Direito, família e pós-modernidade: o debate sobre o dogma da coisa julgada nas ações judiciais de família

Resumo: Trata-se de ensaio no qual se propõe uma breve análise do instituto da coisa julgada e sua flexibilização nas ações de família de investigação de paternidade e de alimentos, enquanto dísticos dessa relativização atípica no Brasil, afora as hipóteses de ação rescisória, e que tem servido para fundamentar outras situações de relativização da res judicata das sentenças judiciais transitadas em julgado no Brasil.

Palavras-chave: Coisa Julgada. Relativização. Ações de Família.

Abstract: This is essay in which he proposes a brief analysis of the Institute of res judicata and its flexibility in the actions of family of paternity and food, while couplets of relativization atypical in Brazil, besides the chance of action for rescission, and has served to support other situations relativization of res judicata of final judicial rulings in Brazil.

Keywords: Res Judicata. Relativization. Shares of Family.

Sumário: Intróito; 1. Uma mudança de paradigma; 2. Algumas considerações sobre a coisa julgada; 3. A coisa julgada nas ações de investigação de paternidade e de alimentos: o “abre-alas” da relativização atípica da coisa julgada no Brasil. Considerações finais. Referências bibliográficas.

INTRÓITO

Caminhamos para a pós-modernidade!

Nesse processo de transição em que nos encontramos, a axiologia da modernidade é asperamente lambida por um músculo ideológico que se hipertrofia diariamente dentro da boca de sociólogos, antropólogos, economistas, filósofos, juristas, biólogos, et alli, enquanto fruto de um trabalho de análise para a (res)significação de valores transformadores de ideias tecidas pela sociedade contemporânea.

Estamos, em verdade, perdidos no meio do caminho entre a “Modernidade” e a “Pós-modernidade”, assim como já nos perdemos durante 200 ou 300 anos de nossa história entre a antiguidade clássica, helênica e romana, e a idade média, ou entre a idade média e a idade moderna, cujos processos não foram lineares, tampouco universais, como agora também não o são.

Nesse momento hodierno de ruptura, que pode durar mais dois ou três séculos – talvez até menos, em razão dos avanços tecnológicos, nos campos das ciências e da comunicação social -, não sabemos se somos ainda modernos ou se já somos pós-modernos e, portanto, a partir de que viés podemos enxergar o mundo em que vivemos, se pelo recorte moderno, sempre linear, organizado e seguro, com uma tendência a buscar “estabilização”, ou pós-moderno, mais complexo e em comunhão com a “desordem” e com as “particularidades” que passam a ganhar relevância sobre o todo.

Assim, como enxergamos a Família? O Direito? O Estado? O Homem? Pelo viés moderno? Ou pós-moderno? Parece que estamos no meio de um caminho, do qual não dá mais para voltar, sob pena de perdermos o que amealhamos nessa caminhada, outrossim, parece que ainda estamos distantes de nosso destino e, portanto, longe de chegarmos a uma conclusão sobre as benesses ou não desse processo.

O fato é que recebemos a influência de valores pós-modernos, inclusive, os juristas, ao mesmo tempo em que ainda estamos profundississimamente arraigados aos valores construídos pelo iluminismo, pelas revoluções burguesas, pela Reforma, pelo individualismo (no campo antropológico), ou pelo neoliberalismo (no campo político-econômico), tudo isso ainda em pleno século XXI.

Porém, essa modernidade e os valores que ela apregoa, ainda que plurisignificados e maqueados, com e por discursos que lhes são próprios e que ajudam a construir a realidade e o simbólico, inclusive no Direito, está em questão.

A família não passa ao lado disso, e sofre, portanto, diretamente os efeitos dessa pós-modernidade e, assim como o Direito, enquanto instrumentos de controle social, tem suas vísceras expostas a essa crítica assaz que rompe dogmas e ressignifica as relações humanas e institucionais.

Nessa senda, o que se pretende no presente ensaio, portanto, é expor um pouco dessa crítica, notadamente, aquela que atinge um dos institutos mais caros ao direito moderno, qual seja: a coisa julgada.

1 UMA MUDANÇA DE PARADIGMA

Desde as grandes guerras mundiais, mormente, da 2ª grande conflagração mundial, os valores modernos ainda vigentes passaram a ser questionados, pois a modernidade entrava em colapso e, a despeito de todo o avanço tecnológico e do desenvolvimento econômico de algumas nações, a fome, a miséria, a desigualdade, a violência, o subdesenvolvimento, o acesso a direitos fundamentais, ainda estão na linha de frente das políticas públicas nacionais e transnacionais, ao derredor do mundo.

O modelo moderno de desenvolvimento e de construção da sociedade, com base na família de orientação heterossexual, portanto, parece ter falhado, ou não cumprido a promessa de um mundo melhor.

Nesse contexto, alguns de seus pilares axiológicos, normativos e até culturais, são expostos a uma crítica cada vez mais contundente sob o prisma eficacial, mormente, em razão da transglobalização, ou seja, uma globalização que transcende o cenário político-economico para homogeneizar ou acirrar diferenças culturais entre as nações do mundo.

A proibição do aborto, a família tradicional heterofetiva, a liberação ou não das drogas, o aumento da repressão estatal, a segurança institucional, o fortalecimento do Estado, a racionalização do homem moderno e a negação da emoção, a fé, a acumulação capitalista, o materialismo, a legalidade neopositiva dogmática, passam a ser alvo de críticas aparentemente pós-modernas que põem em xeque valores modernos, como o da proteção à vida, o contrato social, a vedação à autotutela, o individualismo, o neoliberalismo, a negação da emoção, a família tradicional, a soberania do Estado et alli.

A segurança, por seu turno, é inexoravelmente um desses valores modernos, é uma palavra que ganha relevância no discurso moderno, dentro da lógica de acumulação que rege esse mundo, manter as coisas como são ou como estão, ter uma zona de segurança, ou como preferem alguns, uma zona de conforto, na qual a propriedade conquistada, seja mantida, o direito conquistado, seja mantido, o cargo público ou emprego conquistado, seja mantido, a economia seja estabilizada, a inflação controlada, a linhagem assegurada, a lei seja genérica, abstrata e produto do Poder Legislativo (lembre-se aqui do discurso pós-moderno do ativismo judicial), são, enfim, construções de uma sistema axiológico moderno que não aceita transformações e que se institucionalizaram, inclusive em cartas constitucionais modernas ou contemporâneas, sobretudo as erigidas sob a égide do neoconstitucionalismo, se é que ele existiu, no pós segunda grande guerra mundial.

É nesse contexto que dogmas jurídicos também são desvendados. Em especial, o dogma da imutabilidade das decisões judiciais, e o dogma da família heteroafetiva. Nessa senda, como esses valores do direito contemporâneo, frutos de um influxo valorativo contundente da modernidade, apresentam-se quando em contato com a pós-modernidade, com a preocupação da complexidade das relações sociais, com a universalização do particular, com a retomada de discussões sobre o “valor da justiça”, que a modernidade acabou transportando para o campo da consciência, e, portanto, para o plano da subjetividade, então objeto de preocupação da psicologia e não do Direito, num positivismo que ainda não morrera.

Esse debate é aberto, extremamente complexo e, portanto, ainda está em construção, cujas conclusões só serão alcançadas por uma sociedade que ainda está por nascer, já no berço da plena pós-modernidade. Conquanto, precisamos ponderar aprendizados, conservando experiências e reavaliando institutos e instituições que parecem estar, ou não, deslocadas no tempo e na sociedade que caminha para a pós-modernidade. E isso inclui, inexoravelmente, os juristas.

Nessa linha, uma análise acerca da Coisa Julgada e da família, enquanto “dogmas da segurança” carreados pela sociedade moderna e condutores da felicidade, é algo que merece muito apreço por todos aqueles que se dedicam à construção e à aplicação do Direito.

Isso porque, ao debruçarmo-nos acerca do instituto jurídico da Coisa Julgada e da família, estamos nos referindo não apenas a uma previsão legislativa da nossa ordenação, mas, doutra maneira, a condições humanas de convivência em coletividade na modernidade. Portanto, nas linhas que ainda dão vida a este ensaio, destinaremo-nos em sua compreensão, com todo o respaldo merecido, a fim de que possamos um pouco mais compreendê-la, com suas peculiaridades e limites.

2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A COISA JULGADA

A coisa julgada é a qualidade que resulta na indiscutibilidade e imutabilidade das decisões judiciais não mais impugnáveis, conferindo estabilidade às relações jurídicas. Para tanto, o comando normativo esposado pelo art. 467 do Código de Processo Civil brasileiro expõe: “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Sob a mesma ótica, expõe o art. 6º, §3º da Lei de Introdução ao Ordenamento Jurídico Brasileiro: “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que não caiba mais recurso”.

Supostamente arrimado nos preceitos informadores do princípio da segurança jurídica, sob o prisma processual, o instituto da res judicata pode ser classificado como formal ou material. Neste sentido, preceitua Prado (2005,p.01) que:

“O fenômeno da coisa julgada é a abstração para o mundo dos fatos do salutar Princípio da Segurança Jurídica, que com tamanha importância para a organização e pacificação da sociedade, foi consagrado no art. 5°, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, que assim giza: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”

A coisa julgada formal, por sua vez, é o fenômeno ocorrido dentro da relação processual, extinta com ou sem resolução do mérito, que resulta na indiscutibilidade/imutabilidade da decisão dentro do processo, por faltar-lhe meios de impugnação possíveis. Para o caso de extinção do processo sem resolução do mérito, a coisa julgada formal não é óbice para a propositura de nova demanda que tenha o mesmo objeto que a primitiva, posto que somente operada a indiscutibilidade. A coisa julgada formal é, repise-se, fenômeno existente em todos os decisórios judiciais, sejam extintos com ou sem resolução do mérito, aportando como pressuposto à coisa julgada material.

De outra banda, a coisa julgada material é a qualidade que alcança a parte dispositiva do decisório magistral, conferindo-lhe intangibilidade, e, por conseguinte, inviabilizando a rediscussão da lide. Opera efeitos, portanto, em sentenças definitivas de mérito. No que diz respeito à imutabilidade da sentença acobertada pelo manto da coisa julgada material, há que se considerar seus dois momentos processuais: o relativo e o absoluto.

À título ilustrativo, transcreve-se o entendimento de Moacyr Amaral Santos (1989, p.43):

“Exauridos e resolvidos os recursos manifestados contra sentença, ou não sendo manifestado nenhum, a sentença transita em julgado. Com tal ocorrência, operam-se dois fenômenos simultâneos. O primeiro é o advento da coisa julgada formal, isto é, a sentença, como ato processual, torna-se imutável dentro da relação processual. Este fenômeno só se fez presente dentro do processo. O segundo fenômeno é a formação da coisa julgada material ou substancial. Esta que tem como pressuposto lógico a coisa julgada formal, caracteriza-se pela imutabilidade dos atos declaratórios, condenatórios ou constitutivos da sentença de mérito, chamados “principais”, como imutáveis também se mostram os efeitos secundários da sentença. Tais efeitos – principais e secundários – adquirem uma qualidade que é a imutabilidade. Fala-se assim em “autoridade da coisa julgada.”

Em lição tradicional, tem-se que:

“[…] eis pronto a função precípua da jurisdição: solucionar de forma definitiva os litígios, através de processos instaurados por meio do exercício do direito de ação. Para que seja cumprida esta função satisfatoriamente, o ordenamento jurídico precisa conter mecanismos de estabilização das relações jurídicoprocessuais, permitindo que as decisões, presentes certos pressupostos, adquiram certeza e definitividade.” (RAMOS, 2007, p.43)

A imutabilidade tem caráter relativo enquanto for possível às partes impugnar o dispositivo sentencial, via recurso ordinário ou extraordinário, ou até que, sendo hipótese do art. 485 do Código de Processo Civil, expire o prazo de 02(dois) anos sem a propositura de ação rescisória. Findo tal prazo decadencial, a imutabilidade ganha contornos de absolutividade. Neste aspecto, porém, é dissonante a doutrina processualista, posto que há doutrinadores a considerar a inalterabilidade sentencial de modo absoluto, exceto, para o caso de ocorrência de vícios transrescisórios, e outros estudiosos, a conceber hipóteses outras de relativização da coisa julgada, tais como: o fenômeno da res judicata inconstitucional e o da coisa julgada injusta.

É nesse último aporte, coisa julgada injusta, que as ações de família servem de esteio comprobatório das razões trazidas à baila pelos tratadistas da temática. A coisa julgada injusta, ofensiva aos direitos da personalidade e, por conseguinte, aos direitos humanos, também poderia e pode ser revista, então desmantelando a coisa julgada em homenagem à construção de um direito mais equânime e consentâneo com a realidade.

3. A COISA JULGADA NAS AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DE ALIMENTOS: O “ABRE-ALAS” DA RELATIVIZAÇÃO ATÍPICA DA COISA JULGADA NO BRASIL.

Cumpre-se registrar, por oportuno, desde já, a importância já histórica dessa análise, pois é, sobretudo, a partir das ações de família que o debate sobre flexibilização da coisa julgada se maximiza, ao ponto de influir na extensão dos argumentos abaixo expendidos a outras searas do direito e, portanto, a outros casos concretos.

Nessa senda, a Ciência, e na modernidade sempre ela, é um vetor de transformação do direito posto, porquanto é a “verdade” legitimada pela Ciência, enquanto instituição, verificável, metódica e certa, a despeito de toda a crítica que lhe possa ser endereçada, inclusive, no próprio discurso da pós-modernidade, que ajuda a priori a dar corpo a essa discussão, dando força ao princípio da verdade real também no processo civil brasileiro, mormente, quando a prova técnica passa a se mostrar inafastável para o deslinde de querelas judiciais.

 Assim, mesmo que a verdade processual esteja assente, inclusive pelo trânsito em julgado, a possibilidade do exame de DNA desmentir toda a instrução probatória em uma ação de investigação de paternidade, por exemplo, passa a por em xeque a intangibilidade dos decisórios judiciais, tanto para a declaração, condenação ou constituição a um estado jurídico, como para a sua desconstituição. Nesse sentido, obtempera Maria Berenice Dias (2011, p.04):

“O prestígio dado à verdade real, como um dos corolários do direito à identidade, foi um dos fatores que ensejou o fenômeno da relativização da coisa julgada. Diante da possibilidade de descoberta da verdade biológica pelo exame de DNA, acabou a jurisprudência brasileira por admitir o retorno do filho a juízo, sempre que o resultado da demanda resultara da ausência de prova da paternidade: ou por não ter sido realizado exame pericial ou quando o índice de certeza não havia alcançado resultado significativo.15 Também quando a ação havia sido julgada procedente, sem prova pericial ou quando esta ainda dispunha de acanhado grau de certeza, os pais passaram a buscar a desconstituição da paternidade que lhe foi imposta por sentença.”

Nesse sentido, é percuciente a afirmação de Maria Christina de Almeida (2003; p.168) que, “nesse rumo, enquanto uma sentença proferida antes de se ter o exame em DNA era destituída de comprovação científica da verdade biológica da filiação, na atualidade passa a ter um embasamento científico, e a certeza deixa de ser ‘certeza do direito de filiação’ para ser ‘certeza científica da filiação’.

Bem, um cuidado que se deve ter é o de não transformar o juiz em um mero instrumento de aplicação do conhecimento científico, pois a “verdade científica”, não é absoluta, há valores que são desprezados pela ciência, mas que não podem ser desprezados pelo juiz.

Mas, na linha acima esposada, o Superior Tribunal de Justiça tem decisão esclarecedora, senão vejamos:

“Processo civil – Investigação de paternidade – Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas – Coisa julgada – Recurso acolhido. Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II- Nos termos da orientação da Turma, “sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza”, na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III- A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca, sobretudo, da realização do processo justo, “a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas, e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que, numa sociedade de homens livres, a justiça tem de estar acima da segurança, porque sem justiça não há liberdade”. IV- Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum”. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 4.ª Turma., Recurso Especial 226.436/PR (1999/0071498-9), relator. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 28.06.2001).

A priori, parece sugerir o colendo STJ que a coisa julgada construída em sede de ação de investigação de paternidade não é secundum eventum litis e sim secundum eventum probationem, tal como sói ocorrer com as ações coletivas, embora lá haja previsão legal expressa nesse sentido. Destarte, se não esgotada a produção probatória, notadamente a prova técnica, admitir-se-ia a relativização da coisa julgada.

A razoabilidade, então norteadora do substantive due process of law, nesses casos, equacionaria a segurança jurídica e o direito fundamental à identidade.

Cristiano Chaves de Farias (2007; p.214) assevera que, “não se pode, enfim, canonizar o instituto da coisa julgada, de modo a afrontar, até mesmo a própria sociedade”. E mais: “Deve ser ponderado pelo princípio da proporcionalidade qual dos interesses deve prevalecer no caso concreto. Deve se considerar se mais vale a segurança ou a justiça”. E arremata:

“Não é crível nem aceitável, que se admita a aplicação das regras tradicionais do Código de Processo Civil (diploma legal individualista, datado de 1973, quando não se podia imaginar a amplitude do avanço científico a que se chegaria em pouco tempo) nas ações filiatórias. É que não se pode acobertar com o manto da coisa julgada ações nas quais não foram exauridos todos os meios de prova, inclusive científicos (como o DNA), seja por falta de condições das partes interessadas, por incúria dos advogados, por inércia do Estado-juiz. Em outras palavras, não faz coisa julgada material a decisão judicial em ações filiatórias nas quais não se produziu a pesquisa genética adequada, seja por que motivo for.” (CHAVES, 2007, p.212).

Como aduz, Maria Berenice Dias (2011) há o interesse público na composição dos conflitos, de um lado, que leva à sacralização da coisa julgada pela sua imutabilidade. Doutro, o direito fundamental à identidade, um dos atributos da personalidade e, portanto, um direito fundamental. E conclui, afirmando que “no conflito entre esses dois princípios, o instituto da coisa julgada não pode se sobrepor ao direito de livre acesso à justiça para o reconhecimento da filiação” (DIAS, 2001, p.08).

“[…] a segurança, como um dos fins do direito, pode conflitar com as demais finalidades da ordem jurídica. Aí então indaga-se: o direito deve sacrificar a justiça em benefício da segurança, transformando-se na ordem legal sem correspondência com o seu conceito ideal, ou deverá sacrificar a segurança em benefício da justiça, criando um clima de insegurança e de intranqüilidade? Entre estas duas posições o pensamento jurídico vacila.” (GUSMÃO, 2006, p.81)

No tocante à ação de alimentos, a questão tem outro fundamento, porquanto, a sentença proferida em ação de alimentos produz coisa julgada rebus sic stantibus. Enfim, trata-se de coisa julgada material que incidente sobre dada situação de fato, mantém-se perene, mas alterando-se o contexto fático, não há mais realidade sobre a qual se aplicar a coisa julgada formada.

Em verdade, em se tratando de relação jurídica continuativa, a sentença tem implícita a cláusula rebus sic stantibus, assim, a ação revisional de alimentos é outra ação com objeto próprio, com outra causa de pedir inclusive, e o que autoriza a revisão é a ocorrência de fato novo. A contrario sensu, não ocorrendo alteração das possibilidades do alimentante ou das necessidades do alimentando, o valor dos alimentos não pode ser alterado, pois estará imutável pela coisa julgada formada. É irrelevante, ademais, que tenham sido fixados por acordo ou judicialmente. Flagrada desproporção, é possível a revisão.

Assim sendo, sobre a coisa julgada nas ações de alimentos, incidem elementos outros que justificam a perene possibilidade de os alimentos serem revisados. Ainda que haja coisa julgada em sede de alimentos, prevalece a necessidade de impor o atendimento a diretrizes mais relevantes, quais sejam: necessidade e possibilidade.

Cumpre registrar, por oportuno, que a Constituição Federal impõe como prioridade absoluta a proteção e efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, assim, não se podem priorizar outros princípios que venham em benefício de quem desatenda à obrigação de assistência para com os filhos, o que incluiria o princípio da segurança jurídica, então fundamento primeiro da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado.

Deste modo, imperioso afirmar que, não se pode admitir afronta à ética em nome da segurança das relações jurídicas.

Considerações finais

Os ventos da pós-modernidade do Direito tem levantado bandeiras que foram escondidas pela modernidade, pelo positivismo jurídico, e até, em certa medida, pelo neopositivismo, assim, valores como a justiça, a ética, a efetividade e a afetividade, a proporcionalidade e a razoabilidade das decisões judiciais, tem ganhado cada vez

mais espaço no processo de construção e aplicação do direito.

Nessa seara, o Direito de Família tem tido relativo destaque, tendo puxado o debate sobre a relativização da coisa julgada no Brasil, sua inquebrantabilidade se fragiliza em nome da retomada da discussão ética sobre justiça e efetivação de outros direitos fundamentais, como o direito personalíssimo à identidade e à filiação.

 

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Maria Christina de. DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
DIAS, Maria Berenice. Coisa julgada no processo de família. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/13_coisa_julgada_no_processo_de_fam%EDlia.pdf
FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito de Família. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do direito. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.
PRADO, Rodrigo Murad do. Coisa julgada inconstitucional. Disponível em 02.09.2005:http://jus.uol.com.br/revista/texto/7233/coisa-julgada-inconstitucional. Acesso em 24 de Agosto de 2010.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa julgada inconstitucional. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 43.
SANTOS, Moacir Amaral Santos. Curso de Direito Processual Civil. VolI. São Paulo: Saraiva.


Informações Sobre o Autor

Daniel Ferreira de Lira

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba, Especialista em Direito Processual Civil e Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Mestrando em Desenvolvimento pela UEPB/UFCG, professor das disciplinas de Direito Processual Civil e Teoria Geral do Processo do Centro de Ensino Superior Reinaldo Ramos (CESREI), professor da Disciplina de Direito Processual Civil e Juizados Especiais da UNESC Faculdades, professor de cursinhos preparatórios para concursos e para o Exame da OAB . Advogado Militante e Palestrante


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