto como uma sanção, ou seja, é a pena propriamente dita (MIRABETE, 2000).
Tal modalidade de cumprimento de pena vem a evitar o confinamento carcerário e a convivência com indivíduos que cometeram crimes de maior potencial ofensivo, além também de permitir a continuidade da vida em família e a prática habitual do seu trabalho diário. A pena alternativa tem por objetivo a realização de atividades em prol do bem comum, fazendo assim com que haja uma certa reflexão por parte do indivíduo infrator.
6.1. DIREITOS E DEVERES
A remuneração é um dos direito que o indivíduo condenado há de fazer jus, não podendo ter sua remuneração um caráter simbólico, tratando-se assim de uma remuneração eqüitativa conforme regras da ONU, segundo a Lei, uma quantia nunca inferior a três quartos do salário mínimo. Caberá a legislação local fixar a forma e os parâmetros da efetuação do pagamento, que poderá ser por hora trabalhada ou tarefa executada. Sua remuneração segundo dispõe o artigo 29 § 1º da LEP, poderá ser destinada à indenização “ex-delicto”, ou seja, aos danos causados pelo crime, sendo indispensável que nesse caso haja determinação judicial oriunda do processo de execução da indenização do dano, para que se possa realizar a efetuação de tal desconto (MIRABETE, 2000).
Outro desconto segundo a LEP refere-se ao encaminhamento de parte da remuneração à assistência da família do indivíduo, tal contribuição à família do preso é de suma importância, pelo fato de reduzir também as chances da prole seguir o mesmo caminho, ou seja, de seus filhos passarem a viver às margens da lei (MIRABETE, 2000).
Além da remuneração há também o direito a remição, que é outro fator incentivador à prática da atividade laborativa. A remição é um instituto que não só proporciona incentivos ao preso, como também lhe concede o direito de abonar ou extinguir parte de sua pena através do trabalho por ele realizado na proporção de 3×1, ou seja, a cada três dias trabalhados se abona um. É um meio pelo qual se busca a redução da pena privativa de liberdade cumprida pelo preso em regime fechado ou semi-aberto segundo Mirabete, que complementa com as palavras de Maria da Graça Morais Dias:
“Trata-se de um instituto completo, “pois reeduca o delinqüente, prepara-o para sua reincorporação à sociedade, proporciona-lhe meios para reabilitar-se diante de si mesmo e da sociedade, disciplina sua vontade, favorece a sua família e sobretudo abrevia a condenação, condicionando esta ao próprio esforço do penado” (DIAS, apud MIRABETE, 2000, p.426).
O instituto da remição, não alcança presos que se encontrem em regime aberto e os que estiverem cumprindo pena de prestação de serviços à comunidade, todavia o trabalho nessa modalidade de penalidade já constitui a própria sanção. Já em relação ao preso provisório, segundo expõe Mirabete (2000), nada impede que ele tenha sua pena remida enquanto estiver cumprindo a pena cautelar, pois poderá desde que queira remir sua pena com o trabalho exercido no período de acautelamento caso venha a ser condenado.
Parte dos direitos citados que o indivíduo condenado há de fazer jus, são apenas parte de uma gama de direitos que lhe são garantidos por lei, porém, há também deveres a serem cumpridos e respeitados por sua parte no devido desempenho de sua pena. Seus deveres que são estipulados por lei, fazem parte não só do fiel cumprimento da pena imposta, mas integram principalmente o processo de ressocialização, fazendo com que haja por parte do preso uma visão ampla e lúcida de que a vida em sociedade não constitui apenas direitos, e sim deveres que deverão ser acatados e respeitados, tais deveres contribuirão para que o egresso do sistema não só passe a ser reconhecido, como também passe a ocupar o status de um verdadeiro cidadão.
7. CONTROLE E GESTÃO
A administração e a gerência do trabalho exercido no sistema penitenciário é organizado de três formas, podendo ser através do sistema conhecido como monopólio, que é aquele organizado e gerenciado pela própria Administração Pública; podendo também ser gerenciado pelo setor privado através de contratos com empresas privadas, e por último podendo haver a junção das duas formas apresentadas, ou seja, através das parcerias público-privadas, sendo conhecidas hoje como PPP (CNJ, 2013).
Ultimamente, tem havido uma grande preocupação principalmente por parte do Governo Federal em dar ênfase ao assunto em questão, reconhecendo tratar-se de um problema social que deve ser cuidado e resolvido o mais rápido possível, porém, no estado do Rio de Janeiro já há essa preocupação a mais de duas décadas, tal atenção se deu não só devido ao aumento da população carcerária, mas também com relação ao aumento excessivo da criminalidade no presente Estado. Fundou-se em 1977 um órgão estadual que ficaria responsável pela gestão e promoção da atividade laborativa remunerada, realizada por presos de dentro e de fora do sistema penitenciário do Estado, tal órgão recebeu o nome de Fundação Santa Cabrini (CABRINI, 2013).
A Fundação tem como meta buscar a profissionalização para que haja a devida reinserção ao mercado de trabalho, através de convênios firmados com empresas públicas, privadas e também com outros órgãos do governo estadual, proporcionando assim ao indivíduo que se encontra no regime semi-aberto e aberto uma oportunidade digna de conduzir a sua vida com cidadania.
As empresas que firmaram parceria com o governo, comprometeram-se não só a patrocinar, como também contribuir para o devido processo de ressocialização, na oferta de empregos e cursos de capacitação profissional. Nesta parceria estão a Itaipu (binacional), Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), Light Serviços de Eletricidade S/A, CEDAE e outras mais. (CABRINI, 2013).
O citado projeto não focará apenas a questão do trabalho como fator de ressocialização, mas buscará reunir demais meios a fim de que se consiga mudar tal situação que se encontra não só a população carcerária, mas também os que saem do sistema, evitando assim por parte desses indivíduos uma possível reincidência.
Há de se convir que tal iniciativa é de suma importância para tentar amenizar esse problema que se perdura por décadas, porém como dito, “ameniza” e não resolve. A possível solução em contrapartida, viria com a mudança no controle e na gestão dos estabelecimentos prisionais, padronizando-os de norte a sul do Brasil como ocorre em presídios federais. Seu controle e gestão se daria apenas pela União, não se fala aqui em privatização, e sim em unificação. A atividade fim não pode ser executada pelo particular, mas a meio sim, pois o Estado não daria conta e nem suportaria os gastos com o setor. O particular poderia realizar inúmeras tarefas em conjunto com a administração pública, dentre elas a do trabalho exercido pelo apenado como ressaltado alhures. Deve se ter em mente que não se pode querer lucrar com esse tipo de atividade, haja vista a sua tão importante função social (REALE JÚNIOR, 1983).
8. O FENÔMENO DA RESSOCIALIZAÇÃO
Fazer acontecer algo de relevante valor social no mundo em que vivemos atualmente não é uma tarefa das mais fáceis, podendo até se tornar na maioria das vezes uma tarefa bastante árdua. Um acontecimento capaz de transformar uma sociedade em seu todo não depende só da vontade e do querer de alguns membros que integram esse agrupamento, pois nem sempre o querer é poder realizar algo.
Sendo assim, há a necessidade não só da colaboração como da participação de toda a sociedade no que tange o processo de ressocialização, segundo Bitencourt (2003) é imprescindível que haja uma interação comunicacional entre a sociedade e o indivíduo recém saído do sistema. O fenômeno da ressocialização é sem dúvida um acontecimento capaz de transformar uma sociedade, todavia para que este grande fato de relevante valor social se concretize, é mister que se comece uma transformação geral, ou seja, uma espécie de mudança social.
Pode-se afirmar com clareza que nos dias atuais parte de nossa sociedade se encontra corrompida, os valores se inverteram, ou seja, o ser humano só é respeitado e valorizado por aquilo que possui, sem falar também na banalização da vida. Há de se perguntar como um indivíduo recém saído do sistema, com sua devida pena cumprida em consonância com o trabalho desempenhado que lhe proporcionara uma profissão, fará para conduzir sua vida como um cidadão em meio a essa sociedade? Com relação a este questionamento, Bitencourt traz as palavras de Francisco Conde Muñoz:
“Não se pode ressocializar o delinqüente sem colocar em dúvida, ao mesmo tempo, o conjunto social normativo ao qual se pretende integrá-lo. Caso contrário, estaríamos admitindo, equivocadamente, que a ordem social é perfeita, o que, no mínimo, é discutível” (MUÑOZ apud BITENCOURT, 2003, p.90).
Realmente fica difícil pensar que um indivíduo egresso do sistema conseguirá conduzir a sua vida da maneira almejada durante o processo de ressocialização, ainda mais em meio à sociedade em que vivemos, porém pode-se dizer que ainda há esperança, pois a maior parte dessa sociedade ainda possui o que uma grande nação democrática necessita para a devida convivência harmônica entre seus integrantes, ou seja, o respeito mútuo, para isso deverá não só recebê-lo, como acolhê-lo sem qualquer tipo de preconceito, gerando-lhe oportunidades para que possa assim desempenhar com orgulho o seu devido labor.
A socialização é o elemento final, ou melhor, o elemento principal de sustentação, “o pilar sustentador” desse processo ressocializador, que, pode ser mais bem traduzido pelo sociólogo Pérsio Santos de Oliveira: “A vida em grupo é uma exigência da natureza humana. O homem necessita de seus semelhantes para sobreviver, perpetuar a espécie e também para se realizar plenamente como pessoa” (OLIVEIRA, 2001, p.24).
A socialização trazida por Pérsio, interliga-se perfeitamente com o objetivo almejado neste estudo, sendo assim, Pérsio ressalta a importância da sociedade na vida do ser: “Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, seus valores e costumes, o indivíduo está se socializando. Quanto mais adequada a socialização do indivíduo, mais sociável ele poderá se tornar” (OLIVEIRA, 2001, p.24).
Contudo, será de suma importância no momento da reinserção social que tenhamos uma sociedade não só justa, mas também solidária, tornando o indivíduo cada vez mais sociável como o real significado que possui a palavra ressocialização.
Sendo assim, o fenômeno da ressocialização se concretizará através da vontade e da contribuição de todos nós, sem deixar de mencionar que tal transformação dependerá também do empenho do indivíduo, através do esforço e do suor derramado em face de sua luta diária, sendo assim, encerro o presente estudo com as palavras de Rudolf Von Ihering: “Esta é a conclusão final da sabedoria: Só merece a liberdade e a vida aquele que tem de conquistá-las diariamente” (IHERING, 2003, p.101).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em análise ao estudo exposto há de se perceber a importância da prática do trabalho no desempenho da pena, sua aplicação remonta à antiguidade como relatado na parte histórica, podendo assim ser notada sua mudança, ou melhor, sua evolução, de um meio castigador para um meio digno ressocializador. A evolução do trabalho foi devida à eclosão dos direitos humanos por grande parte do mundo, sendo assim, passou-se então a haver não só as devidas garantias, como também o devido reconhecimento da dignidade da pessoa humana como parte inerente ao ser, independente de como ou onde ele estivesse.
O trabalho exercido em face ao cumprimento da pena não se encontra regido pela CLT, tal percepção se deu pelo fato de sua natureza ser administrativa e de direito público, porém, isso não significa dizer que o condenado trabalhador fique desamparado, concluindo-se portanto, fazer ele jus a uma gama de direitos que podem ser classificados como um conjunto de fatores reunidos, a fim de propiciar uma favorável condição digna ao preso trabalhador que ali se encontra sob a custódia do Estado.
Pode-se concluir que tais direitos são assegurados e resguardados por uma série de legislações, indo da Legislação Internacional até a Infraconstitucional. A Legislação Infraconstitucional específica ao caso é a LEP, ela não só assegura direitos como também prevê uma série de deveres a serem cumpridos por parte do apenado, podendo-se dizer que tais direitos e deveres aplicados em conjunto com demais regras, proporcionam o objetivo fim da lei, que é a reinserção do indivíduo ao meio social de maneira, ou melhor, de forma humanizada.
Cabe ressaltar a importância da legislação internacional não só no que tange aos direitos humanos, como também no que diz respeito às regras mínimas de tratamento de presos criadas pela ONU. Percebe-se que grande parte do mundo segue ou procura seguir tais normas editadas pela ONU, a fim de propiciar uma condição mais digna aos seus prisioneiros, porém há um caso específico bastante conhecido que gerou grande repercussão por toda comunidade internacional, abordado na página 11, que relata o tratamento desumano direcionado pelos Estados Unidos aos prisioneiros sob sua custódia em uma de suas prisões situada em Cuba, sua forma de tratamento torna-se inadmissível, ainda mais quando praticado em pleno século XXI por uma nação reconhecida mundialmente pela sua democracia.
Todavia, o caso está interligado diretamente ao estudo em questão, pois não há como se falar em ressocializar sem abordar os direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só poderá ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados.
No tocante as suas vantagens, já havia por minha parte um certo conhecimento devido ao fato de tê-lo presenciado em determinada época de minha vida. Tinha por volta de 14 anos quando minha amada mãe foi retirada de meu convívio em virtude da acusação de ter ela sido mandante de um crime de homicídio. Tal acusação depois veio a se confirmar, e com isso gerou sua condenação em 18 anos de reclusão. No começo minha mãe não aceitava tal imposição da lei por não se tratar de uma pessoa que vivia às margens da lei. Tratava-se de uma mãe, dona de casa, e não de uma criminosa habitual, tendo então a infelicidade de cometer um ilícito devido a uma injustiça que a vida lhe proporcionara.
Passou-se então assim a dedicar-se no primeiro ano do cumprimento de sua pena à realização de alguns afazeres no âmbito do estabelecimento prisional, com o intuito de fazer com que o tempo transcorresse da forma mais breve possível, em virtude disso, passou a exercer determinadas atividades reconhecidas como trabalho pela Lei de Execuções Penais.
Seu labor se deu em relação a atividades de cozinha e faxinas em geral, proporcionando a ela o instituto da remição, ou seja, ter parte de sua pena remida em virtude da atividade laborativa desempenhada no cumprimento de sua pena. Tal situação perdurou-se até que eu completasse meus 20 anos de idade, diante disso, posso dizer que presenciei por toda minha adolescência a luta incansável de minha mãe, tal lembrança fez com que eu pudesse perceber a importância do desempenho dessa atividade em face do cumprimento da pena, pois seus benefícios são sem dúvida extraordinários.
O trabalho praticado por minha mãe não foi direcionado para fins ressocializadores, como ressaltado alhures tratava-se de um caso esporádico, e por esse fator não havia motivos para fazê-la tornar-se sociável no seu retorno em meio ao convívio social, pois já se tratava de um ser completamente sociável. O trabalho por sua vez, entrou em sua vida proporcionando-lhe grande ocupação, gerando remuneração, remição, e sem dúvida o principal, evitou o ócio, ou seja, o surgimento da ociosidade que costuma trazer diversos malefícios às pessoas que ali se encontram, como o contato direto com demais presas consideradas então criminosas habituais.
No tocante a receptividade da sociedade, também havia certo preconceito por parte de uma minoria por se tratar de uma ex-presidiária, o olhar das pessoas mudavam e muitas portas se fechavam. Graças a Deus portas se abriram e a situação com relação a ela foi se consolidando, porém, hoje, em seu íntimo ainda há uma certa timidez com relação às pessoas que estão a sua volta, devido a isto, creio que seja assim que as pessoas oriundas do sistema venham a se sentir, sem dúvida esse é o principal problema a ser enfrentado pelas autoridades competentes para que haja a devida conscientização por parte de toda a sociedade, independente de suas classes, cor ou religião.
Haja vista que, um grande passo já foi dado por parte das autoridades governamentais a fim de conscientizar a sociedade através de campanhas como o projeto “começar de novo” do Conselho Nacional de Justiça, todavia há de se fazer mais como o faz a empresária Gisela MacLaren, que emprega grande mão-de-obra oriunda do sistema através de seu convênio firmado com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, tal convênio gera em seu estaleiro grandes oportunidades tanto para homens quanto para mulheres.
Há de se concluir que o processo de ressocialização engloba várias fases, sendo uma dependente da outra, ou seja, interligadas e direcionadas ao mesmo fim para que possamos resolver esse “problema social” que se arrasta durante décadas, digo isto porque faço parte dessa sociedade que não agüenta mais e clama por paz.
A conclusão que se pode tirar desse estudo é a de que tudo nessa vida inicia-se e encerra-se com muito trabalho, com suor, com luta, e assim sempre será não só para aquelas pessoas, mas para todos nós. Sendo assim, encerro esse estudo com as palavras de Rudolf Von Ihering e com uma passagem bíblica mencionada também em sua obra datada em 1872:
“Na luta hás de encontrar o teu direito”.
“No suor do teu rosto hás de comer o teu pão”.
Informações Sobre o Autor
Fernando Henrique Wanderley de Farias
Policial Militar do Estado do Rio de Janeiro Especialista em Direito Constitucional. Graduado em Direito pelo Centro Universitário da Cidade UniverCidade em 2009 – Pós Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá – RJ